A conversão acontece nos desertos, periferias e fronteiras.
Na última
quarta-feira, enquando recebíamos um punhado de cinza sobre a cabeça,
escutávamos contritos e atentos a interpelação: “Convertam-se e acreditem no
Evangelho!” Exatamente nessa ordem: primeiro, converter-se; depois, acreditar
no Evangelho. A proposta apresentada por Jesus e o caminho por ele aberto são
portadores de uma novidade tão radical que, para acolhê-la, precisamos mudar
nossos esquemas mentais. Mas o ponto de partida é aquilo que Pedro anuncia: a
Aliança que Deus selou conosco em Jesus Cristo, a justo que morreu para
reconciliar os injustos com Deus.
O
evangelista nos diz que, logo depois do batismo no rio Jordão, onde se descobre
filho amado do Pai e servo enviado aos irmãos e irmãs, Jesus é conduzido pelo
Espírito ao deserto. Seu batismo assinala claramente um novo começo, mas com
sua retirada para o deserto esse início parece ser adiado por um tempo. Na
verdade, Jesus apenas se retira do palco e se subtrai aos refletores para
aprofundar o sentido da missão que recebeu no batismo. No deserto, ele é levado
ao confronto consigo mesmo e com as diversas possibilidades de viver sua condição
de filho amado do Pai e servo da humanidade.
No
deserto, Jesus faz a experiência das tentações que costumam acompanhar todos
aqueles que se empenham no serviço a Deus e ao seu povo: a tentação das
soluções fáceis, miraculosas e espetaculares (cf. Mc 8,11); a tentação do
legalismo e do casuísmo para beneficiar apenas algumas pessoas (cf. Mc 10,2); a
tentação de disputar o poder (cf. Mc 12,15); a tentação de identificar a
vontade de Deus com seus próprios medos e vontades (cf. Mc 14,32-38). Os 40
dias de deserto recordam simbolicamente que Jesus foi frequentemente tentado,
mas venceu deixando-se guiar pelo Espírito.
No
deserto, Jesus pode clarear o núcleo do Boa Notícia que anunciaria aos pobres.
Por isso, este foi um tempo forte de discernimento e amadurecimento que, de
alguma forma, se estendeu por toda a sua vida. Pois o amadurecimento costuma se
oferecer na discrição, no silêncio e na margem, longe dos holofotes e da
publicidade. Assim é o tempo quaresmal: um tempo para sair do centro das
atenções, deixar de lado os papéis decorados que encenamos, vencer a comodidade
de ficar na superfície e na periferia de nós mesmos, penetrar no núcleo mais
secreto e vivo do nosso ser.
O anúncio
que Jesus acolheu, aprofundou e reformulou no seu deserto não comporta ameaças
ou imposturas. É pura Boa Notícia. “O tempo de espera se cumpriu e o Reino de
Deus está próximo!” Aquilo que era esperança faz-se realidade. Aquilo que
estava distante agora está inexoravelmente próximo. É o tempo de graça do
Senhor, da assinatura de um novo pacto com seus filhos e filhas e com toda sua
criação, da justiça vindo como chuva e da paz correndo como rio... Jejuamos,
rezamos e fazemos penitência para não passarmos ao largo ou relativizarmos a
única coisa que vale a pena.
E qual é
este bem precioso do qual não podemos abrir mão? É o novo céu e a nova terra,
um país sem miséria e sem
corrupção, mas também sem injustiças nem desigualdades; uma cultura que
enfatiza a relações
harmoniosas entre as gerações, entre
os grupos sociais, com a natureza e até com a morte, parte insuprimível da vida. E isso mesmo quando somos
instados a desconfiar de quem anuncia boas notícias e duvidar de que ainda haja
boas notícias. Quantas são hoje as pessoas, inclusive lideranças religiosas,
que não acreditam em nenhuma mudança ou melhoria nas relações humanas e
sociais?!
Jesus
percorre caminhos que o levam do rio Jordão ao deserto e, do deserto, à
Galiléia. Caminhos que o afastam dos palcos e o aproximam da margem. Estradas
que levam ao encontro do povo cansado e abatido para anunciar-lhe a Boa Notícia
da chegada do Reino de Deus, da renovação da aliança selada com Noé e com
Moisés. Eis o rumo que seus discípulos e discípulas precisamos seguir. É apenas
um rumo, e não uma estrada bem sinalizada. Os caminhos concretos somos nós que
devemos inventar, na força do batismo e com uma consciência boa e reta, como
nos diz São Pedro na sua carta.
Jesus, voz que clama no deserto! Faz que
nossa oração oxigene nossa fé e nos mantenha abertos às tuas promessas. Que o jejum nos ajude a
perceber nossos limites e potencialize nossa sede de paz e de justiça. Que a
partilha com os mais pobres seja semeadura de novas relações, fecundadas pelo
amor e pelo serviço generoso. Que nossas celebrações comunitárias nos mantenham
numa atitude vigilante e nos sustentem na necessária conversão. E não permitas que o cansaço ou a pressa nos
prendam aos velhos hábitos e nos
impeçam de servir ao bem comum, como indivíduos e como Igreja. Amém! Assim
seja!
Pe. Itacir Brassiani msf
(Livro
do Gênesis 9,8-15 * Salmo 24 (25) * Primeira Carta de Pedro 3,18-22 * Marcos
1,12-15)
Nenhum comentário:
Postar um comentário