Na Sagrada Família se revela o dom de Deus à humanidade.
No dia em que
festejamos a família de Jesus não podemos ceder à piedosa tentação de imaginar
uma família idealizada e espiritualizada, alheia à nossa realidade histórica e
material. Do ponto de vista sociológico, a Sagrada Família é uma família judia
absolutamente normal, tão normal que sequer despertou a atenção dos vizinhos e
da sinagoga, a não ser depois do evento pascal de Jesus. Essa família viveu os
valores e práticas de uma família crente, frequentando a sinagoga, meditando a
Palavra dos profetas, peregrinando ao Templo, celebrando a liturgia doméstica,
esperando a vinda do Messias.
É isso que vemos no
evangelho de hoje. Maria e José cumprem a lei que pede que, depois do parto, as
mulheres vão ao templo para se purificar. E apresentam Jesus ao Templo e ao
povo. A Sagrada Família percorre o caminho que leva da marginalidade de Belém
ao centro de Jerusalém, e nada de especial se percebe enquanto cumpre as leis
prescritas pela sua tradição religiosa. O momento alto e revelador está
centrado no encontro com Simeão e Ana, idosos, piedosos e profetas. E aqui tudo
chama a atenção para o significado do filho que Maria e José carregam nos
braços.
Simeão toma nos braços aquela criatura vulnerável e, com seu olhar
transparente e penetrante, é capaz de discernir a presença libertadora de Deus na
fragilidade de uma criança. E trata-se de uma salvação que desborda as
fronteiras étnicas e religiosas de Israel. “Meus olhos viram a tua salvação,
que preparaste diante de todos os povos,
luz para iluminar as nações e glória do
teu povo, Israel”. Ana também “falava do menino a todos os que esperavam a
libertação de Jerusalém”. Daqui brota o imperativo missionário de trabalhar
para que todos os seres humanos sintam-se e atuem efetivamente como irmãos na
única família do Pai.
Em Jerusalém, Maria e José experimentam um certo brilho e uma grande
satisfação subjetiva. “Estavam maravilhados com o que diziam do menino”. Poucas
coisas estavam claras, mas neles cresce a percepção de que o filho que lhes foi
confiado é especial para todos os povos. Este entusiasmo, porém, logo é
temperado pelas palavras misteriosas que Simeão dirige a Maria: “Eis que esse
menino será causa de queda e elevação de muitos em Israel. Ele será um sinal de
contradição. Quanto a você, uma espada há de atravessar-lhe a alma. Assim serão
revelados os pensamentos de muitos corações.”
Unidos pelos laços de um amor profundamente humano e dentro do horizonte
das tradições do seu povo, José e Maria avançam no escuro da fé. Como Abraão,
se lançam na estrada da fé sem saber onde chegarão. Ousaram acreditar, e isso
lhes foi creditado como justiça. Tiveram que se abrir sempre mais à novidade
que Deus manifestava através do filho que lhes fora confiado. E os evangelhos
fazem questão de sublinhar que Nazaré é o lugar onde Jesus cresce, se fortalece
e adquire sabedoria. José e Maria educam o filho longe do ambiente glorioso e
sedutor do templo...
Para a Sagrada Família, morar em Nazaré significou assimilar a esperança
cultivada pelo “resto de Israel”, pelo “broto das raízes de Jessé”. Significou
também: não se afastar das raízes populares, do vínculo com os pobres; assumir
resolutamente o caminho que leva à periferia, àqueles que estão longe; e
privilegiar a encarnação no cotidiano que tece a vida normal de todas as
pessoas. Jesus afunda raízes e absorve a seiva das esperanças do seu povo a
partir da periferia social e religiosa. Eis aqui uma perspectiva que os
missionários jamais devem abandonar!
A convicção de Paulo e da comunidade cristã é que o amor é o vínculo da
perfeição da vida cristã, e também da família. É no amor que as esposas podem
ser solícitas aos seus respectivos maridos, e estes deixam de ser grosseiros
com elas. É o amor que abre possibilidades para que a obediência dos filhos aos
pais não atente contra a liberdade e a dignidade de ninguém, e que os pais jamais
intimidem os filhos, mas os animem a caminhar rumo à maturidade solidária. É
assim que nos revestimos de sincera misericórdia, bondade, humildade e
mansidão, e tornamo-nos suportes uns para os outros.
Sagrada Família de Nazaré, nós
te acolhemos como ambiente e proposta de encarnação e de crescimento, como manifestação
do dom de Deus e resposta humana e generosa a este dom, como busca comum da
vontade de Deus, como ambiente de hospitalidade e amor recíproco e de
construção incansável da única família do Pai. Ajuda e inspira nossas famílias
a serem pequenas tendas da tua Palavra viva, escolas da comunhão e
solidariedade que ultrapassam os laços de sangue e de fé, espaços de perdão e
reconciliação, ensaios fugazes mas verdadeiros do Reino de Deus, no qual
espelhaste tua vida. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
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