João: o profeta que
veio preparar a estrada
(Is 49,1-6; Sl 138/139; At 13,22-26; Lc
1,57-66.80)
A festa de São João está
profundamente arraigada na cultura do povo brasileiro. Em algumas regiões
tornou-se até atração turística, e é explorada como ocasião para ganhar
dinheiro ou consolidar votos. Mas esta é uma festa que só aparentemente se
distanciou do seu nascedouro bíblico e profético, pois a alegria simples e
inocente que a caracteriza brota da certeza de que Deus não esquece a aliança
que fez conosco, visita e liberta seu povo, e envia profetas e profetizas que
preparam caminhos novos. Por isso, celebremos este dia com trajes e comidas que
nos aproximam do povo simples, mas também com a alegria que brota da liberdade
que virá, e com a coragem profética que João nos deixa como herança.
“E alegraram-se com ela...”
A festa de hoje não exige uma
mega-produção. Bastam uma pequena fogueira e fogos de artifício, algumas roupas
simples e baratas, uma banda improvisada e capaz de tocar a alma popular,
alimentos que custam pouco e tém sabor de intimidade, bandeirinhas coloridas
nos varais e balões levados ao sabor do vento, gente boa e amável que se despe
dos trajes que demarcam fronteiras, consolidam hierarquias e impõem honrarias.
Os degraus do poder são substituídos
pela roda que a todos iguala nas mãos dadas. A seriedade sisuda dos comandantes
e a resignação calada de quem deve obedecer o ritmo de produção ditado pela
sede de lucro dá lugar a uma alegria que não há como esconder, uma alegria que
lança raízes no passado bíblico que nos pertence e se embebeda das luzes de um
mundo novo que está por vir. De repente, os operários viram artistas, os
camponeses se revelam bailarinos, os coadjuvantes são protagonistas.
“Os vizinhos e parentes ouviram quanta misericórdia o
Senhor lhe tinha demonstrado.”
A alegria, assim como a irreverência,
têm força revolucionária e raízes bíblicas. Não se trata da alegria forçada
pelas drogas lícitas ou ilícitas, nem da felicidade histérica daqueles que se
deleitam com os bens subtraídos aos homens e mulheres que os produzem, da
alegria produzida artificialmente por líderes religiosos sequiosos de domínio e
de riqueza, ou estrelas políticas e midiáticas que seduzem incautos mas duram
pouco mais que uma noite.
Trata-se da alegria que brota da
descoberta de que Deus olha para as mãos calejadas, para os rostos sofridos, para
os corpos vergados e os corações partidos e os vê e proclama cheios de graça,
plenos de charme. “Alegra-te, cheia de graça! O Senhor está contigo! Bendita és
tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre” (Lc 1,28.42). A notícia
de que Deus nos ama desde sempre e para sempre faz pular de alegria até os
bebês que ainda estão nos úteros. “Feliz aquela que acreditou!” (Lc 1,45).
Como Maria na casa de Isabel,
alegramo-nos em Deus porque ele olhou para a humilhação dos seus filhos e
filhas; porque sua misericórdia se estende de geração em geração; porque ele
mostra a força do seu braço derrubando os poderosos dos tronos e elevando os
humildes; porque enche a mesa dos pobres e despede os ricos de mãos vazias;
porque acolhe o seu povo e não esquece o compromisso jurado aos nossos
antepassados.
“Que vai ser este menino?”
Assim, a alegria inocente e
despojada das festas juninas têm raízes na história da salvação, que atravessa
e supera a história da opressão que está ainda hoje em curso. Antes de mais
nada, o nascimento de João representa a delicadeza de um Deus que levanta o
manto da vergonha e da dor que, numa sociedade machista, pesa sobre uma mulher
idosa e sem filhos (cf. Lc 1,25). E quando o menino nasce, a vizinhança toda se
alegra com esta demonstração da misericordia de Deus. É essa alegria atravessou
a história e chegou até os mais recônditos rincões do Brasil.
E a razão dessa alegria vem
sacramentado no próprio nome dado àquele prodígio nascente: João significa
literalmente ‘Deus age com misericórdia’. Ao dar este nome ao filho, Zacarias e
Isabel rompem com a tradição e renunciam a fazer do filho um espelho dos
desejos do pai, um sacerdote como ele. João não será sacerdote mas profeta. Nas
palavras que voltam aos lábios de Zacarias em forma de canção, ele será
‘profeta do Altissimo’, porque irá à frente do Senhor, ‘preparando os seus
caminhos, dando a comhecer ao seu povo a salvação, com o perdão dos pecados,
graças ao coração misericordioso do nosso Deus’ (cf. Lc 1,76-78).
Segundo os evangelhos, João
despertará a ira de Herodes ao denunciar seu casamento com a cunhada (cf. Mc
6,17-18). Mas este homem frágil e intrépido é muito mais que um pregador
preocupado com a moralidade das relações e vínculos matrimoniais. João é um
autêntico profeta, na linha dos grandes profetas de Israel, que exige mudanças
radicais tanto o âmbito pessoal como na esfera social. Eias sua voz: “Preparai
os caminhos do Senhor; endireitai as veredas para ele. Produzi frutos que
mostrem vossa conversão. Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem; e quem
tiver comida, faça o mesmo...”
“Desde o seio
materno, o Senhor me chamou...”
A liturgia de hoje nos convida a
refletir sobre a fonte da profecia, assim como foi experimentada e descrita por
Isaías. A profecia nasce da descoberta de ser chamado pelo nome desde um tempo
imemorial, desde o seio materno. Não é o indivíduo que decide ser profeta. É
Deus que o elege. “Tu és meu servo, é em ti que vou brilhar.” E isso leva leva
a duras batalhas, a confiar somente no Deus que chama e que vai à frente, a
descobrir-se mais servo que senhor, mais aprendiz que professor.
É importante ter presente que
Zacarias parece inicialmente não entender ou não aceitar a vocação profética do
filho. Seu ouvido se fecha e sua boca se cala. Sua língua se solta e seus
ouvidos se abrem somente quando ele se liberta das malhas da tradição
sacerdotal e reconhece que a vocação de João é mostrar a misericórdia de Deus
em favor do povo e defendê-los dos inimigos. Oxalá todos os pais e mães possam
dar o melhor de si para que seus filhos e filhas descubram e realizem sua
vocação na Igreja e no mundo de hoje, antecipando isso no próprio nome que
escolhem para eles!
“Quero fazer de ti uma luz para as nações...”
O perdão gratuito dos pecados que
João pregará será uma senha que abrirá as portas da vida a todos os excluídos,
tanto judeus como pagãos. À luz de Isaías, podemos dizer que a profecia
autêntica não se deixa limitar pelas paixões nacionalistas. “É muito pouco
seres o meu servo só para resutaurar as
tribos de Jacó, só para trazer de volta os
israelitas que escaparam. Quero fazer de ti uma luz para as nações, para que minha salvação chegue até os confins do mundo.”
As comunidades cristãs reúnem homens
e mulheres que descobriram sua vocação de derrubar muros, de ultrapassar
fronteiras – geográficas, sociais, políticas e culturais – para abrir estradas
e edificar pontes capazes de unir diferentes grupos humanos. Sem esquecer que
nossa vocação também é superar as estreitas fronteiras eclesiais e doutrinais,
procurando levar a semente perigosa e promissora do Evangelho aos âmbitos
econômico, político e cultural. A boa profecia não se detém na proposta de uma
reforma dos costumes.
“A mão do Senhor estava com ele...”
No clima alegre e singelo das festas
juninas não posso deixar de mencionar o testemunho profético de um jovem que
nos deixou tragicamente há poucos anos. Ele se chamava Pedro Fukuyei Yamaguchi
Ferreira, tinha 27 anos e era advogado, filho de Paulo Teixeira Ferreira (deputado
federal pelo PT-SP) e da advogada Alice Yamaguchi Ferreira. Pedro renunciou a
uma promissora carreira advocatícia em São Paulo foi a São Gabriel da Cachoeira (AM)
como missionário leigo e advogado popular a serviço dos indígenas. Morreu
afogado no rio Negro alguns meses depois.
O Bispo de São Gabriel da Cachoeira,
testemunha a seu respeito: “Como os índios das vinte e três etnias do Rio Negro
se consideram parentes, Pedro já tinha sido adotado como parentes deles. Era
alegre, comunicativo, bem humorado, apaixonado por samba e futebol...” Recentemente
Pedro escrevera aos amigos: “Tenho trabalhado bastante. As pessoas têm me
procurado bastante, e ficam aliviadas quando sabem que eu não cobro pelo
trabalho... Eu quero trabalhar para mostrar que cadeia não funciona e que temos
de achar outras soluções, sobretudo com os Povos Indígenas, que têm
peculiaridades culturais próprias.” Vivam sempre a alegria, a coragem e a
liberdade proféticas!
Pe. Itacir Brassiani
msf
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