segunda-feira, 3 de junho de 2013

Caminhando com Jesus ao Calvario

Como uma pedra rejeitada pelos construtores

Este é o nosso sexto dia de peregrinação nos caminhos trilhados por Jesus, e esta é minha sétima crônica sobre esta aventura. Hoje nossa peregrinação foi praticamente toda dentro do território de Israel, seguindo os últimos passos de Jesus. Mas antes de iniciar este relato, quero agradecer aos amigos/as e coirmãos que têm acompanhado e apreciado nosso percurso mediante a leitura destas crônicas, especialmente aqueles/as que tiveram a delicadeza de nos escrever.
Casa de Joaquim e Ana
Os padroeiros dos vovôs
Assim que entramos na cidade murada, que hoje é uma parte bascicamente comercial e árabe de Jerusalém, paramos no complexo de Bethesda. Trata-se de um conjunto de piscinas cuja água, no tempo de Jesus, era utilizada para fins terapêuticos e para purificar as ovelhas que seriam sacrificadas no templo. Lembramos daquele paralítico que não conseguia ser curado porque outros entravam na sua frente? Hoje Bethesda é um enorme sítio arqueológico ainda em estudo.
A igreja dedicada a São Joaquim e Santa Ana, pais de Maria e avós de Jesus fica neste sítio. Segundo a tradição, ali teria nascido e vivido Maria, até o momento em que foi prometida em casamento a José. Entramos neste belo e despojado templo e rezamos pelos avós, lembrando que Joaquim e Ana fazem parte da Sagrada Família e são os padroeiros dos vovôs.
A via dolorosa
Deixamos a igreja e começamos a percorrer o caminho que Jesus trilhou nos últimos momentos da sua vida. Algumas das tradicionais quatorze estações estão assinaladas com alguma igreja ou oratório, mas outras se resumem a um simples sinal no muro, e o que chama a atenção é que hoje a via-crucis está em pleno centro comercial da cidade. Os peregrinos se misturam e confundem com os turistas e comerciantes. Por isso, rezamos juntos as estações apenas onde isso era possível, deixando as demais à meditação individual.
Aqui Jesus foi julgado e condenado
Em português, nos referimos a este caminho como ‘via-sacra’, roubando a palavra à ideologia do império romano (que designava com esta expressão a rua pela qual desfilava a corte e o exército imperial para celebrar suas vitórias militares) e dando-lhe um significado novo e diverso: a via sagrada não é aquela da guerra vitoriosa e violenta, mas da doação de si por amor; e os senhores que merecem o nosso respeito não são generais e imperadores, mas o amigo e servidor da humanidade, Jesus de Nazaré.
Experiências de solidariedade que salva
Não me parece justo falar da via-sacra como ‘via dolorosa’. É verdade que a dor está profundamente presente neste caminho, mas não é este seu conteúdo espiritual mais relevante. Penso que o mais importante deste caminho é o mergulho definitivo de Deus na condição humana, partilhando conosco não uma ‘natureza’ abstrata mas uma ‘condição’ humana de humilhação e impotência.
Aqui Cirineu ajudou Jesus
E não se trata apenas de uma impotência como que ontológica ou existencial, mas daquela condição concreta das pessoas a quem os poderes institucionalizados roubaram a potência e a dignidade, reduzindo-as a meios e joguetes de interesses pouco humanos. As estações da condenação, do coroamento, das quedas, do despojamento das vestes, da crucifixão e da morte evidenciam essa submissão de Jesus à condição humana.
Mas neste caminho sagrado de Jesus, algumas estações recordam gestos de alta densidade e fecundidade humana: o gesto de verônica, a ajuda de Simão de Cirene, a presença das mulheres de Jerusalém, o encontro com Maria. Por isso, poderíamos dizer, provocativamente, que a via-sacra é o caminho no qual a glória de Deus e o brilho humano se mostram com toda a sua força.
“Ele foi incluído entre os fora-de-lei...”
Nas estações que vão da condenação à última queda de Jesus não encontramos muita gente. Mas chegando à basílica do Santo Sepulcro fiquei muito impressionado. Primeiro, com a multidão que se movimentava e comprimia, disputando uma vaga para entrar. Segundo, pela falta de reverência, pela agitação e pelo forte rumor. Terceiro, pelas manifestações exageradas de piedade. Finalmente, pela disputa dos espaços internos da basílica entre as diferentes igrejas cristãs (são seis as que loteram entre si cada espaço ao redor do sepulcro de Jesus).
Mas lá estava, e nós tocamos com as mãos, alguns restos da rocha do calvário que não
O santo sepulcro de Jesus
foram sepultadas pelas edificações. E lá estavam também os restos daquilo que fora a sepultura de pedra que acolheu o corpo ensanguentado e exangue do jovem galileu, do carpinteiro de Nazaré, do Messias que disse que Deus espera gestos de misericórdia e não sacrifícios. Ali, fora dos muros da cidade, o profeta do Reino de Deus foi incluído entre os fora-de-lei (cf. Mc 15,28), sendo-lhe roubado tudo, inclusive o direito à vida.
Permanecemos um longo tempo ali, tentando cavar um silêncio interior nas rochas do tumulto dos turistas, buscando um sentido para aquilo que aquelas rochas testemunharam há dois mil anos atrás. Nestes momentos e lugares a oração não se faz com palavras, e a reflexão não se baseia em silogismos. Nos momentos marcantes da nossa vida simplesmente nos deixamos tocar, como as cordas esticadas de um violão, deixando que venha de fora o movimento capaz de revelar a harmonia e a beleza que se esconde em nós.
“Senhor, ensina-nos a rezar...”
O roteiro da nossa caminhada não seguiu a lógica dos acontecimentos mas o critério da acessibilidade. Assim, depois de uma breve parada para almoço, seguimos para o Monte das Oliveiras, e começamos visitando o lugar da ascensão de Jesus, hoje situado no pátio de uma mesquita. Como a ascensão de Jesus abre o tempo de espera do Espírito, cantamos: “Estaremos aqui reunidos, como estavam em Jerusalém, pois só quando vivemos unidos é que o Espírito Santo nos vem.
Depois, ainda no Monte das Oliveiras, seguimos para a igreja do Pai-Nosso, onde a piedade cristã determinou que Jesus ensinou aos seus discípulos a oração cristã, a oração do Reino de Deus. Isso não parece verossímel, pois Jesus não teria deixado para a última semana da sua vida esta importante lição. Em todos os casos, lá está esta bela oração pintada em mais de oitenta línguas, e foi significativo cantá-la em som e ritmo brasileiros.
Depois, começamos a descer em direção ao vale que separava o pequeno monte dos muros da cidade de Jerusalém, tendo ao lado esquerdo o imenso cemitério hebreu. Os hebreus acreditam que, quando vier, o Messias chegará à cidade santa pelo lado do sol nascente. Por isso, eles disputam com unhas e dentes uma sepultura neste já multi-secular e imenso cemitério.
“Vigiem e rezem, para não cair na tentação...”
Mais ou menos no meio da ladeira, está situada uma pequena igreja em forma de lágrima. Encontramos um grupo de brsaileiros de Joinville neste lugar que recorda uma das passagens mais comoventes da vida de Jesus. “Jesus se aproximou, e quando viu a cidade, começou a chorar. E disse: ‘Se também você hoje compreendesse o caminho da paz! Agora, porém, isso está escondido aos seus olhos...’” (Lc 19,40). Segundo Mateus, Jesus também exclamou: “Jerusalém, Jerusalém... Quantas vezes eu quis reunir seus filhos, como a galinha reúne os pintinhos debaixo das asas, mas você não quis...” (Mt 23,37).
Aqui Jesus olhou Jerusalém e chorou...
Quase no fim da ladeira, próximo do túmulo de Absalon, filho de Davi e daquela que teria sido a sepultura de Maria, está a bela igreja do Getsêmani (que significa literalmente moenda de oliva), com suas janelas escuras, que dão ao templo um ar de melancolia e tristeza. Lá está, como testemunha silenciosa, a pedra na qual Jesus se prostrou, rezando e suando sangue, pedindo que o Pai lhe desse uma luz, enquanto os três discípulos escolhidos dormiam. Ali, diante daquela rocha, meditamos Marcos 14,27-46.
Pedro, fazendo coro com todos os demais discípulos, há pouco havia assegurado a Jesus que jamais se escandalizaria dele. Então Jesus convidou ele, João e Tiago para acompanhá-lo na oração. “Pai, tudo é possível para ti! Afasta de mim este cálice!... Simão, você está dormindo? Você não pôde vigiar nem sequer uma hora?...” No momento mais dramático que antecedeu a sua paixão, e mesmo depois da lição da ceia, os discípulos deixam Jesus sozinho...
“Ali também estavam algumas mulheres, olhando de longe...”
Assim terminamos nossa caminhada de hoje. Voltamos para o hotel com uma sensação estranha. Fomos à missa na igreja vizinha e o evangelho nos falava da vinha arrendada, dos enviados perseguidos, do assassinato do filho e herdeiro, da pedra rejeitada. Marcos sublinha que, na hora H, todos os discípulos abandonaram Jesus, mas um grupo de mulheres que o seguira desde a Galiléia ficou olhando tudo de longe.
A igreja sobre a rocha onde Jesus suou sangue...
Esse é o risco que corremos: ficar olhando tudo de longe, como se a paixão e morte de Jesus fossem algo de outros tempos ou de outra dimensão da vida. Para quem vive aqui tudo é terrivelmente concreto: Maria é de Nazaré; Jesus nasceu logo ali em Belém; o templo estava naquela esplanada; o Monte das Oliveiras fica ali do outro lado; o calvário está logo ali, fora dos muros da cidade, e a sepultura logo abaixo; Anás e Caifás eram as autoridades religiosas do momento...
Não é possível olhar de longe e tirar o corpo fora. Não honramos a memória de Jesus de Nazaré fazendo turismo religioso. Não fazemos justiça ao sonho que deu sentido à sua vida simplesmente acendendo velas e repetindo ritos vazios de vida e de paixão. Traímos sua pobre e fecunda vida se fazemos dele um honrado fundador de um sistema religioso. Esvaziamos sua hostória sagrada se reduzimos tudo a um evento que pode salvar nossa alma.
Não precisamos apenas de algo mais: precisamos de algo totalmente diverso. Ou o caminho de Jesus – sua paixão pelo Reino de Deus e sua compaixão pelos últimos – é nosso caminho, ou devemos pagar aluguel pelo nome que usamos indevidamente.

Itacir Brassiani msf

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