Como uma pedra rejeitada pelos construtores
Este é o nosso sexto dia de peregrinação
nos caminhos trilhados por Jesus, e esta é minha sétima crônica sobre esta
aventura. Hoje nossa peregrinação foi praticamente toda dentro do território de
Israel, seguindo os últimos passos de Jesus. Mas antes de iniciar este relato,
quero agradecer aos amigos/as e coirmãos que têm acompanhado e apreciado nosso
percurso mediante a leitura destas crônicas, especialmente aqueles/as que
tiveram a delicadeza de nos escrever.
Casa de Joaquim e Ana |
Os
padroeiros dos vovôs
Assim que entramos na cidade murada, que
hoje é uma parte bascicamente comercial e árabe de Jerusalém, paramos no
complexo de Bethesda. Trata-se de um conjunto de piscinas cuja água, no tempo
de Jesus, era utilizada para fins terapêuticos e para purificar as ovelhas que
seriam sacrificadas no templo. Lembramos daquele paralítico que não conseguia
ser curado porque outros entravam na sua frente? Hoje Bethesda é um enorme
sítio arqueológico ainda em estudo.
A igreja dedicada a São Joaquim e Santa
Ana, pais de Maria e avós de Jesus fica neste sítio. Segundo a tradição, ali
teria nascido e vivido Maria, até o momento em que foi prometida em casamento a
José. Entramos neste belo e despojado templo e rezamos pelos avós, lembrando
que Joaquim e Ana fazem parte da Sagrada Família e são os padroeiros dos vovôs.
A via
dolorosa
Deixamos a igreja e começamos a percorrer
o caminho que Jesus trilhou nos últimos momentos da sua vida. Algumas das
tradicionais quatorze estações estão assinaladas com alguma igreja ou oratório,
mas outras se resumem a um simples sinal no muro, e o que chama a atenção é que
hoje a via-crucis está em pleno
centro comercial da cidade. Os peregrinos se misturam e confundem com os
turistas e comerciantes. Por isso, rezamos juntos as estações apenas onde isso
era possível, deixando as demais à meditação individual.
Aqui Jesus foi julgado e condenado |
Em português, nos referimos a este caminho
como ‘via-sacra’, roubando a palavra
à ideologia do império romano (que designava com esta expressão a rua pela qual
desfilava a corte e o exército imperial para celebrar suas vitórias militares)
e dando-lhe um significado novo e diverso: a via sagrada não é aquela da guerra
vitoriosa e violenta, mas da doação de si por amor; e os senhores que merecem o
nosso respeito não são generais e imperadores, mas o amigo e servidor da
humanidade, Jesus de Nazaré.
Experiências
de solidariedade que salva
Não me parece justo falar da via-sacra como ‘via dolorosa’. É verdade
que a dor está profundamente presente neste caminho, mas não é este seu
conteúdo espiritual mais relevante. Penso que o mais importante deste caminho é
o mergulho definitivo de Deus na condição humana, partilhando conosco não uma ‘natureza’
abstrata mas uma ‘condição’ humana de humilhação e impotência.
Aqui Cirineu ajudou Jesus |
E não se trata apenas de uma impotência
como que ontológica ou existencial, mas daquela condição concreta das pessoas a
quem os poderes institucionalizados roubaram a potência e a dignidade,
reduzindo-as a meios e joguetes de interesses pouco humanos. As estações da
condenação, do coroamento, das quedas, do despojamento das vestes, da
crucifixão e da morte evidenciam essa submissão de Jesus à condição humana.
Mas neste caminho sagrado de Jesus,
algumas estações recordam gestos de alta densidade e fecundidade humana: o
gesto de verônica, a ajuda de Simão de Cirene, a presença das mulheres de
Jerusalém, o encontro com Maria. Por isso, poderíamos dizer, provocativamente, que
a via-sacra é o caminho no qual a
glória de Deus e o brilho humano se mostram com toda a sua força.
“Ele
foi incluído entre os fora-de-lei...”
Nas estações que vão da condenação à
última queda de Jesus não encontramos muita gente. Mas chegando à basílica do
Santo Sepulcro fiquei muito impressionado. Primeiro, com a multidão que se
movimentava e comprimia, disputando uma vaga para entrar. Segundo, pela falta
de reverência, pela agitação e pelo forte rumor. Terceiro, pelas manifestações
exageradas de piedade. Finalmente, pela disputa dos espaços internos da
basílica entre as diferentes igrejas cristãs (são seis as que loteram entre si
cada espaço ao redor do sepulcro de Jesus).
Mas lá estava, e nós tocamos com as mãos,
alguns restos da rocha do calvário que não
foram sepultadas pelas edificações.
E lá estavam também os restos daquilo que fora a sepultura de pedra que acolheu
o corpo ensanguentado e exangue do jovem galileu, do carpinteiro de Nazaré, do
Messias que disse que Deus espera gestos de misericórdia e não sacrifícios.
Ali, fora dos muros da cidade, o profeta do Reino de Deus foi incluído entre os
fora-de-lei (cf. Mc 15,28), sendo-lhe roubado tudo, inclusive o direito à vida.
O santo sepulcro de Jesus |
Permanecemos um longo tempo ali, tentando
cavar um silêncio interior nas rochas do tumulto dos turistas, buscando um
sentido para aquilo que aquelas rochas testemunharam há dois mil anos atrás.
Nestes momentos e lugares a oração não se faz com palavras, e a reflexão não se
baseia em silogismos. Nos momentos marcantes da nossa vida simplesmente nos
deixamos tocar, como as cordas esticadas de um violão, deixando que venha de
fora o movimento capaz de revelar a harmonia e a beleza que se esconde em nós.
“Senhor,
ensina-nos a rezar...”
O roteiro da nossa caminhada não seguiu a
lógica dos acontecimentos mas o critério da acessibilidade. Assim, depois de
uma breve parada para almoço, seguimos para o Monte das Oliveiras, e começamos
visitando o lugar da ascensão de Jesus, hoje situado no pátio de uma mesquita.
Como a ascensão de Jesus abre o tempo de espera do Espírito, cantamos: “Estaremos aqui reunidos, como estavam em
Jerusalém, pois só quando vivemos unidos é que o Espírito Santo nos vem.”
Depois, ainda no Monte das Oliveiras,
seguimos para a igreja do Pai-Nosso, onde a piedade cristã determinou que Jesus
ensinou aos seus discípulos a oração cristã, a oração do Reino de Deus. Isso
não parece verossímel, pois Jesus não teria deixado para a última semana da sua
vida esta importante lição. Em todos os casos, lá está esta bela oração pintada
em mais de oitenta línguas, e foi significativo cantá-la em som e ritmo
brasileiros.
Depois, começamos a descer em direção ao
vale que separava o pequeno monte dos muros da cidade de Jerusalém, tendo ao
lado esquerdo o imenso cemitério hebreu. Os hebreus acreditam que, quando vier,
o Messias chegará à cidade santa pelo lado do sol nascente. Por isso, eles
disputam com unhas e dentes uma sepultura neste já multi-secular e imenso
cemitério.
“Vigiem
e rezem, para não cair na tentação...”
Mais ou menos no meio da ladeira, está
situada uma pequena igreja em forma de lágrima. Encontramos um grupo de
brsaileiros de Joinville neste lugar que recorda uma das passagens mais
comoventes da vida de Jesus. “Jesus se
aproximou, e quando viu a cidade, começou a chorar. E disse: ‘Se também você
hoje compreendesse o caminho da paz! Agora, porém, isso está escondido aos seus
olhos...’” (Lc 19,40). Segundo Mateus, Jesus também exclamou: “Jerusalém, Jerusalém... Quantas vezes eu
quis reunir seus filhos, como a galinha reúne os pintinhos debaixo das asas,
mas você não quis...” (Mt 23,37).
Aqui Jesus olhou Jerusalém e chorou... |
Quase no fim da ladeira, próximo do túmulo
de Absalon, filho de Davi e daquela que teria sido a sepultura de Maria, está a
bela igreja do Getsêmani (que significa literalmente moenda de oliva), com suas
janelas escuras, que dão ao templo um ar de melancolia e tristeza. Lá está,
como testemunha silenciosa, a pedra na qual Jesus se prostrou, rezando e suando
sangue, pedindo que o Pai lhe desse uma luz, enquanto os três discípulos
escolhidos dormiam. Ali, diante daquela rocha, meditamos Marcos 14,27-46.
Pedro, fazendo coro com todos os demais
discípulos, há pouco havia assegurado a Jesus que jamais se escandalizaria dele.
Então Jesus convidou ele, João e Tiago para acompanhá-lo na oração. “Pai, tudo é possível para ti! Afasta de mim
este cálice!... Simão, você está dormindo? Você não pôde vigiar nem sequer uma
hora?...” No momento mais dramático que antecedeu a sua paixão, e mesmo
depois da lição da ceia, os discípulos deixam Jesus sozinho...
“Ali
também estavam algumas mulheres, olhando de longe...”
Assim terminamos nossa caminhada de hoje.
Voltamos para o hotel com uma sensação estranha. Fomos à missa na igreja
vizinha e o evangelho nos falava da vinha arrendada, dos enviados perseguidos,
do assassinato do filho e herdeiro, da pedra rejeitada. Marcos sublinha que, na
hora H, todos os discípulos abandonaram Jesus, mas um grupo de mulheres que o
seguira desde a Galiléia ficou olhando tudo de longe.
A igreja sobre a rocha onde Jesus suou sangue... |
Esse é o risco que corremos: ficar olhando
tudo de longe, como se a paixão e morte de Jesus fossem algo de outros tempos
ou de outra dimensão da vida. Para quem vive aqui tudo é terrivelmente
concreto: Maria é de Nazaré; Jesus nasceu logo ali em Belém; o templo estava
naquela esplanada; o Monte das Oliveiras fica ali do outro lado; o calvário
está logo ali, fora dos muros da cidade, e a sepultura logo abaixo; Anás e Caifás
eram as autoridades religiosas do momento...
Não é possível olhar de longe e tirar o
corpo fora. Não honramos a memória de Jesus de Nazaré fazendo turismo
religioso. Não fazemos justiça ao sonho que deu sentido à sua vida simplesmente
acendendo velas e repetindo ritos vazios de vida e de paixão. Traímos sua pobre
e fecunda vida se fazemos dele um honrado fundador de um sistema religioso.
Esvaziamos sua hostória sagrada se reduzimos tudo a um evento que pode salvar
nossa alma.
Não precisamos apenas de algo mais: precisamos de algo totalmente diverso. Ou o caminho de
Jesus – sua paixão pelo Reino de Deus e sua compaixão pelos últimos – é nosso
caminho, ou devemos pagar aluguel pelo nome que usamos indevidamente.
Itacir Brassiani msf
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