Só a compaixão liberta
e é digna de crédito
(1Rs 17,17-24; Sl 29/30; Gl 1,11-19; Lc
7,11-17)
Depois de um longo tempo dedicada à
caminhada quaresmal e pascal, voltamos ao tempo comum, ao tempo da encarnação
humilde e exigente do Evangelho na vida cotidiana. E o fazemos retomando o
Evangelho de Lucas praticamente no ponto em que o deixamos ao iniciarmos a
quaresma. Neste domingo nos deparamos com um Jesus movido pela compaixão,
intrinsecamente implicado com os múltiplos dramas enfrentados diariamente pelos
pobres e abandonados. Nele, Deus visita e liberta seu povo, transforma o pranto
em alegria e o lamento em
dança. Diante de sua ação recriadora somos convidados a
trocar nossa pesada roupa de luto e penitência por leves e alegres trajes de
festa.
“Os seus discípulos e uma grande multidão iam com
ele.”
O anúncio e a prática do Evangelho
podem ser percebidos hoje praticamente em todo o mundo. Depois de vinte séculos
de história, poucos são os rincões que não têm alguma informação sobre Jesus
Cristo e sobre o cristianismo. E não obstante nossas enormes contradições,
valentes cristãos e valorosas comunidades lançam inconfundíveis sementes de paz
e de vida por onde passa. Apesar de tudo, somos como que uma caravana que, em
nossos vasos de barro, porta o precioso tesouro da compaixão.
Mas não cumprimos esta missão num
ambiente neutro e indiferente. O anúncio que portamos e a ação restauradora que
realizamos se encontra com uma realidade dura e opaca. Nossa caravana de vida
se cruza com os lamentos de um povo marcado pela dor e pela morte. A ação
violenta do exército de Israel contra os pacifistas solidários do povo
palestino que hoje visito é apenas um sinal que vem somar-se a tantos outros,
das ditaduras sanguinárias em alguns países africanos às barreiras que os países
europeus estão impondo aos desesperados migrantes.
É num contexto semelhante que
transcorre a cena narrada pelo evangelista. Depois de se aproximar da casa de um pagão de Cafarnaum e atender seu
pedido e curar seu filho, Jesus vai à pequena cidade de Naim, acompanhado pelos
discípulos e por uma grande multidão. Às portas da cidade, esta caravana de
sonhadores e estropiados se encontra com a procissão que carrega o corpo sem
vida do filho único de uma viúva desamparada. Sem o apoio de um filho homem, uma
viúva praticamente não podia sobreviver num ambiente cultural patriarcal...
“O Senhor ouviu a voz de Elias...”
Às vezes a religião, ou uma
determinada visão de Deus, acaba colocando mais lenha na fogueira do sofrimento
do povo, mais fardos sobre os ombros vergados dos pobres. É o que ocorre com a
anônima viúva de Sarepta. Ela havia hospedado o profeta Elias e partilhado com
ele seu último punhado de farinha. Mas seu filho acaba adoecendo e morrendo. E
a pobre viúva conclui que mediante o profeta, Deus estava lhe jogando na cara os
próprios pecados e punindo seus erros. Como esquecer daquele pastor
norte-americano que disse que o terrmoto Deus castigou o povo haitiano por seu
paganismo?
O próprio Elias parece inicialmente
compartilhar essa visão. Entretanto, sua prece ardente é atendida e o menino
volta à vida. Elias fala e age em nome
de Deus. A viúva o reconhece e confirma como homem de Deus pelos frutos da sua
palavra e da sua ação: ele age em favor dos pobres e desamparados, ajudando-os
a descobrir o melhor que há neles mesmos; a farinha e o óleo partilhados na
generosidade se multiplicam; o filho, arrimo no presente e no futuro, lhe é
devolvido são e salvo.
“O Senhor encheu-se de compaixão...”
O poder distancia, a compaixão
aproxima. O que define e caracteriza o Deus que se revela em Jesus Cristo é a
compaixão que age regenerando a vida, e não o poder sempre pronto a julgar e
condenar. No centro do episódio narrado por Lucas não está o jovem morto mas a
viúva desamparada. É a esta pobre mãe que Jesus dirige seu olhar, consciente do
total abandono no qual estava jogada. É dela que ele se compadece. É a ela que
dirige uma aparentemente patética e insuficiente palavra de consolo.
Como judeu fiel e praticante, Jesus
conhecia os mandamentos que obrigavam a socorrer e proteger as vúvas,
juntamente com os órfãos e estrangeiros (cf. Dt 10,18; 24,17-22; 26,12-13).
“Não faças mal à viúva nem ao órfão. Se os maltratardes, clamarão a mim, e eu
ouvirei seu clamor” (Ex 22,20-21). E Lucas nos mostra que Jesus olha positivamente
para esta categoria de pessoas: a insistência de uma viúva diante do juiz é modelo
para a oração dos cristãos (18,1-8); a pequena oferta de uma pobre viúva é mais
significativa que a volumosa doação dos ricos (21,1-4).
Jesus se aproxima da viúva movido
pela compaixão. O poder distancia, a compaixão aproxima. Mas por que a
teologia, a doutrina e a piedade oficiais insistem em esquecer que é mediante a
compaixão e não por causa do poder que Jesus realiza sua missão libertadora? A
compaixão é a força acolhedora e redentora que move o pai ao encontro do filho
libertado da ameaça de morte (cf. Lc 15,11-32). A compaixão é que move o
proscrito samaritano a socorrer aquele que caiu na mão dos assaltantes e faz dele modelo de crente para judeus e cristãos (cf.
Lc 10,25-37).
“Deus veio visitar o seu povo.”
Movido pela compaixão, Jesus
transgride as leis da pureza, toca no caixão do jovem, faz parar o cortejo,
ordena que o morto se levante e o devolve vivo e saudvel à mãe. Jesus intervém
para diminuir o aperto de uma mulher que, com o desaparecimento do filho, sendo
viúva, perdera a única proteção de que dispunha. Seu gesto é maravilhoso mais
pela atenção às necessidades de uma pessoa desamparada que pela demonstração de
poder. Poucos dispomos de poder, mas a compaixão está ao alcance de todos!
Lucas nos informa que “todos ficaram
tomados de temor e glorificaram a Deus”. E tiravam suas próprias conclusões:
“Um grande profeta surgiu entre nós”; “Deus veio visitar seu povo”. É o mesmo
temor, a mesma alegria e o mesmo louvor que brota dos lábios dos pastores
diante do nascimento de Jesus entre os pobres de Belém (cf. Lc 2,8-20); do povo
diante da cura de um paralítico (cf. Lc 5,17-26); da mulher curada de uma
doença que a encurvava há dezoito anos (cf. Lc 13,10-13); do leproso
gratuitamente curado (cf. Lc 17,11-19); e do cego que pedia esmolas e
recuperara a vista (cf. Lc 18,35-43).
“Mudaste em dança o meu lamento...”
Jesus Cristo revela que Deus é
compaixão e misericórdia, e nisso ele não muda. Mas Deus sempre está em ação
para mudar os mecanismos e instituições que oprimem e escravizam seus filhos e
filhas. Não é verdade que há um destino imutável, que não há como fugir da
lógica que condena multidões a uma exclusão inexorável e enexplicável. “Tu me
fizeste voltar do abismo”, proclama o salmista agradecido. “Mudaste em dança
meu lamento, minha veste de luto em roupa de festa”, continua.
O apóstolo Paulo viveu esta mudança
em sua biografia pessoal e não se envergonha de escrever: “Ouvistes falar como
foi outrora a minha conduta no judaísmo: com que excessos eu perseguia e
devastava a Igreja de Deus e como progredia no judaísmo mais do que muitos
judeus da minha idade, mostrando-me extremamente zeloso nas tradições
paternas.” Seu encontro pessoal com Cristo foi uma experiência de ser amado,
chamado e enviado para uma missão que mudaria radicalmente sua vida.
Às vezes somos assaltados e sitiados
por uma sensação de derrota e de impotência. Parece que os mecanismos e
estruturas que discriminam e excluem são demasiadamente sólidos e nossos esforços
e lutas são líquidos ou gasosos. A própria Igreja se parace com a cidade de
Naim, fechada em si mesma, protegida por e sólidos muros, refratária a qualquer
sopro de mudança. Mas João XXIII, cuja passagem recordamos nesta semana
(+03.06.1963), não pensava assim. E a história mostrou que ele tinha razão.
Jesus de Nazaré, peregrino no santuário das dores humanas: ajuda-nos a
extrair da compaixão a sensibilidade, a coragem e a perseverança para manter em
movimento a caravana da vida, para bloquear a caravana da morte, para recriar
os mecanismos que protegem os desamparados. E ajuda-nos a perceber que tu vens
para mudar a sorte do teu povo. Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani
msf
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