Será que nós entendemos o que Jesus fez?
Este foi praticamente nosso último dia de peregrinação
na terra santa, já que reservamos umas horas do dia de amanhã para um momento
mais prolongado de oração na gruta do nascimento de Jesus. Em seguida, ao
meio-dia, partiremos para o aeroporto. Hoje nosso dia foi todo dedicado a
Jerusalém. Retomamos alguns dos últimos passos de Jesus, visitamos alguns outros
lugares caros ao judaísmo e reservamos uma hora inteira para rezar junto à
sepultura de Jesus.
Nossa primeira parada, logo de manhã, foi
na igreja construída sobre o lugar onde habitava o sumo-sacerdote Anás. Ali
Jesus foi julgado, condenado e jogado numa cela, que ainda hoje se conserva e
pode ser visitada nas escavações sob o templo. A igreja é conhecida como Canto do Galo, pois teria sido ali que,
depois de Pedro ter negado seus vínculos com Jesus três vezes, o galo cantou.
A cena narrada pelos evangelhos é paradoxal.
Aquele que se reúne ali não é um tribunal que avalia as acusações contra o
reformador galileu, mas um tribunal de exceção, cuja tarefa é dar um verniz de
legalidade a uma condenação já decretada. As provas são apenas detalhes de
menor importância. Marcos registra que os testemunhos eram falsos e
contraditórios entre si (cf. Mc 14,53-59).
Mas este lugar quer recordar as
contradições que marcam a vida de todo discípulo/a de Jesus, a começar por
Pedro. Fazia pouco tempo que, desafiado por Jesus, ele havia declarado: “Ainda que eu tenha que morrer contigo, mesmo
assim não te negarei.” (Mc 14,31). Misturado com os soldados reunidos no
pátio e interrogado por eles e outras pessoas sobre Jesus, tomado de medo,
Pedro negou: “Nem conheço esse homem de
quem vocês estão falando.” (Mc 14,71). Então o galo fez ouvir seu canto,
Pedro se lembrou do que Jesus lhe havia dito, e chorou...
Pobre Pedro... Tão generoso, a ponto de
fazer pouco caso das próprias contradições. Tão parecido conosco, com as
lideranças da Igreja, mais nas contradições e incoerências que no
arrependimento e nas lágrimas. É triste quando, diante de alguém que aponta
nossos pequenos e grandes pecados, nós desconversamos como Pedro: “Não sei nem
compreendo o que você diz...”
Cela onde Jesus ficou preso |
“Inclina os teus ouvidos ao meu clamor...”
Depois de meditar sobre essa passagem do
Evangelho, cantamos: “Um certo dia, ao tribunal, alguém levou o jovem galileu.
Ninguém sabia qual foi o mal e o crime que ele fez, quais foram seus pecados.
Seu jeito honesto de denunciar mexeu na posição de alguns privilegiados.” Mas é
sempre importante lembrar que a vida de Jesus não lhe foi simplesmente roubada:
ele a doou livremente e com plena consciência ao povo que amava.
Descemos à cela, que estava sob a casa do
sumo-sacerdote (que dispunha também de uma guarda policial) onde Jesus possivelmente
tenha ficado preso. Ali, no ventre da rocha fria e envolvidos por um silêncio
gritante, recitamos o Salmo 88/87. Possivelmente Jesus o tenha recitado naquela
noite, misturando o sentimento de terror de quem vê a morte de frente e a
confiança própria de um homem de fé profunda e inabalável. Depois desta
experiência, ao recitarmos este salmo, nossos sentimentos serão muito mais concretos.
“Senhor Deus da minha salvação, diante de ti tenho clamado de
dia e de noite.
Chegue a minha oração perante a tua face, inclina os teus
ouvidos ao meu clamor;
Porque a minha alma está cheia de angústia, e a minha vida se
aproxima da sepultura.
Estou contado com aqueles que descem ao abismo; estou como
homem sem forças,
Estou entre os
mortos, como os feridos de morte que jazem na sepultura, dos quais te não
lembras mais, e estão cortados da tua mão...
Eu, porém, Senhor, tenho clamado a ti, e de madrugada te
esperará a minha oração.
Senhor, porque rejeitas a minha alma? Por que escondes de mim
a tua face?
Estou aflito, fui infeliz e moribundo desde a minha
mocidade...
Eles me rodeiam todo o dia como água; eles juntos me sitiam.
Desviaste para
longe de mim amigos e companheiros, e os meus conhecidos estão em trevas.”
Depois, seguimos para o lugar em que transcorreu
um fato cronologicamente anterior: o lugar da última ceia de Jesus, que está a menos
de um quilômetro acima da igreja do Canto
do Galo. O Cenáculo estava muito tumultuado, não pelas orações em diversas
línguas mas pelos diversos grupos de turistas, especialmente as caravanas de
estudantes.
Recordamos que ali, repartindo pão e vinho
como sacramento da doação de si mesmo e lavando os pés dos discípulos, Jesus
deixou-nos seu testamento. A pergunta dele ressoa ainda hoje nos ouvidos de
quem repetimos o rito eucarístico numa perspectiva habitual e quase mágica: “Vocês compreenderam o que eu acabei de fazer?”
(Jo 13,12)
Além do memorial eucarístico, celebrado
num clima de ternura, amizade e apreensão, esse lugar testemunhou o
ressurgimento e o arranque missionário da comunidade dos discípulos/as com o
recebimento do Espírito Santo. É importante lembrar que naquela ‘sala de cima’
não estavam apenas os doze apóstolos, acompanhados por Maria, mas toda uma
comunidade de mais de cem discípulos/as de Jesus (cf. At 1,15; 2,1).
Afastamo-nos um pouco do tumulto e, mesmo
no corredor, meditamos sobre a última ceia de Jesus (Mc 14,12-25). E lembramos que dali os apóstolos partiriam
renovados pelo Espírito Santo para anunciar o Reino de Deus em Jerusalém, na
Judéia, na Samaria e até os confins do mundo. Por isso, invocamos o santo Sopro
de Deus cantando: “Espírito de Deus, desce sobre nós! Guia-nos, Espírito,
salva-nos, forma-nos! Rende-nos dóceis, humildes, simples! Suscita virgens,
dá-nos apóstolos! Liberta os pobres, dá a paz aos povos!”
Mosaico de N.S.Guadaupe, no interior da igreja da dormiçao |
“Porque
não me abandonarás no túmulo...”
Nas imediações está também o lugar onde
Maria teria falecido, a ‘igreja da dormição’. Na verdade, é nesta colina, nas
imediações do Cenáculo, que habitaram os apóstolos, e também Maria. Segundo a
teologia católica, Maria foi assunta no céu em corpo e alma, mas isso não
significa que não tenha morrido. Nossa fé diz que seu corpo foi glorificado, e
isso não exclui a morte.
A propósito, ontem visitamos o lugar que
onde teria sido sepultado o corpo de Maria, aos pés do Monte das Oliveiras, nas
margens da torrente de Cedron. Estas palavras do Salmo 16/17 poderiam ter saído
da boca de Maria: “Tenho Javé à minha
frente sem cessar. Com ele à minha direita, jamais vacilarei. Por isso, meu
coração se alegra, minhas entranhas exultam, e minha carne repousa em
segurança; porque não me abandonarás no túmulo, nem deixarás o teu fiel ver a
sepultura.”
A igreja que faz memória da passagem de
Maria para a glória é muito linda. Contém vários mosaicos de inspiração bizantina,
que representam passagens da vida de Nossa Senhora e algumas de suas
manifestações, como aquela de Guadalupe. Ali invocamos o nome da Mãe e
cantamos, ante os olhares surpresos de muitos turistas: “Pelas estradas da
vida, nunca sozinho estás. Contigo pelo caminho, Santa Maria vai.”
O muro de todos os lamentos... |
“Junto aos rios da Babilônia nós choramos com saudade
de Sião.”
Depois dessas três visitas, atravessamos
os muros da cidade, percorremos um trecho daquele que era o principal eixo
viário da Jerusalém do tempo de Jesus e paramos para um rápido almoço. Com as
pernas mais em dia e as energias refeitas, descemos ao Muro das Lamentações,
ponto de encontro e de oração dos judeus dispersos no mundo e lugar de
peregrinação de quem lhes é próximo.
Começamos lembrando do alegre cântico dos
peregrinos quando avistavam a cidade querida: “Alegrei-me com
os que me disseram: "Vamos à
casa do Senhor!" Nossos pés já se encontram dentro de suas
portas, ó Jerusalém!... Para lá sobem as tribos do
Senhor, para dar graças ao Senhor... Lá estão os tribunais de justiça... Vivam
em segurança aqueles que te amam! Haja paz dentro dos teus muros
e segurança nas tuas cidadelas! Em favor de meus irmãos e amigos,
direi: Paz seja com você! Em favor da casa do Senhor, nosso Deus,
buscarei o seu bem.” (Salmo 122/121)
Com a destruição do templo, obra do
império romano, com a progressiva dispersão dos judeus e substituição da
população local, e, mais tarde, com a conquista dos árabes, os hebreus perderam
o templo, referência fundamental da sua fé. Impedidos de acessar à antiga
esplanada do templo, aquele resto de muro era o que lhes restava de mais
próximo ao antigo lugar sagrado. E desde então é ali que os hebreus acorrem
para apresentar a Deus seus lamentos.
Imagem panoramica do muro das lamentaçoes |
Juntamos nosso lamento àquele dos hebreus,
mas também à dor dos palestinos, dos índios brasileiros e de todas as pessoas e
povos que perderam ou tiveram roubadas suas referências religiosas e culturais.
E rezamos com o Salmo 137/138, composto num outro contexto histórico, mas
enraizado em semelhante dor: “Junto aos rios
da Babilônia nós nos sentamos e choramos com saudade de Sião. Ali, nos
salgueiros, penduramos as nossas harpas; ali os nossos captores pediam-nos
canções, os nossos opressores exigiam canções alegres... Como poderíamos cantar
as canções do Senhor numa terra estrangeira? Que a minha mão direita definhe, ó
Jerusalém, se eu me esquecer de ti! Que me grude a língua ao céu
da boca, se eu não me lembrar de ti e não considerar Jerusalém a minha maior
alegria!”
“Ele
ressuscitou! Não está aqui”
Às mulheres que foram de madrugada à
sepultura para ungir o corpo sem vida de Jesus e se assustaram ao ver que a
pedra fora rolada, os mensageiros divinos esclareceram: “Não fiquem assustadas! Vocês estão procurando Jesus de Nazaré, que foi
crucificado? Ele ressuscitou! Não está aqui! Vejam o lugar onde o puseram...”
(Mc 16,6). Esse é o fundamento da fé cristã, mas desde cedo aqueles que
aderiram a Jesus começaram a peregrinar ao seu sepulcro.
Assim também nós hoje: mesmo sabendo que
Jesus não está lá, e mesmo tendo já visitado sua sepultura ontem, voltamos lá hoje.
Ontem queríamos ver, chegar perto, observar, fotografar. Hoje voltamos para
rezar, indiferentes ao tumulto de sempre. E lá permanecemos em silêncio por
mais de uma hora. Não tem magia nenhuma, mas estar próximo do lugar de onde
Jesus assumiu e recapitulou os clamores de todas as criaturas nos convida a
alargar os braços da nossa oração e assumir nelas todos os clamores, conhecidos
ou ignorados, expressos ou inarticulados.
Na tentativa de perceber as fibras e
nervuras que unem todas as pessoas e povos, que criam e sustentam a comunhão de
todas as coisas, pedimos o dom de compreender que a ressureição de Jesus
significa, entre outras coisas, que no seu corpo despedaçado e na sua vida
doada incondicionalemente se esconde a força de uma semente que germinará em
todas as estações e terras. Entrar no dinamismo da ressurreição significa entrar
no caminho do dom, conseguir ver grandeza e glória no amor que se compadece e
sofre, onde os poderes só identificam nulidade e derrota.
Itacir Brassiani msf
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