quarta-feira, 12 de junho de 2013

11° Domingo do Tempo Comum

Não existe santo sem passado, nem pecador sem futuro
(2Sm 12,7-13; Sl 31/32; Gl 2,16-21; Lc 7,36-8,3)

Na cela da prisão na qual viveu durante muitos anos, condenado pelo regime comunista, o bispo vietnamita Dom François van Thuan sentiu-se tocado por uma frase escrita desajeitadamente na parede: “Não existe santo sem passado, nem pecador sem futuro.” Na sua meditação durante os sombrios e prolongados anos da sua prisão, este autêntico santo do nosso tempo viu nesta frase um resumo do Evangelho. E eu penso que esta é também uma boa chave de leitura para o trecho do Evangelho proclamado neste 11° domingo do tempo comum. Um santo – como todos os cristãos – não nasce santo, mas é uma pessoa que, tocada pelo amor de Deus, entra num permanente processo de conversão. Igualmente, diante de Deus nenhuma pessoa está presa às culpas do passado ou às contradições do presente, por maiores que sejam seus limites pessoais ou sua tragédi.
“Por que desprezaste a Palavra do Senhor, fazendo o que lhe deagrada?”
Como cristãos não somos superiores a ninguém, não ocupamos o centro de nada, nem devemos nos separar das pessoas comuns. Mas as tentações são muitas, persistentes e potentes. Não é verdade que os católicos nos sentimos indiscutivelmente superiores aos cristãos pentecostais? E que os padres e religiosos/as nos sentimos um pouco melhores e superiores frente aos demais membros da comunidade? E que muitos que são bem-sucedidos na vida se sentem mais dignos e meritórios que os demais? Que os brancos se sentem superiores aos negros e os homens mais dignos que as mulheres?
No ventre desta postura de superioridade vai tomando corpo um distanciamento, uma força que separa e traça fronteiras intransponíveis. Os muros que hoje separam israelitas e palestinos em Jerusalém, mexicanos e norte-americanos nos EUA, cristãos e muçulmanos em Chipre são apenas símbolos de tantos outros muros, invisíveis mas sólidos: muros que separam ricos e pobres, cultos e analfabetos, brancos e negros, cidadãos e excluídos, clero e leigos, justos e pecadores, economia e ética...
Na base deste dinamismo destruidor está a presunção de que somos o centro em torno do qual tudo deve girar: o ser humano é o centro e a medida de todas as coisas; a Europa é o centro gravitacional do ocidente; o Estado é o centro propulsor da nação; o clero é o núcleo vivificador da Igreja; a auto-realização é a pedra-de-toque da vida... E até a fé e a religião acabam sendo colocadas a serviço desta ideologia apresentada com cores e sabores de evangelho.
“Se este homem fosse profeta...”
E acabamos sempre buscando um Messias que confirme nossas idéias, projetos e práticas. Assim também Simão, do grupo dos fariseus, convida Jesus para partilhar da sua mesa, convicto de que ele partilha também da sua ideologia religiosa separatista e exlcudente. Presunçosos e separados, os fariseus erguem um muro que separa tudo entre puro e impuro. Estão seguros de ser o verdadeiro povo de Deus, graças à prática minuciosa das leis da pureza. São justos graças a si mesmos.
Simão observa escandalizado que Jesus não toma distância frente a uma reconhecida pecadora que, entrando indevidamente na sala de refeições, lava seus pés com as lágrimas e os enxuga com os cabelos. Isso só confirma sua suspeita: Jesus não é um profeta que age e fala em nome de Deus, mas um “comilão e beberrão, amigo dos publicanos e pecadores” (Lc 7,35). Para este fariseu autêntico, Deus não poderia senão confirmar a ideologia farisaica. Como muitos ainda pensam hoje: Deus só pode confirmar a superioridade do primeiro sobre os outros mundos; do cristianismo sobre as demais religiões; dos homens sobre as mulheres e homossexuais...
“Pequei contra o Senhor!”
Acontece que os profetas começam por desvelar os pecados que escondemos ou maquiamos com nossas belas e ambíguas doutrinas. O profeta Natã faz isso diante do aparentemente ortodoxo e poderoso Davi que, ao que parece, toma consciência das próprias iniquidades e se arrepende. Frente a um Deus que conhece nossa verdade e – apesar ou por causa disso? – nos trata com bondade e compaixão, começamos por reconhecer nossa condição de pecadores/as.
A noção de pacado está ligada mais à experiência de errar ou não alcançar ao na meta desejada do que à transgressão de leis objetivas. Todos experimentamos uma certa incapacidade de realizar plenamente a acolhida, a compreensão e a solidariedade que sinceramente desejamos. E quem não fez a experiência de, por ceder à lei do menor esforço ou por fazer escolhas inadequadas, se desviar destas metas objetivamente boas? Essa é a condição de pecado, que está no DNA da vida humana.
O salmista traduz  esta experiência universal nas palavras sinceras de uma oração: “Reconheço a minha iniquidade. Eis que na culpa fui gerado, no pecado minha mãe me concebeu. Afasta o olhar dos meus pecados. Renova em mim um espírito resoluto” (Sl 50/51). E segundo a parábola contada por Jesus, diante das metas absolutas que nos colocamos todos somos devedores insolventes. Se esta é a comum condição humana na história, como sustentar uma ideologia que divide tudo em bons e maus, puros e impuros, competentes e incompetentes, meritórios e culpados, superiores e inferiores?
“O Filho de Deus me amou e se entrgou por mim.”
O que nos sustenta no seguimento de Jesus Cristo é a experiência de que ele nos ama pessoalmente e se entregou por nós. É isso que faz com que Paulo considere todos os méritos acumulados no horizonte do judaísmo como lixo desprezível. É isso que leva a mulher anônima a vencer todas as barreiras, a ultrapassar os muros levantados pela hipocrisia farisaica e irromper na própria casa daqueles que a condenam. “O Filho de Deus me amou e se entregou por mim...” Não há pecador sem futuro!
Paulo elabora a seu modo os princípios fundamentais deste Evangelho da gratuidade da salvação. Não atingimos a maturidade e a plenitude da liberdade observando prescrições, que acabam sempre fortalecendo nosso ego ou nossas instituições, mas acolhendo o amor de Deus que nos é oferecido como graça e como tarefa em Jesus Cristo. A lei é uma via superada que deve ser descartada, enquanto que a fé é um caminho de vida, uma via pascal. Trata-se de assumir o espírito de Cristo como orientação pessoal de vida. “Eu vivo, mas não sou eu: é Cristo que vive em mim!”
“Qual deles o amará mais?”
Diante de tamanha bondade e gratuidade não há como não ser agradecido. O fariseu não demonstra gratidão e hospitalidade porque pensa que é merecedor da salvação, que é credor diante de Deus. A presunção de mérito nunca se dá bem com a gratidão, uma vez que eleva, incha, distancia, despreza, condena, exige. E cobra até o último centavo, inclusive do próprio Deus. Esta é uma lógica terrivelmente mortal que acaba desumanizando tanto quem a assume como aqueles com quem se relaciona.
A proposta cristã é uma vida agradecida. “Eu não anulo a graça de Deus”, diz Paulo. Isso significa reconhecer que somos pecadores/as acolhidos/as gratuitamente por Deus, mas implica também em fazer da gratuidade e da acolhida sem discriminação o princípio regente das nossas práticas e projetos, tanto individuais como comunitários e institucionais. Longe de nós a fria superioridade do fariseu, incapaz de qualquer gesto de hospitalidade para com Jesus. Precisamos entrar ritmo de Jesus Cristo, que derrubou os muros que separavam e fez nascer um único povo (cf. Ef 2,14).
“É Cristo que vive em mim...”
Somos uma comunidade de pecadores/as redimidos/as gratuitamente. Se às vezes choramos, é por casa da alegria das portas abertas e dos muros derrubados. Para espanto daqueles/as que até hoje questionam quem somos nós para desconhecer os muros erguidos em nome da segurança dos puros e separados, respondemos com a vida que não perdemos a paz, e que é a nossa fé em Jesus Cristo que nos faz pensar e agir assim. Não há santo sem passado, nem pecador sem futuro.
Jesus de Nazaré, coração sem fronteiras, amor lúcido que prioriza os marginalizados, perdão que redime e devolve a dignidade aos pecadores! Somos tua Igreja, uma comunidade de pecadores/as reconciliados/as a serviço da reconciliação da humanidade. Queremos manter as portas abertas a todas/as as pessoas tratadas como últimas. Não totalmente estamos livres das ideologias que discriminam e classificam, mas isso não impede que continuemos a sonhar ser uma Igreja que acolha e promova a diaconia feminina, a partilha de bens e a eliminação dos muros. Assim seja! Amém!


Pe. Itacir Brassiani msf

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