Lourdes: a preferência de Deus pelos insignificantes
Quando
Nossa Senhora se manifestou aqui em Lourdes a Maria Bernadette Soubirous,
naquele 11 de fevereiro de 1858 (quatro anos após a proclamação do dogma da
Imaculada Concieção!), Bernadette tinha apenas quatorze anos de idade. Da mesma
faixa de idade era Melânia (quatorze anos) e Maximino (onze anos, videntes aos
quais Maria se havia manifestado em 1846, doze anos antes, nas montanhas da
Salette (sempre em território francês).
Maria
Bernadette, que veio ao mundo no dia 7 de janeiro de 1844, filha de François e
Louise Soubirous. Há aproximadamente dez anos antes da manifestação de Nossa
Senhora na gruta de Massabielle, às margens do rio Gave, sua família havia migrado
para Lourdes, aos pés dos Pirineus, e administrava um pequeno moinho. Em 1854 a
família havia entrado numa situação de miséria: num acidente, François ficou
cego de um olho; depois veio a falência do moinho; e, como se não bastasse, foi
acusado de roubo e, por causa disso, levado à prisão.
Em 1857
esta situação dramática levou a família a mudar de residência: passou a morar
numa antiga prisão, num espaço de dezesseis metros quadrados! Naquela mesma
época, um surto de cólera se abateu sobre a cidade de pouco mais de quatro mil
habitantes, fazendo trinta e oito vítimas. Nessa época, a própria Maria
Bernadette foi contagiada pela cólera e adoeceu de tuberculose, fato que deixou
profundas sequelas na sua saúde, que doravante seria sempre muito frágil.
Confesso
que me intriga essa preferência de Maria pelas pessoas simples e
insignificantes nas suas manifestações. Será que é porque nós, os adultos e letrados,
nos habituamos a coisas grande e lógicas, fomos picados pela ‘mosca azul’ e não
conseguimos perceber e aceitar os sinais da presença de Deus e sua mãe? Será
que esta ‘opção preferencial’ de Maria é mais uma manifestação da gramática de
Deus, que escreve direito por linhas tortas e vem ao nosso encontro pela
contra-mão?
Escrevo
as linhas e verbalizo estas perguntas ainda em Lourdes, onde vim como peregrino
e estou passando dois dias. O certo é que, ao que parece, Maria sempre se
manifesta onde há dor e sofrimento, e nessas situações procura lembrar que Deus
é bom e próximo, mas também pede mudanças pessoais e estruturais a fim de que
tais sofrimentos sejam amenizados. Por trás de tudo, está sempre uma boa
notícia: o sofrimento não é definitivo nem absurdo; o mundo tem jeito e pode
mudar; Deus não está com quem provoca a dor, mas com que a sofre e com quem ajuda
a amenizá-la.
E aqui em
Lourdes, uma das coisas que me impressionaram mais profundamente, foi a imensa
caravana de doentes que chegam ao santuário conduzidos por mãos solidárias, em
suas cadeiras-de-rodas ou macas. Nem mesmo a chuva e o frio, como ocorreu ontem
à noite, impede que estes doentes participem dos atos religiosos. Que força
misteriosa os move e sustenta? Simplesmente a esperança de uma cura milagrosa?
Creio que não, pois a maioria absoluta dos doentes volta à sua casa sem um
milagre físico. Mas algo acontece, e faz com que essa gente siga adiante, mesmo
sem ter com quem contar...
Aqui em
Lourdes as estruturas e os números são grandes e até espantam, como em todos os
centros de peregrinação: mais de seis milhões de peregrinos por ano; um
complexo de três basílicas (uma subterrânea, com capacidade para acolher mais
de doze mil peregrinos) e várias igrejas e capelas menores; uma enorme rede
hoteleira e demais serviços para acolher e atender essa multidão a caminho...
Chego até a temer que a grandiosidade de tudo isso, assim como o comércio que
gira em torno do Santuário, faça com que o verdadeiro mistério de Lourdes seja
colocado em segundo lugar.
Mas o
desafio da fé é sempre esse: distinguir entre o fogo ou o sopro divino – sua
manifestação sempre concreta mas também precária e incompleta – e as tendas,
casas ou estruturas (físicas, linguísticas, rituais ou doutrinais) que
construímos para abrigar essa manifestação. A beleza litúrgia da missa
internacional da qual participei na manhã de hoje, com sua preparação impecável
e os cantos e mensagens em diversas línguas, não pode perder sua razão de ser:
a manifestação do amor de Deus aos pequenos e insignificantes e, através deles,
a todas as pessoas de boa vontade, para que os sofredores tenham vida em
abundância.
Itacir Brassiani msf
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