Não tenham medo, pois nasceu um libertador!
Aqui em Jerusalém o dia vai terminando.
Recém chegamos da nossa peregrinação pelos arredores de Belém nesse domingo,
que para nós é o dia do Senhor, mas para a população local é o primeiro dia da
semana e dia de trabalho, pois para eles o dia do Senhor é o sétimo, o sábado.
Nossa peregrinação hoje contemplou praticamente apenas dois lugares: o lugar
onde nasceu e cresceu de João Batista e o lugar do nascimento de Jesus.
Uma das grutas do sitio arqueologico |
“Isso
vos servirá de sinal...”
Começamos nossa visita pela gruta dos
pastores. Como fica em Belém, que é território palestino, quem nos acompanhou
foi um guia palestino-cristão, jovem muito simpático chamado Nizar Lama. Ele
nos lembrava que Belém é a cidade de origem de Raquel, esposa de Jacó, cuja
história remonta a 1500 anos antes de Cristo. Fica a 10 km de Jerusalém. Em
hebraico, Bet’lehem significa ‘casa do pão’, mas em árabe significa ‘casa da
carne’. Para mim, depois do nascimento de Jesus, os dois significados apontam
para a mesma coisa...
A primeira gruta que visitamos, chamada
gruta dos pastores, remonta a 1500 anos antes de Cristo. Servia de abrigo
noturno para os pastores e seus rebanhos, e fica a mais ou menos um quilômetro
da gruta da natividade. A gruta dos pastores está situada num grande sítio
arqueológico, que ainda está sendo estudado. Apesar de ter sofrido intervenções
antigas e recentes, a gruta conserva as laterais, o fundo e o teto originais.
Entramos na gruta com grande emoção e
referência. Lemos ali o relato do nascimento
de Jesus e da revelação aos
pastores (Lc 2,1-14). As palavras ditas àqueles trabalhadores socialmente mal-vistos
ressoaram hoje bem mais fortes e límpidas: “Não
tenham medo! Eu anuncio para vocês uma boa notícia, que será uma grande alegria para todo o povo... Hoje nasceu para vocês um Salvador, que é o Messias, o Senhor. Isto
lhes servirá de sinal: vocês encontrarão um recém-nascido envolto em faixas e
deitado na manjedoura.”
Gruta na qual os pastores receveram a boa noticia... |
Terminamos a visita cantando uma bela
canção natalina da tradição italiana, composta por Santo Afonso de Ligório: “Tu desceste das estrelas, ó rei do céu, e
vieste numa gruta fria e gelada... Ó menino meu, divino, eu te vejo aqui a
tremer... Ó Deus bendito, quanto te custou haver-me amado... A ti que és do mundo
o criador, faltam pão e fogo, ó meu Senhor... Meu querido e escolhido, esta tua
pobreza me apaixona, pois a assumiste por puro amor...” Mas não deu para
sair sem murmurar ‘noite feliz...’
“Ela
o enfaixou e o colocou na manjedoura...”
Deixamos o campo dos pastores e nos
dirigimos à gruta da natividade, lembrando daquilo que eles mesmos teriam dito:
“Vamos a Belém ver o acontecimento que o
Senhor nos revelou!” (Lc 2,15). A serena alegria do guia palestino-cristão,
assim como a dor do seu povo, exilado e discriminado na própria terra, que ele
não deixava de partilhar, nos dava a impressão de que é preciso redescobrir o
alcance dessa revelação para o tempo de hoje...
O exato lugar do nascimento de Jesus de Nazaré |
No lugar onde Jesus nasceu, naquele tempo
existia um albergue para os viajantes e peregrinos que vinham do sul e se
dirigiam a Jerusalém. Nos arredores do alojamento, as grutas naturais, muito
abundantes nessa região rochosa, serviam de abrigo para os animais. Então
podemos entender o que aconteceu: Maria e José não encontraram lugar no albergue
e acabaram imporvisando o pouso junto aos animais. E foi ali que nasceu Jesus
de Nazaré, o Salvador.
A gruta da natividade está sob uma
basílica que remonta ao tempo das cruzadas, construída sobre os alicerces da
primeira, mandada construir pelo imperador Constantino no ano 320 dC. Esta
primeira foi semi-destruída pelos persas e reconstruída sob as ordens do
imprador Justiniano, no ano 530 dC. Hoje o espaço está ‘repartido’ entre as comunidades
católica, ortodoxa armênia e ortodoxa grega. Um pouco mais de comunhão deixaria
feliz aquele que ali nasceu...
“E
todos os que ouviam os pastores, ficavam maravilhados...”
O evangelista diz que os pastores foram
até a gruta sinalizada pela estrela, encontraram Maria e José com o menino, e
contaram aquilo que os anjos lhes haviam anunciado. Parece que outras visitas
já haviam chegado, pois Lucas diz que “todos
os que ouviam os pastores ficavam maravilhados com aquilo que contavam”. Seria
o eco da alegria provocada pela evangelização pós-pascal?
Porta da humildade, na entrada da igreja da Natividade |
São Jerônimo:
sábio e devoto servidor da Palavra
Quase contígua à basílica da Natividade
está a igreja de Santa Catarina de Alexandria, que nosso guia anunciava com sereno
orgulho como ‘a nossa paróquia’. Foi uma agradável surpresa também para as
Irmãs Leonor e Tarsila, nossas companheiras de peregrinação, pois elas
pertencem à Congregação das Irmãs de Santa Catarina de Alexandria.
Placa indicativa na gruta de S, Jerodnimo |
No subsolo da igreja de Santa Catarina
está a gruta onde São Jerônimo passou seus trinta e dois anos em Belém. No
século IV, morando nesta gruta que está diante da gruta da natividade de Jesus,
São Jerônimo realizou a formidável façanha de traduzir todo o Antigo Testamento
do hebraico para o latim e todo o Novo Testamento do grego para o latim. É graças
a ele que as escrituras sagradas chegaram até nós e à nossa língua.
Ao lado da gruta ocupada por São Jerônimo
está também um altar dedicado a Santa Paula, uma mulher romana que veio com
Jerônimo, e fundou e dirigiu um mosteiro feminino em Belém. Santa Paula foi a
primeira mulher a assumir semelhante missão. E mais ao lado avistamos um altar
que marca o lugar onde São José teria ouvido, em sonho, a ordem para fugir com
Maria e com Jesus para o Egito, para livrar o menino da ira assassina de
Herodes.
“E
tu, menino, serás profeta do altíssimo...”
O calor estava de rechar, mas mesmo assim,
ao meio-dia, depois de comermos um kebab,
partimos para nossa próxima visita: Ain Karen, casa de Zacarias e Isabel, lugar
do nascimento de João Batista. Antes disso, fizemos uma breve visita ao kibutz no qual vive nosso guia Cornélio,
que retomava o papel de guia, e ao sítio arqueológico que está na área e traz
restos de uma cidade 700 aC.
Hino ded Zacarias, pintado em portugues diante da gruta onde nasceu Joao Batista |
A casa de João Batista fica num vale
íngreme, abaixo do nível de Jerusalém. A igreja, construída com apoio da
monarquia espanhola, guarda no seu interior aquela que teria sido a casa/gruta
na qual nasceu João Batista, filho tardio de um sacerdote do templo de segundo
escalão e de sua mulher idosa e estéril. Zacarias nos testemunha que a falta de
fé pode nos emudecer, e nos ensina que calar diante dos males e da vontade de
Deus pode ser sinal da falta de fé.
Ali, sentados nos degraus, diante da
gruta/capela que testemunhou o crescimento do profeta do rio Jordão, daquele
que reconheceu e anunciou Jesus como ‘o cordeiro de Deus’, recordamos a alegria
e a simplicidade das festas juninas no Brasil e cantamos o cântico de Zacarias:
“Bendito seja o Deus de Israel, porque
nos visitou e nos salvou, e fez surgir para nós um poderoso salvador na casa de
Davi, seu servidor... E tu, menino, serás chamado profeta do altíssimo, pois
irás ò frente do Senhor...” (cf. Lc 1,67-79)
“Bendita
és tu entre as mulheres!”
A tradição diz que, apesar de estar no
sexto mês da gravidez de João Batista, Isabel foi encontrar Maria quando ela
descia os montes. Assim, fomos caminhando para o último ponto da nossa peregrinação
deste domingo: a igreja da Visitação. Na caminhada de uns mil metros, exigentes
por causa do calor e da subida, passamos pela fonte que leva o nome de Maria,
pois era a única da redondeza, e ali ela teria buscado água para ajudar sua
prima.
Um encontro para marcar época... |
No pátio da igreja, o cântico de Maria
está pintado em mais de trinta idiomas. Depois de encontrar a versão
brasileira, entramos na igreja bela e simples, lemos o relato de Lucas sobre a
visitação (Lc 1,39-45) e cantamos o engajado louvor que brotou dos lábios de
Maria naquele encontro entre duas mulheres, duas pessoas humilhadas pelas
tradições masculinas mas exaltadas por Deus (Lc 1,46-55).
Ali lembramos nominalmente de várias
pessoas que nos acompanham com suas preces ou que pediram nossas orações;
pessoas que necessitam da feminina e materna ajuda de Maria, ou que nós
gostaríamos que fossem por ela visitadas. E como esquecer dos humilhados que
ainda não foram reconhecidos em sua dignidade e, muito menos, exaltados? E como
fazer de conta que não existem pobres que choram diante de mesas vazias? “Maria,
mãe dos caminhantes, ensina-nos a caminhar!...”
Guia
nossos passos no caminho da paz!
O hino de Zacarias agradece a bondade
misericordiosa de Deus que nos enviou como visita o Sol Nascente, para iluminar aqueles que jazem na sombra da morte e
para guiar nossos passos no caminho da paz. A paz fal falta em tantos lugares
do mundo, mas aqui em Israel/Palestina isso é sentido com mais força.
Infelizmente, o povo palestino se sente permanentemente ameaçado por gente que
os tratam como inimigos...
Como viver em paz quando um muro de
concreto de oito metros de altura e de
setecentos e quarenta quilômetros separa
os hebreus e humilha diariamente os palestinos? Como os palestinos podem viver
em paz vendo seu território, definido pela ONU, sendo sistematicamente ocupado
por assentamentos que acolhem hebreus que continuam chegando de muitas partes
do mundo? Como viver em paz com 38% de desemprego nos territórios ocupados?
Um muro que deve ser abatido para construir a paz |
Nosso guia Nizar Lama lembrava que tem
muitíssimos amigos hebreus e muçulmanos, com os quais vive em perfeita
concórdia e amizade. A população árabe de Belém é de 44000 habitantes, sendo
que 80% são muçulmanos e 20% são cristãos, mas ambos convivem pacificamente. A
violência e a injustiça são perpetradas por radicais e interessados de ambos os
lados. E dói na alma saber e ver que já são 22 os assentamentos hebreus,
protegidos por cercas eletrificadas, nas terras roubadas aos palestinos.
Itacir Brassiani msf
Um comentário:
quantacexperiencia!Quantas alegrias! Me sinto aícom voces!
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