O caminho de Jesus
Cristo não é garantia de sucesso fácil
(Zc 12,10-11; 13,1; Sl 62/63; Gl 3,26-29; Lc 9,18-24)
Em 2010, no encerramento do Ano Sacerdotal, os 15.000 padres vindos
de todo o mundo e reunidos em Roma, na praça São Pedro, foram interpelados a
cantar: “Cristo vence! Cristo reina! Cristo impera!” Em seguida,Bento XVI
adentrou na praça lotada, circulou triunfalmente pelos estreitos caminhos a
bordo do tradicional papamóvel e
sentou-se no trono para ele preparado, entre vivas e salves. Constrangido por
tais manifestações de poder intrinsecamente heterodoxas – e evangelicamente
heréticas! – eu me perguntava o que isso tinha a ver com o Filho do Homem, o
Verbo de Deus que se fez carne em Belém e morreu martirizado na cruz. Nada a
ver com um Cristo rei, imperador e vencedor! Todos – padres, bispos, papa e
leigos/as – precisamos levar a sério a pergunta “e vós, quem dizeis que eu
sou?”, assim como as sérias advertências de Jesus que se seguem às nossas
respostas aprendidas de memória.
“Jesus estava orando a sós, e os discípulos estavam
com ele.”
O retiro e a oração de Jesus neste
momento denotam a encruzilhada ou momento forte no qual ele e seus discípulos
se encontram. O que está em jogo é a
missão e a identidade de Jesus e dos seus discípulos. A pergunta estava no
ar e na cabeça de todos. Jesus havia saciado a fome das multidões, curara
doentes, e havia enviado os discípulos para alargar sua ação. Mas estes se
perguntavam: “Quem é este que dá ordem aos ventos e à água, e lhe obedecem?”
(Lc 8,25). E até Herodes, desejoso de conhecer Jesus, se interrogava: “Quem
será este homem, sobre quem ouço falar estas coisas?” (Lc 9,9)
Ao que parece, o conteúdo da
pregação de Jesus e o testemunho forte das suas ações eram suficiented para que
os discípulos intuíssem claramente sua identidade e sua missão. Mais: a tendência geral era entendê-lo dentro do
horizonte da ideologia nacionalista, que vivia a ardente expectativa da vinda
de um messias identificado com a tradição monárquica, cuja tarefa seria
libertar Jerusalém do domínio do exército romano. É para tomar distância deste
perfil de líder popular nacionalista e
consolidar sua vocação diante do Pai que Jesus se retira em oração.
“Que dizem as
multidões que eu sou?”
Depois de aprofundar a consciência
sobre a missão que o Pai lhe confia, Jesus retoma a conversa com os discípulos propondo
um balanço das opiniões sobre ele. “Quem dizem as multidões que eu sou?” Na
verdade, o povo não apenas levantava perguntas. Alguns arriscavam afirmações
aproximativas sobre a pessoa de Jesus: ele poderia ser João Batista redivivo;
ou Elias que retornava para resgatar a ordodoxia da fé; ou então um outro
profeta importante.
Num primeiro balanço do pensamento
do povo, Jesus aparece claramente
identificado com a tradição profética. Ele mesmo acenara para isso na
sinagoga de Nazaré quando, percebendo o desconcerto que sua mensagem provocara,
dissera que “nenhum profeta é bem recebido
na sua própria terra...” E diante da cura do filho da viúva de Naim o povo
dizia: “Um grande profeta surgiu
entre nós...” E não esqueçamos também a contestação do fariseu que o recebera em
sua casa para uma refeição: “Se este homem fosse
profeta, sabedia quem é esta mulher que está tocando nele...”
“E vos, quem dizeis que eu sou?”
Mas não podemos nos deter nas respostas
que estão na boca do povo ou que aprendemos de cor e bóiam na superficialidade
das fórmulas pouco consequentes. Afinal, que ressonâncias concretas têm em
nossa vida e em nossos projetos fórmulas ortodoxas e estirilizadas como
Messias, Filho de Deus, Redentor, Salvador, Senhor...? São conceitos
desgastados e, frequentemente, envoltos em práticas de dominação, muito bem
sintetizadas no velho refrão romano: “Cristo vence! Cristo reina! Cristo
impera!”
A pergunta que Jesus dirige aos
discípulos exige que eles se definam, chama a tomar posição. “E vós, quem dizeis que eu sou?” Os
piedosos que me desculpem, mas eu tenho sérias dúvidas sobre a correção da
resposta de Pedro. O que está por trás da fórmula “Cristo de Deus”? Não seria
exatamente a idéia de um messianismo de natureza estritamente teocrática e
nacionalista, que alimentava a expectativa de uma intervenção poderosa para
liberar o território do domínio romano e reinstalar a monarquia?
Fundamento para minhas dúvidas eu
encontro na reação do próprio Jesus à resposta de Pedro. Ele simplesmente
adverte os discípulos – e não apenas Pedro! –que não anunciem uma coisa dessas ao povo. Jesus esconjura ou ameaça os
discípulos como fizera com os maus espíritos que dominavam os doentes. Fica a
impressão de que, através da resposta de Pedro, os discípulos revelam que estão possessos por uma ideologia que os
fanatiza desvia do caminho. Para falar de si mesmo, sua missão e o modo de
realizá-la Jesus prefere e propõe a expressão ‘Filho do Homem’.
“Se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo,
tome sua cruz, cada dia, e siga-me.”
Nas imagens e conceitos que usamos
para falar de Jesus está embutido aquilo que esperamos dele e aquilo que pensamos
sobre a pessoa humana. Os próprios chefes do judaísmo dão a entender que há uma
idéia de poder e de sucesso conexa com o conceito “Cristo de Deus” (cf. Lc
23,35). Não é por nada que, mesmo depois de acompanhar Jesus no seu caminho até
Jerusalém e de participar da sua ceia sacramental, os discípulos ainda discutem
qual deles devia ser considerado o maior (cf. Lc 22,14-30).
Consciente disso, Jesus passa a
falar do caminho do Filho do Homem:
sofrimento (prisão, julgamento, tortura, morte) e rejeição por parte da aristocracia
religiosa (sacerdotes), leiga (anciãos) e intelectual (escribas). Não se trata
de uma fatalidade histórica da qual Jesus não teria como fugir, nem de um
suicício premeditado, mas efetivamente do jeito escolhido por Deus para plantar
a liberdade no coração do mundo: a via da
compaixão e do dom de si pelos mais fracos.
Mas nesta estrada Jesus não vai
sozinho. Esta não é apenas a sagrada via de Jesus, mas também o santo caminho
de todos os seus discípulos e discípulas. “Jesus começou a dizer a todos:
se alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz, cada dia, e siga-me.” Para o/a
discípulo/a, a cruz não está ligada apenas aos grandes momentos de testemunho,
mas à cotidianidade do despojamento de si em favor dos outros. Sem isso não há
verdadeiro discipulado.
“Todos vós sois filhos de Deus pela fé no Cristo
Jesus.”
Precisamos ter consciência de que,
para quem ousa seguir Jesus, as coisas não irão sempre bem. Ele não promete
sucesso ou facilidades. Não é verdade que Cristo e a Igreja sempre vencem,
reinam e imperam. Esta é mais uma
tentação que uma verdade!... O fracasso, a falência e o menosprezo
livremente aceitos são o único caminho capaz de nos levar à liberdade e à
maturidade verdadeiras. “Pois quem quiser salvar sua vida a perderá, e quem
perder a sua vida por causa de mim a salvará.”
Entretanto, neste caminho de uma fé em
Jesus Cristo e como
Cristo, é mais importante aquilo que fazemos do que aquilo que dizemos. Paulo
ensina que é pela fé em Cristo Jesus – e não
no ‘Cristo de Deus’! – que nos tornamos filhos/as de Deus. E a fé é bem outra
coisa que repetição de fórmulas dogmáticas ou adesão intelectual a elas. A fé é força que ajuda a resistir às
ideologias e projetos de poder e a agir movido pela compaixão e pela
solidariedade.
“Vos revestistes de Cristo...”
Precisamos mudar nossos hábitos, trocar
os velhos trajes que trazem as marcas de reinos, impérios e ideologias de
péssima memória. Paulo lembra que o nosso batismo significa exatamente isso:
revestir-se de Cristo. E isso implica na
eliminação dos muros – arquitetônicos ou dogmáticos – que separam e
hierarquizam crentes e não crentes, ricos e pobres, cultos e incultos, homens e
mulheres, sacerdotes e leigos, etc.
“Todos vós sois um só, em Cristo Jesus ”, insiste o Apóstolo das nações.
Fiéis a esta verdade porque não proclamar o início de um ano solene e sem fim
do Povo de Deus?
Partindo da história concreta e
completa de Jesus – que inclui sua rejeição e seu fracasso em Jerusalém –
podemos responder com temor e tremor à sua pergunta: Jesus de Nazaré, carpinteiro como teu pai e ouvinte assíduo da Palavra,
sendo filho da humanidade e nosso irmão maior, tu és o Ungido de Deus, o Pai
dos pobres. Olhando para teu corpo trespassado, te reconhecemos como um dos
nossos e, por isso, como início do Ano Novo (que os indígenas celebram no dia 21/06) e Caminho que nos leva à plena liberdade. Esta
liberdade vale mais que a vida. Exultamos de alegria à sombra das asas da ta cruz
e tomamos a nossa, cada dia. Com vozes de alegria nossa boca te canta louvores.
Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani
msf
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