segunda-feira, 30 de junho de 2014

Pe. Rodolpho Ceolin msf

Um discípulo inquieto, um homem a caminho.
Quando recordamos as pessoas que muito amamos, ou que por nós demonstraram muito amor, corremos o risco – ou será que cometemos a gentileza? – de idealizar sua biografia, magnificando os aspectos de bondade e diminuindo as contradições. Ou também podemos cair vítimas dos mecanismos de projeção, atribuindo a elas virtudes que desejaríamos ou imaginamos ter.
Sei que, por causa do grande apreço que tenho por ele, corro estes e outros riscos ao fazer memória do Pe. Rodolpho Ceolin msf. E admito até que o muito que tenho escrito e recordado sobre ele possa revelar uma certa fixação, ou uma relação imatura, infantil. Mas não sei o que seria mais desumanizador: a idealização, a projeção e a dependência ou a indiferença, a frieza e o simples esquecimento.
Já tive a oportunidade de sublinhar que as conhecidas manifestações de nervosismo, de intolerância, de desânimo e até de raiva do Pe. Rodolpho chamavam a atenção porque rompiam com seu modo normal, característico e predominante de ser, que era a bondade, a serenidade e a generosidade. E ele mesmo não escondia o desconforto que experimentava quando perdia o controle e machucava as pessoas.
Neste momento em que completamos um ano da sua partida – ele tinha 83 anos bem vividos mas partiu cedo demais! – quero prestar uma homenagem à sua vigorosa e atribulada biografia destacando duas características do seu modo de ser: ele conseguiu conjugar de um modo muito interessante humildade com iniciativa, e também auto-implicação com engajamento social.
As pessoas humildes são propensas à passividade, até porque a humildade pode vir frequentemente associada à baixa auto-estima e à timidez. O fato de ter ocupado diversas e duradouras responsabilidades à frente da Província não roubaram ao Pe. Ceolin seu jeitão simples e amigo. E esta simplicidade, mais que convidar à acomodação, funcionava como estímulo à criatividade e iniciativas em vista de melhorar o ambiente, a comunidade, a Igreja, a sociedade. Esta capacidade de inciativa era nele tão forte que chegava a parecer inquietação...
A humildade se dá muito bem com a introspecção e o apreço pelo cultivo interior, com a auto-implicação nos processos de reflexão e de mudança. Mas não é muito comum que a implicação do próprio ser vá de mãos dadas com o engajamento intrépido nos processos de transformação social. E nisso o Pe. Ceolin também demonstrou uma certa originalidade. Ele é lembrado por todos como uma pessoa que sempre puxava as reflexões e debates para a dimensão pessoal, mas ninguém esquece também sua forte e profética ênfase na dimensão social da fé.
O Pe. Ceolin não foi um santo – ao menos um santo segundo o modelo mais difundido por certos setores sociais e eclesiais – mas merece ser lembrado por aquilo que foi: um homem sempre a caminho, um discípulo visceralmente inquieto, uma pessoa que buscou incansavelmente a integridade e a serenidade. Louvado seja Deus por ter nos dado este presente!

Itacir Brassiani msf

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Festa de S. Pedro e S. Paulo (Ano A - 2014)

Eles permaneceram firmes como se vissem o invisível.
Com a festa dos apóstolos Pedro e Paulo estamos fechando este mês cheio de memórias de santos populares. Pedro é o primeiro líder dos cristãos e Paulo é o apóstolo dos povos, mas não podemos esquecer que ambos foram discípulos de Jesus e passaram por crises e dificuldades, provaram a prisão e sofreram o martírio. Eles fazem parte daquela ‘nuvem de testemunhas’ da qual fala a Carta aos Hebreus (12,1): viveram e morreram firmes na fé, como se vissem o invisível (cf. Hb 11,13.27).
A primeira leitura nos lembra que o primeiro Papa foi presidiário! As chaves prometidas por Jesus Cristo não serviram para soltar as algemas ou abrir a porta que prenderam Pedro! Ele estava imerso na penumbra do abandono quando uma luz iluminou a cela, uma mão tocou seu ombro e uma voz ordenou que se levantasse depressa. As algemas que o prendiam caíram no chão, os guardas que vigiavam não viram nada e a porta que separava a cela da cidade se abriram sozinhas...
Depois de ter sido um fariseu zeloso e violento e de ter acumulado muitos méritos e honras por causa disso, Paulo fez a experiência de ser conquistado por Jesus Cristo e, diante do bem supremo desta acolhida gratuita e imerecida, considerou tudo o mais como lixo e déficit na contabilidade da vida (cf. Fil 3,1-14) e se lançou incansavelmente no anúncio desta boa notícia. Por isso foi denunciado, perseguido, encarcerado e finalmente executado.
Ninguém conseguiu colocar sob algemas aquilo que fazia de Paulo um homem livre: a Boa Notícia de Jesus Cristo. “Por ele, eu tenho sofrido até ser acorrentado como um malfeitor. Mas a Palavra de Deus não está acorrentada” (2Tm 2,9). Ele sabia muito bem em quem colocara sua confiança, não se envergonhava de compartilhar a sorte dos encarcerados e pedia que ninguém se envergonhasse dele ou de testemunhar a favor de Jesus Cristo, que também foi preso e condenado (cf. 2Tm 1,8).
Pedro e Paulo eram membros de comunidades cristãs, e o vínculo entre a comunidade dos e seus líderes presos se mostra de um modo comovente no relato dos Atos dos Apóstolos. “Enquanto Pedro era mantido na prisão, a Igreja orava continuamente por ele.” Um pouco antes, quando Pedro e João haviam sido liberados da prisão, a comunidade pedia em oração: “Agora, Senhor, olha as ameaças que fazem, e concede que teus servos anunciem corajosamente a tua Palavra” (At 4,29).
A comunidade pede coragem, e não tranquilidade. O que as sustenta é o encontro com Deus em Jesus Cristo. No evangelho de hoje, Jesus faz uma pergunta, que é central no terceiro bloco narrativo de Mateus (11,2-16,20): “Quem sou eu para vocês?” E esta é a primeira vez que um discípulo o reconhece e proclama Messias, embora um pouco antes, depois da tempestade acalmada, todos os discípulos haviam proclamado, de joelhos: “Verdadeiramente, tu és o Filho de Deus” (Mt 14,33).
Não esqueçamos que, mesmo sem rejeitar a confissão de Pedro e dos demais discípulos, Jesus chama a si mesmo Filho do Homem, e não  Filho de Deus (cf. Mt 11,19; 12,8; 12,32), acentuando assim seus vínculos com a humanidade. Só quem está aberto e sintonizado com a lógica de Deus pode reconhecer a presença de Deus nas ações e palavras deste filho da humanidade e irmão de todos os seres humanos, e esta é a base sólida sobre a qual Jesus Cristo constrói a comunidade cristã, literalmente, a assembléia dos chamados. “Não foi um ser humano que te revelou isso...”
Crer, confiar, partilhar e anunciar: estes são os verbos essenciais da gramática dos cristãos. Só chega à meta estabelecida quem conjuga estes verbos em todos os tempos, modos e pessoas. Escrevendo a Timóteo desde a cela da prisão, Paulo faz um balanço da sua vida e suas palavras são eloquentes e comoventes: “Chegou o tempo da minha partida. Combati o bom combate, terminei a corrida, guardei a fé.” Um pouco antes, havia escrito: “Estou suportando também os sofrimentos presentes, mas não me envergonho. Sei em quem acreditei” (2Tm 1,12).
Jesus de Nazaré, filho de Deus e filho da humanidade! A glória dos teus discípulos e santos não vem dos milagres ou das honras e aplausos encomendados, mas do teu Pai, o Deus vivo, e por isso os humildes que os vêm podem se alegrar. Quem te reconhece como Filho de Deus encarnado na humanidade não está livre das dificuldades, mas sabe que “o anjo de Deus acampa em volta dos que o temem”. Por isso, feliz a pessoa que nele crê e espera: viverá firme como quem vê o invisível. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Atos dos Apóstolos 2,1-11 * Salmo 33 (34) * Segunda Carta a Timóteo 4,6-8.17-18 *Mateus 16,13-19)

O comércio eleitoral no Brasil

Compra das eleições
Ano de eleições decisivas para o país! Seguimos os movimentos dos partidos, dos candidatos, negociação sem fim, falta de propostas etc. Tudo pode ser muito emocionante, mas normalmente nos esquecemos de que na realidade não temos eleições que manifestem a vontade soberana dos cidadãos uma vez que elas são compradas pelos grandes grupos econômicos.
Uma lei de 1997 liberou o financiamento privado das campanhas por interesses privados (uma vaga de deputado federal custa por volta de 2,5 milhões) o que fez com que os recursos empresariais constituam a fonte mais importante de financiamento das campanhas. A deformação financeira gera assim sua própria legalidade e transforma o poder financeiro em direito político. Desta forma o voto não representa mais o cidadão já que o processo eleitoral é deformado através de grandes somas de dinheiro.
O Prof. L. Dowbor em livro recente nos mostra um exemplo muito significativo: o caso da empresa Friboi, o maior grupo mundial na área de carne. Há uma bancada Friboi no Congresso com 41 deputados federais e 7 senadores que com uma única exceção votaram contra as modificações do Código Florestal. O próprio relator do código recebeu 1,25 milhão de empresas agropecuárias.
Uma empresa não financia um candidato por solidariedade, mas em virtude das políticas de seu interesse que serão aprovadas através de seus votos. Os políticos caem numa armadilha lamentável: entre representar os interesses legítimos da população (o mote central das manifestações recentes) e assegurar a próxima eleição a decisão se impõe. Através disto é o próprio processo de decisão sobre o uso dos recursos públicos que de alguma forma é privatizado. A consequência terrível é que se perde a dimensão pública do Estado.
Trata-se claramente de uma apropriação privada da política que conduz a uma sistemática deformação das prioridades do país: os recursos públicos ao invés de serem investidos no que traz melhora da qualidade de vida são direcionados para o que traz mais lucro em termos de contratos empresariais.
Um elemento importante neste processo é o sobre-faturamento. Quanto maior for o custo financeiro das campanhas maior será a concentração da pressão empresarial sobre os políticos em grandes empresas. Sendo as empresas poucas, poderosas e com muitas vinculações a políticos, a tendência é organizar a seu favor a estruturação dos contratos com duas consequências de enormes efeitos: a concorrência pública se torna um grande arremedo e a elevação radical dos grandes contratos.
Isto faz com que os lucros alcançados sejam a base do financiamento das futuras campanhas de tal modo na realidade o próprio Estado se torna a garantia dos fundos para o financiamento privado das campanhas. Tal processo corrói pela raiz a gestão pública e deforma essencialmente a democracia o que gera a enorme perda de confiança da população nas dinâmicas públicas.
Experiências de outros países mostram que esta tragédia não constitui um destino inexorável. Por esta razão a recuperação da dimensão pública do Estado é certamente um dos desafios centrais do Brasil de hoje.
Manfredo Araújo de Oliveira

[*Padre e filósofo. Professor na Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, Itália, e doutor em Filosofia pela Universidade Ludwig-Maximilian de Munique, Alemanha]

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Solenidade do Sagrado Coração de Jesus (Ano A - 2014)

Nosso Deus tem um coração, grande e compassivo.
A tentação de imaginar Deus de forma abstrata e de propor a mensagem cristã de forma estritamente doutrinal está sempre nos rondando. A doutrina do Deus uno e trino, celebrada na festa da Trindade, pode virar uma difícil questão de matemática ou de metafísica. A boa notícia recordada pela solenidade de Corpus Christi pode descambar numa discussão polêmica, fisicista e anti-ecumênica. E, com isso, acabamos representando o mistério de Deus mediante figuras abstratas ou ameaçadoras, como o triângulo, a lei, o olho...
Precisamos superar as imagens abstratas, parciais e distorcidas de Deus. Que consolação podemos encontrar naquela representação de Deus como um triângulo composto de linhas e ângulos absolutamente simétricos, mas carentes de pulsação e de vida? Que orientação pode nos vir de conceitos herméticos como união hipostática, duas pessoas em uma natureza, três pessoas em um só Deus? Por mais que sejam doutrinalmente ortodoxas, estas fórmulas não são capazes de produzir liberdade, solidariedade e vida...
A Sagrada Escritura nos apresenta a história e a imagem de um Deus vivo, que se caracteriza pela Compaixão, e é isso que a solenidade do Sagrado Coração de Jesus quer colocar em evidência. Não precisamos ter medo de reconhecer traços antropomórficos em nossas imagens de Deus. Nunca nos livraremos disso. O que precisamos evitar é a tentação de projetar na idéia de Deus elementos de uma antropologia que exclui a corporeidade, a relação, a compaixão e a solidariedade. Estes elementos mutilam nossa humanidade e distorcem nossa idéia de Deus!
A solenidade que hoje celebramos quer sublinhar que Deus tem um rosto humano, um coração que ama apaixonadamente a humanidade. Aliás, é pouco e insuficiente dizer que Deus nos ama: Ele é amor, e sua relação conosco só pode ser de amante para amado, de pai e mãe que recompõe as forças dos filhos cansados e levanta o ânimo dos abatidos. Um Deus que é amor não traz fardos, mas alívio, não profere sentenças condenatórias mas multiplica atos que libertam. Celebrar o coração sagrado de Jesus significa celebrar a revelação de Deus como amor, apenas amor, sempre amor.
Como filhos e filhas gerados no ventre de Deus, que receberam nos lábios o beijo e o Sopro de Deus para ser no mundo suas imagens vivas, também somos chamados a conjugar o verbo amar, especialmente no modo indicativo, no presente e no futuro, e na primeira pessoa do singular e do plural. João escreve: “Se Deus nos amou assim, nós também devemos amar-nos uns aos outros... Deus é amor: quem permanece no amor permanece com Deus e Deus permanece com ele.” Quando nossas relações são sustentadas pelo amor, demonstramos que conhecemos quem é Deus!
Na primeira litura, Moisés lembra aos hebreus que a afeição de Deus por eles não é motivada pelo poder ou importânci que possam tera, mas pela insignificância, não porque eles fossem bons, mas porque Deus é bom, é amor. Deus é assim mesmo! Jesus faz questão de afirmar que Deus não se dá a conhecer aos sábios e entendidos, aos grandes e poderosos, mas aos pequeninos e humildes. E é aos cansados e fatigados que ele dirige seu convite e faz sua oferta de alívio e descanso. É isso que significa a mansidão e humildade de coração que o caracteriza e que nós invocamos.
Mais que na celebração de cultos solenes, na elaboração de doutrinas eruditas e na obediência formal a leis minuciosas, a alegria de Deus consiste em buscar e proteger as pessoas indefesas e ameaçadas e preparar para elas uma mesa farta diante dos inimigos que as perseguem sem tréguas. E isso na proporção de 1 por 99! Este é o caminho e a proposta de Jesus, e não deveria ser outro o caminho das Igrejas e de todos aqueles que crêem que Deus tem um coração. Haja coração!
Jesus de Nazaré, Coração de Deus na carne humana, Compaixão de Deus na complexidade da história! Tu nos revelaste a Misericórdia e o Amor que aproximam a divindade da humanidade. Sendo traído, preso e executado na cruz, tu nos amaste até o fim e para além de todo merecimento. Do teu lado aberto pela lança, deixaste correr sangue e água, dando-nos o Espírito que te movia, para que, atraídos por teu coração, pudéssemos beber na fonte da salvação. Por isso, não cansamos de louvar teu nome e de pedir que seja teu o coração que sustenta nossa missão. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf

(Deuteronômio 7,6-11 * Salmo 102 (103) * Primeira Carta de João 4,7-16 *Mateus 11,25-30)

Fatos & Personagens: Dia contra a Tortura

O reino do medo

Hoje é o Dia contra a Tortura. Por trágica ironia, a ditadura militar do Uruguai nasceu no dia seguinte, em 1973, e transformou o país inteiro numa grande câmara de torturas.

Os suplicios serviam pouco ou nada para arrancar informação, mas eram muito úteis para semear o medo, e o medo obrigou os uruguaios a viver calando ou mentindo.

No exílio, recebi uma carta anônima: “É foda mentir, e é foda se acostumar a mentir. Mas o pior que mentir é ensinar a mentir. Eu tenho três filhos...”


(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 206)

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Dia do Sol

O sol

Hoje, desde que amanheceu, é celebrada a Festa do Sol, o Inti Raymi, nos cerrados e nas montanhas dos Andes.

No começo dos tempos, a terra e o céu estavam na escuridão. Só havia noite.

Quando a primeira mulher e o primeiro homem emergiram das águas do lago Titicaca, nasceu o Sol.

O Sol foi inventado por Viracocha, o deus dos deuses, para que a mulher e o homem pudessem se ver.

(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 204)

domingo, 22 de junho de 2014

Festa do Nascimento de São João Batista (Ano A - 2014)

A verdadeira profecia devolve ao mundo a alegria.
A festa de São João está arraigada na cultura do povo brasileiro, e só aparentemente se distanciou do seu nascedouro bíblico e profético: a alegria simples e inocente que a caracteriza brota da certeza de que Deus não esquece sua aliança conosco, visita e liberta seu povo, e envia profetas e profetizas que preparam os caminhos qued nos levam a uma humanidade nova. Por isso, celebramos este dia com trajes e comidas que nos fazem parte do povo simples, com a alegria que brota da liberdade que virá e com a coragem profética que João nos deixa como herança.
A alegria, assim como a irreverência, têm raízes bíblicas e força revolucionária. Não falo da alegria forçada pelas drogas, nem da felicidade histérica daqueles que se deleitam com os bens subtraídos aos homens e mulheres que os produzem. E também não me refiro à alegria produzida artificialmente por líderes religiosos sequiosos de domínio e de riqueza, ou por estrelas políticas e midiáticas que seduzem incautos mas duram pouco mais que uma noite. Esta é uma alegria nem merece este nome, e mais parece gozação que alegria.
Estou falando da alegria que brota da descoberta de que Deus olha para as mãos calejadas, para os rostos sofridos, para os corpos vergados e os corações partidos e os proclama cheios de graça, plenos de charme. “Alegra-te, cheia de graça! O Senhor está contigo! Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre” (Lc 1,28.42). A notícia de que Deus nos ama desde sempre e para sempre faz pular de alegria até os bebês que ainda escondidos nos úteros de suas mães. “Feliz aquela que acreditou!”, proclama a jubilosa Isabel à jovem e corajosa Maria.
A alegria inocente e despojada das festas juninas têm raízes na história da salvação, que atravessa e supera a história da opressão e que está ainda hoje em curso. O nascimento de João Batista sacramentaliza a delicadeza de um Deus que levanta o manto da vergonha e da dor que, numa sociedade machista, pesa sobre uma mulher idosa e sem filhos (cf. Lc 1,25), faz brilhar o Sol da justiça para aqueles que sobrevivem ameaçados pelas sombras da morte. Quando o menino nasce, a vizinhança toda se alegra com esta demonstração da misericordia de Deus.
A razão dessa alegria aparece no próprio nome que a mãe Isabel lhe dá, nome que significa ‘Deus age com misericórdia’. Ao conferirem este nome ao filho, Zacarias e Isabel rompem com a tradição e renunciam a fazer do filho um simples espelho dos próprios desejos. João não será sacerdote, como o pai, mas profeta! Nas palavras de Zacarias ele será ‘profeta do Altíssimo’, porque irá à frente do Senhor, ‘preparando os seus caminhos, dando a conhecer ao seu povo a salvação, com o perdão dos pecados, graças ao coração misericordioso do nosso Deus’ (cf. Lc 1,76-78).
É verdade que inicialmente Zacarias parece não entender ou aceitar a vocação profética do filho. Seu ouvido se fecha e sua boca se cala. Mas sua língua se solta e seus ouvidos se abrem quando ele se liberta das malhas da tradição sacerdotal e reconhece que a vocação de filho da sua velhice é mostrar a misericórdia de Deus em favor do povo e defendê-los dos inimigos. Oxalá todos os pais e mães dêem o melhor de si para que seus filhos e filhas descubram e realizem sua vocação na Igreja e no mundo de hoje, antecipando isso no próprio nome que escolhem para eles!
O perdão gratuito dos pecados que João pregará será uma senha a abrir as portas da vida a todos os excluídos, tanto judeus como pagãos. À luz de Isaías, podemos dizer que a profecia autêntica não se deixa limitar pelas paixões nacionalistas. “É muito pouco seres o meu servo só para resutaurar as tribos de Jacó, só para trazer de volta os israelitas que escaparam. Quero fazer de ti uma luz para as nações, para que minha salvação chegue até os confins do mundo.” Não é digno de crédito um profeta que defende apenas as ovelhas do seu próprio rebanho...
Deus dos humildes, pai e mãe dos profetas, razão da nossa alegria: te agradecemos pelos homens e mulheres que continuas enviando para transformar desertos em jardins e acender teu fogo no mundo. Eles se chamam João, Adelaide, Pedro, Oscar, Ezequiel, Sepé, Dorothy. Mas seus irmãos e irmãs menos famosos se chamam José, Tião, Rosa, Maria, Tonico, Zeca, Antônio, Josefa..., gente que faz parte da imensa caravana de homens e mulheres que vivem uma alegria autêntica e simples, inocente e solidária, despojada e profética, um precioso tesouro do povo brasileiro. Bendito sejas! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Isaías 49,1-6 * Salmo 138 (139) * Atos dos Apóstolos 13,22-26 * Lucas 1,57-66.80)

sábado, 21 de junho de 2014

Fatos & Personagens: Eratóstenes

A cintura do mundo

No ano de 234 aC, um sábio chamado Eratóstenes cravou uma vara, ao meio-dia, na cidade de Alexandria, e mediu a sua sombra.

Um ano depois, exatamente na mesma hora do mesmo dia, cravou a mesma vara na cidade de Assuam, e comprovou que não havia sombra alguma.

Eratóstenes deduziu que a diferença entre uma sombra e sombra alguma confirmava que o mundo era uma esfera e não um prato.

Então, fez medir a distância entre as duas cidades, a passo de homem, e a partir dessa informação tentou calcular quanto media a cintura do mundo. Errou por (apenas) noventa quilômetros...


(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 202)

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Décimo Segundo Domingo Comum (Ano A - 2014)

Se os profetas se calarem, as pedras falarão!
Seus nomes são bem conhecidos: Dorothy Stang, Hélder Câmara, Oscar Romero, Chico Mendes, Martin Luther King, Pedro Casaldáliga, Erwim Kreutler, Rigoberta Menchú, entre tantos outros. São herdeiros da mais legítima profecia bíblica. Com sua ternura, firmeza e coragem marcaram ou marcam profundamente as Igrejas e a sociedade. Confiados naquele que “cuida de cada cabelo que vamos perdendo sem mesmo notar” estes irmãos e irmãs não se deixaram amordaçar pelo medo e proclamam com a própria que é para a liberdade que Cristo nos libertou.
Testemunhar Jesus Cristo é algo muito mais profundo do que simplesmente tornar seu nome conhecido. A missão dos cristãos, inerente à fé em Jesus Cristo, consiste em dar continuidade à sua dupla paixão: pelo reino do Pai e pela vida dos pobres. E isso significa prosseguir e alimentar as práticas e os movimentos que resgatam a vida de todos os grupos oprimidos e questionam as práticas de dominação e de exclusão. A profecia é também e sempre uma ação transformadora.
É natural que sintamos medo diante das ameaças e tristeza frente às mentiras e calúnias que recebemos por causa de um engajamento que brota da intimidade com Deus e do amor pelo seu povo. Os próprios discípulos e discípulas da primeira hora provaram o medo, e não é por acaso que, no evangelho deste domingo, Jesus pede três vezes: “Não tenham medo!” Quem não se vê representado no desabafo de Jeremias, que chega a amaldiçoar o dia em que nasceu?
O problema surge quando o medo – que geralmente vem de mãos dadas com o desejo de uma vida longa e tranquila – coloca viseiras nos olhos, mordaças na boca e correntes nas mãos, quando o cala a a voz profecia e esteriliza a força da fé. E isso começa com o simples medo de pensar e de viver diferente do nosso círculo de amigos e de família, e termina no medo de desagradar ou ser mal visto pelas autoridades políticas ou eclesiásticas.
A fé é o oposto do medo. Quem age movido pelo medo faz de tudo para encontrar uma segurança que, para nós cristãos, é dada gratuitamente por Deus. É estasegurança que faz com que os profetas e profetizas sejam firmes como pessoas que vêem o invisível. Elas sabem em quem acreditam, em quem depoistam a confiança. Sabem que é perdendo a vida que a podem conservar para sempre. Aquele que as chamou é fiel! O próprio Jesus Cristo as defende.
Jesus nos ensina a desenvolver esta confiança radical chamando a nossa atenção para os insignificantes pardais e para os cabelos. Deus cuida até dos pardais e dos cabelos, quanto mais daqueles que ama e chama! “Vocês valem mais do que muitos pardais!... Até os vossos cabelos estão contados!” Deus toma conta da vida dos seus filhos e filhas chamados à profecia porque é pai terno e bondoso, sempre e já no presente de suas criaturas. Então, medo de quê?
Mais que consolação intimista, a experiência do coração materno de um Deus que se supera nas delicadezas pelos frutos do seu ventre é luz que afugenta o medo e força que sustenta a profecia. Podemos dizer, com São Paulo, que muito mais forte que as privações e a morte, e mais abundante que nossos pecados, é a graça que Deus derramou sobre nós. E ainda temos a promessa de que o próprio Jesus será testemunha de defesa daqueles que dele dão testemunho neste mundo.
Afinal, como nos ensina Paulo, a fé que nos alimenta e sustenta nossa profecia brota de uma experiência de ser reconciliado e regenerado por Deus em Jesus Cristo. Vivemos em paz com Deus e nossa condição é marcada pelo sinal da Vida. O mal e a morte não nos amedrontam nem dominam.  Cristo venceu as forças destruidoras e desagregadoras e nos resgatou para a liberdade. Sua força é muito maior que a de Adão, e não há razão para olhar para o mundo e para o futuro com medo.
Jesus de Nazaré, destemido profeta da Galiléia: envia testemuhas autênticas da liberdade e da solidariedade. Suscita profetas que, despertos pela tua Palavra, anunciem com palavras e ações a verdade sobre a dignidade de todas e de cada criatura; denunciem as estruturas que excluem, mesmo aquelas que se apresentam em meio a luzes coloridas e fumaça de incenso; que renunciem às ações e contaminadas pelo espetáculo, pela indiferença, pela violência e pelo medo; que prenunciem, em seu modo de viver, um mundo em cuja mesa haja lugar para todas as criaturas. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Jeremias 20,10-13 * Salmo 68 (69) * Carta aos Romanos 5,12-15 * Mateus 10,26-33)

Fatos & Personagens: Joaquina Lapinha

Este inconveniente

Sua voz de soprano, capaz de dar cor a cada sílaba, havia despertado ovações no Rio de Janeiro.

Pouco depois, no final do século XVIII, Joaquina Lapinha foi a primeira cantora brasileira a conquistar a Europa.

Carl Ruders, um viajante sueco apreciador de óperas, escutou-a no ano de 1800, num teatro de Lisboa, e elogiou, entusiasmado, “sua boa voz, sua figura imponente e seu grande sentimento dramático”.

“Lamentavelmente, Joaquina tem a pele escura”, avisou Ruders, “mas este inconveniente pode ser remediado com cosméticos...”


(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 200)

terça-feira, 17 de junho de 2014

Fatos & Personagens: Susan Anthony

Susan também não pagou

Os Estados Unidos da América versus Susan Anthony, Distrito de Nova York, 18 de junho de 1873.

Promotor distrital Richard Crowley: “No dia 5 de novembro de 1872, Susan B. Anthony votou num representante no Congresso dos Estados Unidos da América. Naquele momento ela era mulher, e suponho que não haverá dúvidas em relação a isso. Ela não tinha direito de voto. É culpada de violar a lei.”

Juiz Ward Hunt: “A prisioneira foi julgada de acordo com o estabelecido na lei.”

Susan Anthony: “Sim, Senhoria, mas são leis feitas pelos homens, interpretadas pelos homens e contra as mulheres.”

Juiz Ward Hunt: “Que a prisioneira fique de pé. A sentença desta Corte manda que ela pague uma multa de cem dólares mais as custas do processo.”

Susan Anthony: “Não pago nenhum tostão!...”


(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 198)

Meditando com os astecas

CONSELHO DOS VELHOS SÁBIOS ASTECAS


Agora que já olhas com teus olhos, percebe. Aqui é assim: não há alegria, não há felicidade. Aqui na terra é o lugar de muito pranto, o lugar onde se rende o fôlego e onde bem se concebe o abatimento e a amargura. Um vento de pedra sopra e se abate sobre nós. A terra é lugar de alegria penosa, de alegria que fere.

Mas ainda que assim fosse, ainda que fosse verdade que só se sofre, ainda que fossem assim as coisas da terra, haverá que estar sempre com medo? Haverá que estar sempre tremendo?  Haverá que viver sempre chorando?

Para que não andemos sempre gemendo para que nunca nos sature a tristeza, o Senhor Nosso nos deu o riso, o sonho, os alimentos, nossa força, e finalmente o ato de amor que semeia gentes.

Lembranças de um Amigo

O meu amigo de Cafarnaum

O meu Amigo era daqueles que não conhecem o cansaço.
Ele chegou de sua cidadezinha num dia de setembro, 
quando as pessoas começam a dizer: 
“Parece que está esquentando”.
É quando as flores se abrem e os passarinhos cantam.
Meu amigo tinha trinta anos de vida e de carpinteiro
E deu aos pescadores a impressão de uma nova primavera.
A cidade de Cafarnaum fedia a suor e a peixe podre. 
Somente as prostitutas perfumavam a rua de jasmim e manjerona
Ao passarem as tardes apregoando seu corpo.
Cafarnaum vivia com resignada raiva por estar condenada
Perpetuamente a nunca ser nada.
E lá estavam os doentes, mistura de febre e pó;
Lá estavam os leprosos, mistura de feridas e morte;
Lá estavam os injustos, lá estavam os romanos,
Como ianques odiados, num Vietnã sem bombas.
Quase todos estavam pescando num lago quando,
Num dia de setembro, chegou o meu amigo.
E não foi só falar, não. Foi também demonstrar:
Demonstrar que até o último pobre,
Da mais pobre choupana, 
Trazia nos olhos o sinal dos príncipes
Pois era filho predileto do rei, que se chamava Pai.
Floresceram, então, naquela primavera, as almas:
Houve sol com fartura, andaram os aleijados 
e os presos fizeram arados com seus grilhões
Enquanto carneiros e leões se apaixonavam.
E dessa alegria gratuita, com embriaguez sem ressaca,
Saiu um grupo de amigos que fez um juramento de sangue
Para que o mundo inteiro ficasse contente.
O chefe, Pedro, foi colocado como a pedra base
Que sustenta as vigas e que, por sua vez, sustentam a casa.
Saíram então, pelas ruas de todas as cidades
Anunciando essa boa nova chamada Evangelho.
E como as pessoas ficavam contentes ao se olharem no espelho
E reconhecerem, sem medo, a marca dos príncipes.
Assim começou a Igreja
Como os arautos que passam pelas cidades
Levando a música e a festa,
De manhã, de tarde, sempre.
O Amor nos fez surgir o seu Filho
Originando, assim, o primeiro dia.

(Poema postado pelo Fr. Thiago; desconheço o autor)

Solenidade do Corpo e Sangue do Senhor (Ano A - 2014)

O corpo de Cristo é vida partilhada na mesa do mundo

O povo de Israel gostava de lembrar que Deus sempre dá o melhor de si. Ele alimenta o povo peregrino com a melhor farinha produzida pelo trigo e com o melhor mel oferecido pelas abelhas.  Por sua vez, as comunidades cristãs se rejubilam na experiência e no anúncio de que, em Jesus Cristo, Deus assume definitivamente a fragilidade da carne humana. E proclamam que Deus tem corpo feito de carne e sangue, amor e vulnerabilidade, que sua carne é verdadeiro alimento que sacia todas as fomes, e seu sangue é bebida que desaltera todas as sedes.
Aprendemos na catequese e continuamos acreditando que a comunidade cristã é o corpo vivo que tem Cristo como cabeça. Paulo sublinha que somos um corpo porque partilhamos de um único pão, e que, num corpo vivo os membros são solidários: quando um membro sofre, todos os demais sofrem com ele; quando um membro é honrado, os demais participam de sua alegria; e os membros mais frágeis são os que necessitam de maior cuidado e proteção.
A festa do Corpo de Cristo quer nos lembrar enfaticamente que Deus tem um corpo, e que este corpo é o nosso corpo individual, mas principalmente o corpo da comunidade, formado por homens e mulheres que dão o melhor de si pela Igreja, e ainda por pessoas acostumados ao sofrimento e que nem sempre estão em nossas celebrações e festas. O corpo de Deus é este corpo composto de membros livres e diferentes, mas unidos no mesmo espírito, na mesma dor e no mesmo sonho.
Este é um dos sentidos mais profundos da Eucaristia: compartilhar o mesmo pão na mesa eucarística nos compromete a viver a solidariedade e a comunhão com o corpo vivo de Cristo, com todos os membros, sem exceção, começando pelos últimos, aqueles nos quais Jesus disse que estaria presente; beber do mesmo cálice leva a comungar com o sangue de Cristo que circula nas veias daqueles que ele elegeu como irmãos, inclusive com o sangue dos mártires, reconhecidos ou não.
Porém, estamos tão acostumados a participar da missa e ‘receber a comunhão’ que, ouvindo Jesus Cristo dizer que é Ele “o pão vivo que desceu do céu”, fazemos um grande esforço para crer que ele está presente naquela partícula de pão que chamamos hóstia. Nossos olhos teimam em ver somente pão, e então nos esforçamos para ver ali o próprio Cristo. Com isso esquecemos que a primeira e mais decisiva passagem não é do pão para Cristo, mas de Cristo para o pão!
Jesus fala de sua vida em termos de carne e sangue, e estas palavras sublinham, ao mesmo tempo, a concretude de sua vida histórica e a vulnerabilidade que compartilha com todos os seres humanos. Os discípulos acham isso difícil demais... A questão decisiva é reconhecer as ações e opções concretas de Jesus Cristo, sua comunhão solidária com a humanidade sofredora, como algo que motiva e sustenta, como um caminho que vale a pena ser continuado.
Mas para muitas pessoas isso não faz sentido nenhum. Pensam que é irrelevante ou impossível que Deus tenha assumido a carne humana. Isso não as toca, não as alimenta, não mexe com elas. Entretanto, as palavras de Jesus Cristo são claras: “A minha carne é verdadeira comida e o meu sangue é verdadeira bebida.” O pão do céu se fez carne e terra, se oferece como alimento para aqueles que têm fome e sede de justiça. É a humanidade de Jesus que sacia nossa fome e nossa sede!
Jesus Cristo dá o melhor e tudo de si  para que o mundo tenha vida. É para isso que ele se fez carne e se oferece como verdadeira comida e sangue servido como verdadeira bebida. A Ceia Eucarística que celebramos comunitariamente pretende ser sacramento – sonho e caminho! – de uma vida plena para todos. Por isso, a Eucaristia está longe de ser uma prática religiosa privada e misteriosa, repetida unicamente para cumprir uma lei ou para salvar individualmente a própria a alma.
Deus Pai e Mãe, que nos alimentas com o melhor do trigo e com o mel que sai da rocha. Queremos celebrar a ceia do teu Filho, memória e esperança, com o coração agradecido e com os rins cingidos para o caminho que nos espera. Dá-nos teu Filho, Pão para a vida do mundo! Dá-nos teu Espírito, fogo de comunhão que regenera o mundo na comunhão sustentada pelo dom. Não somos dignos que entres em nossa casa, mas diz uma Palavra e recuperaremos a dignidade e a liberdade, e assim viveremos a verdadeira comunhão. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf

(Deuteronômio 8,2-3.14-16 * Salmo 146 (147 B) * Primeira Carta Aos Coríntios 10,16-17 *João 6,51-58)

domingo, 15 de junho de 2014

O gemido se faz oraçao

Meu Deus, não sei o que pedir. Procurei o meu desejo mais ardente e não o encontrei. Não sei o que me fará feliz. 

Inquieto está o meu coração, sem descanso, e não sei que nome dar às minhas nostalgias. Sem saber para onde ir, sem saber o que fazer, sem saber que batalhas travar, sinto intensamente a tentação dos ídolos e dos vazios. É fácil entrar pelos caminhos falsos, preferir o poder ao amor, a força à mansidão, a reação violenta à mansa afirmação da bondade.

Mas eu sei que, a despeito da minha estupidez, o teu Espírito me ama, freqüenta os meus sonhos, as minhas entranhas, os desejos que não sei dizer... e intercede por mim e por meus irmãos, neste mundo que criaste, com gemidos profundos demais para as palavras...
Aceita, meu Pai, os meus gemidos inarticulados como expressão da minha prece... Mas, na minha fome, tenho necessidade de sinais visíveis da tua graça invisível.
Serve­-me os teus sacramentos, os primeiros frutos deste Reino, nostalgia da nossa alma... Tenho sede de sorrisos, de olhares mansos, de palavras brandas, de gestos firmes pela verdade e pela bondade; de vitórias, por pequenas que sejam, da justiça...
Tu sabes, ó Pai, que é muito difícil sobreviver no cativeiro, sem a esperança da Cidade Santa. "Pelos rios da Babilônia nos assentamos e choramos, lembrando-­nos de Sião..." Canta­-nos, ó Deus, as canções da terra prometida. Serve­-nos no deserto o maná. E concede-­nos a graça de brincar e saltar nos teus dias de descanso, como expressão de confiança...
E que haja, em algum lugar, uma comunidade de homens, mulheres, velhos, crianças e nenezinhos de peito que seja um primeiro fruto, um aperitivo, uma carícia do futuro. Amém!

(Rubem Alves)

Fatos & Personagens: Cecília

Silvina Parodi
Uma mulher conta

Vários generais argentinos foram levados a julgamento por causa das façanhas que cometeram nos tempos da ditadura militar.

Silvina Parodi, uma estudante acusada de atividades subversivas por viver protestando e criando caso, foi uma das muitas prisioneiras desaparecidas para sempre.

Cecília, sua melhor amiga, prestou depoimento, diante do tribunal, no ano de 2008. Contou os suplícios que havia sofrido no quartel, e disse que tinha sido ela quem entregou o nome de Silvina, quando não conseguiu mais aguentar as torturas de cada dia e de cada noite.

“Fui eu. Eu levei os verdugos até a casa onde Silvina estava. Eu vi quando ela saiu, aos empurrões, às coronhadas, aos pontapés. Eu escutei ela gritar.”

Na saída do tribunal, alguém se aproximou e perguntou a Cecília, em voz baixa: “E depois de tudo isso, como é que você faz para continuar vivendo?” Ela respondeu, em voz mais baixa ainda: “E quem é que disse que eu estou viva?”


(Eduardo Galeano, Os filhos dos dias, L&PM, 2012, p. 195)