quinta-feira, 26 de março de 2020

Um poema para manter a comunhão


¿CÓMO ESTOY?

Ya que me preguntas sobre cómo estoy, te respondo, ahora, desde lo que vivo, a diario, desde lo que pienso, tal vez, a cada rato, desde lo que siento muy dentro de mi alma. 

Distante estoy, pero no soy indiferente, porque no me ausento de tu mundo; ni te trato con rechazo, porque te acepto; ni te ignoro, porque para mí eres importante.

Distanciado estoy, pero no ensimismado, porque no me aíslo de lo que te pasa, porque la realidad de este mundo me acuchilla en el corazón que me sangra. 

Encerrado estoy, pero abierto al otro, que necesite mi escucha atenta, mi ayuda solidaria, mi palabra de aliento, mi respeto ante la marcada diferencia. 

Solo estoy, pero inmensamente solidario con la humanidad por la que rezo; con la gente que sufre, compartiendo su dolor, con el pueblo, al que sirvo en lo que pueda. 

Aunque, por ahora, no me junto con nadie, para charlar sobre temas y reír a carcajadas, abrazo a la gente con mi sencilla reflexión y, con algún poema, le acaricio el corazón. 

Así, vivo cada instante, con esperanza de que esta pandemia no será para siempre; y estoy abierto, con esta fe viva y despierta, amando a mis hermanos, unido a mi Dios.

(Pe. Flamínio, Carmelita de Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. Partilhado pelo Pe. Loacir msf)

O evangelho dominical (Pagola) - 29.03.2020


UMA PORTA ABERTA

Estamos demasiado presos pelo «mais cá» para nos preocuparmos com o «mais lá». Submetidos a um ritmo de vida que nos atordoa e escraviza, oprimidos por uma informação asfixiante de notícias e acontecimentos diários, fascinados por mil atrativos que o desenvolvimento técnico coloca nas nossas mãos, parece que não necessitemos de um horizonte mais amplo do que esta vida na qual nos movemos.

Para que pensar em outra vida? Não é melhor gastar todas as nossas forças em organizar o melhor possível a nossa existência neste mundo? Não deveríamos esforçar-nos ao máximo em viver esta vida de agora e calarmo-nos a respeito de tudo o resto? Não é melhor aceitar a vida com a sua escuridão e os seus enigmas, e deixar o além como um mistério do qual nada sabemos?

No entanto, o homem contemporâneo, como o de todas as épocas, sabe que, no fundo do seu ser, está sempre latente, a pergunta mais séria e difícil de responder: o que acontecerá com todos e cada um de nós? Qualquer que seja a nossa ideologia ou a nossa fé, o verdadeiro problema que todos estamos enfrentando é o nosso futuro. Que fim nos espera?

Peter Berger recordou-nos com profundo realismo que «toda a sociedade humana é, em última instancia, uma congregação de homens frente à morte». Por isso, é precisamente ante a morte que aparece com mais claridade a verdade da civilização contemporânea que, curiosamente, não sabe o que fazer com ela, a não ser escondê-la e evitar ao máximo seu trágico desafio.

Mais honesta parece ser a posição de pessoas como Eduardo Chillida, que em algumas ocasiões se expressou nestes termos: «Da morte, a razão diz-me que é definitiva. Da razão, a razão diz-me que é limitada».

É aqui onde temos que situar a posição do crente, que sabe lidar com realismo e modéstia o ato inevitável da morte, mas que o faz com uma confiança radical no Cristo ressuscitado. Uma confiança que dificilmente pode ser entendida desde fora, e que só pode ser vivida por quem escutou, alguma vez, no fundo do seu ser, as palavras de Jesus: «Eu sou a ressurreição e a vida». Acreditas nisto?

José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

Para rezar em tempos de quarentena

Eu fico em casa, Senhor!

Eu fico em casa, Senhor!
E hoje dou-me conta de que, também isto, Tu me ensinaste, permanecendo, em obediência ao Pai, durante trinta anos na casa de Nazaré, na expectativa da grande missão.
Eu fico em casa, Senhor!
E na oficina de José, teu e meu guardião, aprendo a trabalhar, a obedecer, para aplainar as arestas da minha vida, e preparar uma obra de arte para ti.
Eu fico em casa, Senhor!
E sei que não estou só, porque Maria, como toda a mãe, está lá a tratar dos assuntos e a preparar o almoço para nós, todos família de Deus.
Eu fico em casa, Senhor!
E responsavelmente o faço para o meu bem, pela saúde da minha cidade, dos meus entes queridos, e pelo bem do meu irmão, que Tu me colocaste ao lado,
pedindo-me para o guardar no jardim da vida.
Eu fico em casa, Senhor!
E, no silêncio de Nazaré, comprometo-me a rezar, a ler, a estudar, a meditar, a ser útil com pequenos trabalhos, para tornar mais bela e acolhedora a nossa casa.
Eu fico em casa, Senhor!
E de manhã te agradeço pelo novo dia que me dás,
procurando não estraga-lo, e acolhendo com admiração, como um presente e uma surpresa de Páscoa.
Eu fico em casa, Senhor!
E ao meio dia receberei de novo a saudação do anjo,
far-me-ei servo por amor, em comunhão contigo, que te fizeste carne para habitar no meio de nós; e, cansado pela viagem, sedento te encontrarei junto ao poço de Jacó, e sequioso de amor na cruz.
Eu fico em casa, Senhor!
E se ao anoitecer me tomar um pouco de melancolia, te invocarei como os discípulos de Emaús: «Fica conosco, porque anoitece, e o dia já declina».
Eu fico em casa, Senhor!
E na noite, em comunhão orante com os muitos doentes e as pessoas sós, esperarei a aurora
para cantar de novo a tua misericórdia, e dizer a todos que, na tempestade, Tu foste o meu refúgio.
Eu fico em casa, Senhor!
E não me sinto só e abandonado, porque Tu me disseste: «Eu estou convosco todos os dias».
Sim, e sobretudo nestes dias de perturbação, ó Senhor, nos quais, se a minha presença não for necessária, chegarei a todos unicamente com as asas da oração.
Amém.
(Dom Giuseppe Giudice, bispo de Nocera Inferiore-Sarno)

quarta-feira, 25 de março de 2020

ANO A | TEMPO QUARESMAL | QUINTO DOMINGO | 29.03.2020


O coração de quem ama e cuida é um coração que sofre...
A Quaresma nos convida a avançar na descoberta do mistério de uma vida divinamente humana que se revela em Jesus de Nazaré. E o fazemos tomando consciência das nossas fragilidades, possibilidades e esperanças. Sabemos que a vida é como a flor do campo, bela e vulnerável. Desejamo-la ardentemente e a escolhemos resolutamente, mesmo sabendo das ameaças constantes que ela sofre. A atual banalização da vida se alimenta de uma mentalidade que relativiza a existência e do enfraquecimento do conceito de pessoa, e acaba justificando os homicídios e o extermínio de inteiros grupos humanos (cf. Texto-Base, 54).
A humana experiência de fracasso pode nos levar a repetir o refrão acusatório contra Deus e contra o destino, como o fazem Marta e de Maria, pois têm a impressão de que Jesus havia feito pouco caso da enfermidade de Lázaro. Muitas vezes temos esta mesma sensação diante de doenças incuráveis, de acidentes trágicos, ou de pandemias arrasadoras como esta que a humanidade vive hoje. Na revolta, gerada no ventre dor, chegamos a acusar Deus, pois, nessas circunstâncias, ele nos parece ausente, desinteressado ou sem coração.
Mas sabemos que “Jesus amava Marta, a irmã dela e Lázaro”, assim como ama apaixonadamente cada um de nós. Somos sua família, seus irmãos e irmãs, seus amigos e amigas, ainda que ele não se deixe prender aos nossos desejos e interesses, nem se submeta às urgências do nosso calendário. Jesus sempre chega, no tempo oportuno, para nos ajudar a mudar as coisas, para chorar as dores que nos afligem, e não passa adiante sem se desdobrar em iniciativas de cuidado. Compassivo e terno, seu coração também sofre!
Em Betânia, Jesus encontra suas amigas em pranto, tristes pela perda do irmão e pela sua ausência injustificável. Mas ele nono é nem pse comove não é indiferente, e participa da dor das amigas, como o faz também hoje com todos aqueles que choram, impotentes e inconsoláveis. É mediante sua compaixão que ele nos faz experimentar seu amor. “Vejam como ele o amava...”, diz o povo. Eis aqui a porta que abre a possibilidade de mudança: o amor e a compaixão, tão divinos e tão humanos, essencial no enfrentamento das tragédias que nos arrasam.
Acreditar em Jesus Cristo não significa simplesmente apostar no poder de Deus, implica em confiar na força do seu amor. Da parte de Jesus, o amor que se compadece; da nossa parte, a confiança que abre horizontes e possibilidades. Da fé e da abertura ao amor compassivo e solidário de Jesus brotam as novas possibilidades de vida e a força da ressurreição. “Se você acreditar, verá a glória de Deus”. Esta é a glória de Deus: seu amor pela humanidade. A glória de Deus é o ser humano vivo, ensinava Santo Irineu.
Jesus convida Maria a ultrapassar a dor e o medo que obscurecem o olhar da sua fé. E Lázaro, no escuro da morte e no fundo da sepultura, também é interpelado: “Vem para fora!” Este grito de Jesus, pronunciado como oração, chama-nos todos à vida, a um novo olhar e um novo agir. É apelo a sair dos nossos interesses e projetos, geralmente nascidos e nutridos no ventre do medo e da indiferença. É um convite a sair da prisão dos sistemas de poder e de morte e a empreender um caminho, a fazer a passagem-páscoa.
Nesta saída, como em toda travessia, nossos passos serão sempre necessariamente inseguros. Pertencemos à história e temos muitas amarras. Mas escutamos, de formas diversas, uma ordem: “Desamarrem e deixem que ele ande...” A fé em Jesus Cristo não é doutrina que fecha, peso que oprime, laço que amarra. Oxalá todas as Igrejas aprendam esta lição! Como diz Paulo, crer significa deixar-se conduzir pelo Espírito de Deus e superar a busca compulsiva dos interesses egoístas.
Marta e Maria acreditaram e por isso viram a glória de Deus, patente e potente na compaixão que resgata a vida. E muitos judeus que “viram o que Jesus fez, acreditaram nele”. Mas o que é que eles realmente viram? Contemplaram e testemunharam a profunda humanidade de Deus e este incrível dinamismo que o aproxima das suas criaturas machucadas e oprimidas, sem se importar se elas cheiram mal, compartilhando a dor que nos fere. Viram isso na relação de Jesus com Lázaro, com Maria e com Marta, e por isso acreditaram!
Senhor, as trevas do medo nos envolvem, mas em ti há luz. Sentimo-nos sozinhos, mas tu não nos abandonas. Sentimo-nos desfalecer, mas em ti encontramos socorro. Estamos inquietos, mas em ti encontramos a paz. A amargura nos devora, mas em ti encontramos a paciência. Não compreendemos teus caminhos, mas tu sabes qual é a boa estrada. Acolhe-nos como membros vivos do teu corpo, e assim te ajudaremos a chamar para fora, a consolar nossos irmãos e irmãs, e a vencer o vírus com a vacina da solidariedade. Assim seja! Amém!    
Itacir Brassiani msf
Profecia de Ezequiel 37,12-14 | Salmo 129 (130)
Carta de Paulo aos Romanos 8,8-11 | Evangelho de São João 11,1-45

quinta-feira, 19 de março de 2020

O Evangelho dominical (Pagola) - 22.03.2020


OLHOS NOVOS

O relato do cego de Siloé está estruturado a partir de uma chave de forte contraste. Os fariseus acreditam que sabem tudo. Não duvidam de nada. Impõem a sua verdade. Chegam, inclusive, a expulsar da sinagoga o pobre cego: «Sabemos que Deus falou a Moisés». «Sabemos que esse homem que te curou não guarda o sábado». «Sabemos que é um pecador».
Pelo contrário, o mendigo curado por Jesus não sabe nada. Apenas conta a sua experiência a quem o queira escutar: «Só sei que era cego e agora vejo». «Esse homem tocou os meus olhos e comecei a ver». O relato termina com esta advertência final de Jesus: «Eu vim para que os que não vêm, vejam, e os que vêm fiquem cegos».
A Jesus dá-lhe medo uma religião defendida por escribas seguros e arrogantes, que manejam autoritariamente a Palavra de Deus para impô-la, para usá-la como arma, inclusive para excomungar a quem sentem de maneira diferente. Teme os doutores da lei, mais preocupados em guardar o sábado do que em curar mendigos doentes. Parece-lhe uma tragédia, uma religião com guias cegos, e diz abertamente: «Se um cego guia outro cego, os dois cairão no buraco».
Na condição de teólogos, pregadores, catequistas e educadores, que pretendem guiar outros sem ter-se deixado iluminar por Jesus, não devemos ouvir a sua interpelação? Vamos continuar a repetir incansavelmente as nossas doutrinas sem viver uma experiência pessoal de encontro com Jesus que nos abra os olhos e o coração?
A nossa Igreja hoje não precisa de pregadores que encham as igrejas de palavras, mas de testemunhas que contagiem, mesmo que de forma humilde, com a sua pequena experiência do evangelho. Não necessitamos de fanáticos que defendam «verdades» de forma autoritária e com linguagem vazia, cheios de clichês e frases feitas.
Necessitamos de crentes de verdade, atentos à vida e sensíveis aos problemas das pessoas, buscadores de Deus capazes de escutar e acompanhar com respeito a tantos homens e mulheres que sofrem, procuram e não conseguem viver de uma maneira mais humana ou mais crente.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 18 de março de 2020

4º Domingo da Quaresma (A. Palaoro sj)


DESCER ÀS ÁGUAS DE SILOÉ

Tem-se dito, e com razão, que a espiritualidade cristã é uma espiritualidade de olhos abertos. Na realidade, isso vale para toda espiritualidade genuína, ou, em outras palavras, não seria verdadeira aquela espiritualidade que nos alienasse ou nos isolasse da realidade, em particular da realidade mais dolorida e sofredora. Há motivos para suspeitar de uma espiritualidade que não desemboca na compaixão, entendida esta como a capacidade de entrar em sintonia com o outro que sofre, e que se traduz numa ação eficaz a seu favor.
A Campanha da Fraternidade deste ano nos apresenta o samaritano como personagem inspirador na nossa vivência da espiritualidade cristã: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele”. Todos nós, de uma maneira ou de outra, somos cegos de nascimento, porque nascemos e crescemos em meio a sistemas sociais e religiosos que domesticaram nosso olhar, nos educaram a ter um olhar avesso e atrofiado. A cura do cego de nascimento, apresentado pelo evangelista João, é o sinal que nos fala daquilo que o Senhor nos oferece: caminhar na claridade do dia.
Este homem está cego, já que nasceu no mundo fechado e ao longo de toda a sua vida aprendeu a ver com o olho cego da sinagoga. Jesus vai curá-lo através de um gesto de íntima proximidade; não realiza um espetáculo para provocar espanto, nem diz palavras ininteligíveis. Simplesmente agachou-se, cuspiu no chão e com sua própria saliva fez um pouco de barro; com a gema de seus dedos tocou com ternura os olhos do cego e o enviou a lavar-se na piscina de Siloé. É uma cena de reconstrução de uma pessoa quebrada e que nos recorda o primeiro barro com que Deus oleiro criou o primeiro ser humano. No cego curado se revela a ação permanente de Deus: despertar a luz escondida em nosso interior, ativar a vida para dar-lhe amplitude maior.
Com o relato do cego de nascença, o evangelista João está propondo um processo catecumenal que conduz o ser humano das trevas à luz, da opressão à liberdade, da identidade ferida à identidade reconstruída, da exclusão à participação. Mas, para isso, é preciso deslocar-se, fazer a travessia e descer em direção a Siloé, lugar das águas re-criadoras. Este texto remete à experiência fundante da vida. O caminho de “descida” é o caminho da vida. Siloé está situada na parte baixa da cidade, afastada daqueles que, na parte alta, controlam e manipulam religião e as pessoas, através da centralidade da lei, do culto, da tradição. Ali não há possibilidade da vida se expandir e se expressar em todas as suas potencialidades.
O reservatório de Siloé estava situado fora das muralhas, na parte baixa de Jerusalém e recolhia a água da fonte de Guijón e que chegava até ele conduzida por um canal-túnel (daí o nome aramaico de “siloah” = emissão-envio, água emitida-enviada). Era uma maravilha de engenharia, mandado construir pelo rei Ezequias no ano 700 ac, para fazer a água chegar à cidade.
No final daquele túnel o cego se faz presente, lava-se, assume sua vida, torna-se independente: um novo nascimento. Agora ele começa a acreditar em si mesmo, em seu valor como ser humano, em sua capacidade de ver e de dar direção à sua vida; assume sua condição humana e deixa de se sentir escravo dos outros, controlado por pais e mestres, como um mendigo inútil; na sua liberdade, ele agora pode assumir sua vida, decidir, dizer, afirmar-se.
Inspirados no evangelista João poderíamos dizer: a doença é a manifestação da perda do contato do ser humano com sua fonte divina. As duas narrativas de cura mais importantes no quarto evangelho, ocorrem no tanque de Betesda e no reservatório de Siloé. Quando o ser humano é separado de sua fonte divina, ele adoece, e a cura acontece, quando esse contato com a fonte interior é reestabelecido. Para que isso aconteça, Jesus não precisa levar o doente até a piscina de Siloé; bastam o encontro com Ele e a força de Sua palavra para reconectar o enfermo com sua fonte profunda, da qual estivera separado.
Jesus reconstrói o cego quebrado em sua dignidade, mas motiva-o a assumir sua responsabilidade, deslocando-se ao reservatório de água de Siloé e rompendo sua dependência para com os fariseus e sacerdotes que o oprimiam, mantendo-o preso à sua situação de cegueira existencial. O apelo de Jesus é para que o cego seja ele mesmo, em liberdade; com seus gestos e com a força de sua palavra, Jesus despertou no cego a mobilidade e independência.
Nesse sentido, caminhar em direção a Siloé é descer em direção à própria humanidade, ao mais profundo de si mesmo, para lavar-se no manancial das águas puras. O cego seguiu as instruções, recuperou a vista e atingiu a integridade humana: passou da morte à vida, da opressão à liberdade.
Todos sabemos que o ser humano é dotado de recursos internos inesgotáveis.Cada um possui dentro de si uma fonte de forças reconstrutoras, renováveis, resilientes. Mas, muitas vezes, é preciso de um estímulo externo para reconectar-se com essa fonte. Sabemos e sentimos, no mais profundo, o que é mais saudável e vital para nós, porém precisamos do encorajamento externo para voltar a confiar em nossas próprias potencialidades.
O evangelho deste domingo nos ensina o caminho através do qual descemos a uma dimensão mais profunda e assim chegamos à corrente subterrânea; aqui experimentamos a unidade de nosso ser; aqui é o lugar da transcendência, onde nossa transformação realmente acontece. Tal experiência significa abertura, dilatação do coração, expansão da consciência ao ver que tudo parte de Deus (Fonte do rio da vida) e tudo volta para Deus (rio que mergulha no Mar).
A experiência de oração, junto à Piscina de Siloé, nos conduzirá à outra fonte, aquela que brota do coração, e que estava ressequida, impedindo-nos de reconhecer o murmúrio da água viva. Sentados à beira da fonte silenciosa, poderemos, também nós, atingir experiências imprevistas e surpre-endentes, ou reconhecer, através do murmúrio das águas, “vozes novas” que nos incitam a peregrinar para as regiões desconhecidas do nosso próprio interior. Só assim, poderemos vislumbrar o outro lado e tocar as raízes mais profundas que dão sentido e consistência ao nosso viver.
O manancial de nosso ser essencial constitui nossa autêntica vida. Descobri-lo, abrir-nos a ele, fazer-nos transparentes a ele e vivê-lo cada dia, constituem a plenitude de nossa realização. A “descida” até o mais profundo de nós mesmos, requer que deixemos para trás um contexto de competição, de rivalidade e vazio, de fechamento e rigidez, de superficialidade e isolamento. O encontro com a “água viva”  abre futuro novo, motivando-nos à tomada de decisões, a assumir um estilo de vida coerente com aquilo que encontramos no fundo do nosso próprio coração.
Pe. Adroaldo Palaoro sj

ANO A | TEMPO QUARESMAL | QUARTO DOMINGO | 22.03.2020


O olhar compassivo vê, reconhece e cuida a vida ameaçada.
No evangelho deste domingo, João nos coloca, com Jesus, diante de um judeu que nasceu cego, é pobre e precisa mendigar para sobreviver. Ao mal físico da cegueira se acrescenta a chaga social da pobreza e o mal espiritual de quem pensa que o mendigo cego ou sua família são os culpados por seu sofrimento. Parece que os próprios discípulos pensam assim. E é malvisto e suspeito quem ousa ver ou pensar diferente, mudar esta condição considerada natural e atuar contra os costumes e leis que cimentam esta ordem social! “Este homem não pode vir de Deus... Nós sabemos que este homem é um pecador”, dizem de Jesus.
O olhar de Deus é outro, e seus caminhos são alternativos. Este olhar diverso e inverso, próprio de Deus e daqueles que nele acreditam, se mostra de forma claríssima em Jesus de Nazaré. Para ele, nem o cego mendigo nem sua pobre família são culpados de qualquer coisa. Jesus não explica as causas da cegueira do mendigo, mas, diante dela, chama todos e cada um a tomar uma posição responsável. “Temos que realizar as obras daquele que me enviou...” Estamos diante de uma pessoa necessitada que pede uma ação solidária, e não diante de alguém que está aí para ser julgado. E a ação deve ser imediata, não há tempo a esperar!
Em Jesus de Nazaré temos a Luz que ajuda a ver e compreender a realidade assim como ela é. “Enquanto estou no mundo, eu sou a luz do mundo...” Trata-se de ver o sofrimento e a opressão dos empobrecidos e excluídos e de chamá-los a ocupar os primeiros lugares, de recuperar a visão daqueles que não conseguem ver e de devolver-lhes a cidadania. Jesus cura o cego, justifica sua família e desmascara a culpa da elite religiosa. Assim, questiona a ordem estabelecida e quem a sustenta. Enquanto as elites, inclusive as religiosas, se comprazem em culpar as vítimas e inocentar os algozes, Jesus desmascara suas cínicas mentiras.
Como discípulos e discípulas de Jesus, precisamos desenvolver um olhar que transcende as aparências, agir de modo a derrubar os muros construídos pela exclusão e mantidos pela indiferença globalizada, vencer o medo que acomoda e nos leva a duvidar de que existam pessoas e grupos excluídos. “Não acreditaram que ele tinha sido cego...”  Toda ideologia, instituição ou sistema fechado em si mesmo, com pretensões de totalidade – seja ele partido, nação, empresa, Igreja ou academia – tem vocação totalitária e, portanto, cai na tentação das práticas de indiferença e de exclusão.
Nesta quaresma, somos convidados à conversão pessoal e a defender a vida ameaçada. Somos interpelados pelo Samaritano, que “viu, sentiu compaixão e cuidou”. Para mudar verdadeiramente nossa vida, precisamos “aprender a configurar o nosso olhar com o de Jesus”, que, do alto da cruz, viu, perdoou nossos pecados e nos salvou por sua misericórdia (cf. Texto-Base, nº 26; 84). No seguimento de Jesus Cristo, não há lugar para um olhar que incrimina, ou que vê com indiferença e se afasta. O olhar compassivo conduz à aproximação, a “uma presença que salvaguarda, cuida e transforma a vida de quem mais precisa” (idem, nº 83).
Paulo pede que nos comportemos como “filhos da luz”, o que significa ser bom com todos, reconhecer e afirmar a dignidade dos sem dignidade, lutar pela justiça, reestabelecer a verdade. E o ponto de partida é despertar do sono e praticar a necessária autocrítica: “Será que também somos cegos?” Os passos seguintes são a perseverança no caminho de Jesus de Nazaré, a incorporação do seu ponto de vista, a colaboração generosa com sua ação libertadora. E isso sem se deixar enganar com a aparência ou a estatura dos grandes.
Mas este é um caminho sempre cercado de ameaças e incompreensões. O cego e mendigo que recuperou a capacidade de ver e discutir com as autoridades enfrentou sentenças ferozes e condenações inapeláveis: “Você nasceu inteirinho no pecado e quer nos ensinar?” E o próprio Jesus, por ter ousado retirar o véu dos olhos do cego e levantar o manto ideológico da exclusão que o vitimava, não tardou a ser carimbado como pecador. Não é novidade que muitos pastores e profetas de hoje sejam demonizados e execrados por aqueles que se comprazem em rotular e excluir as vítimas para continuar desfrutando delas.
Jesus, humano e divino profeta de Nazaré, Luz do nosso olhar e razão do nosso caminhar: Tu nos ensinas que abrir os olhos e ver as coisas na tua perspectiva é um caminho que nunca termina de começar. Ajuda-nos a reconhecer que tu és a Luz que revela a dignidade das pessoas que são vistas como mercadoria ou reduzidas a consumidoras. Guia-nos a uma vida realmente sábia e generosa, como fizestes com a mulher da Samaria e com o anônimo mendigo e cego. E ensina-nos a superar o olhar indiferente dos oficiais da religião (do sacerdote e do levita) e a exercitar a compaixão que restitui e promove a vida. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Primeiro Livro de Samuel 16,6-13 | Salmo Salmo 22 (23)
Carta de Paulo aos Efésios 5,5-14 | Evangelho de São João 9,1-41

quinta-feira, 12 de março de 2020

O Evangelho dominical (Pagola) - 15.03.2020


ALGO NÃO ESTÁ BEM NA IGREJA

A cena foi recriada pelo evangelista João, mas permite-nos conhecer como era Jesus. Um profeta que sabe dialogar sozinho e amigavelmente com uma mulher samaritana, pertencente a um povo impuro, odiado pelos judeus. Um homem que sabe escutar a sede do coração humano e restaurar a vida das pessoas.
Junto ao poço de Sicar, ambos falam sobre a vida. A mulher convive com um homem que não é o seu marido. Jesus sabe disso, mas não se indigna nem recrimina. Fala-lhe de Deus e explica-lhe que é um «presente»: «Se conhecesses o dom de Deus, tudo mudaria, até a tua sede insaciável de vida». No coração da mulher, desperta uma pergunta: «Será este o Messias?»
Algo não está bem na nossa Igreja, se as pessoas mais solitárias e maltratadas não se sentem escutadas e acolhidas pelos que dizemos seguir Jesus. Como vamos introduzir no mundo o seu evangelho sem sentar para escutar o sofrimento, o desespero ou a solidão das pessoas?
Algo não está bem na nossa Igreja se as pessoas nos veem quase sempre como representantes da lei e da moral, e não como profetas da misericórdia de Deus. Como vão «adivinhar» em nós aquele Jesus que atraia as pessoas para vontade do Pai, revelando-lhes o Seu amor compassivo?
Algo não está bem na nossa Igreja quando as pessoas, perdidas numa obscura crise de fé, perguntam por Deus e nós falamos de controle de natalidade, de divórcio ou de preservativos. De que falaria hoje com as pessoas, aquele, que dialogava com a samaritana tratando de mostrar-lhe o melhor caminho para saciar a sua sede de felicidade?
Algo está mal na nossa Igreja se as pessoas não se sentem amadas por aqueles que são os seus membros. Dizia Santo Agostinho: «Se queres conhecer uma pessoa, não perguntes o que pensa, pergunta o que ama». Ouvimos falar muito sobre o que a Igreja pensa, mas os que sofrem perguntam-se o que ama a Igreja, quem ama e como os ama. Que podemos responder desde as nossas comunidades cristãs?
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 11 de março de 2020

ANO A | TEMPO QUARESMAL | TERCEIRO DOMINGO | 15.03.2020


“A Vida é um intercâmbio de cuidados!”
No terceiro domingo da quaresma, somos convidados a descobrir o modo como se manifesta a presença de Jesus no meio de nós e desfrutar dessa presença maravilhosa, movente e comovente. Ele vem ao nosso encontro como necessitado, desce às profundezas da condição humana, derruba os muros, relativiza as ideologias que separam e opõem, liberta das rotinas que causam dependência e desperta nossa sede de viver e de servir. O vida é dom de Deus, e não conhece limites nem fronteiras. Como nos ensina a Campanha da Fraternidade, “a Vida é um intercâmbio de cuidados” (Texto-Base, 172).
No evangelho de hoje, João nos apresenta Jesus como sacramento vivo de um Deus que vem ao nosso encontro. Ele se aproxima cansado, sedento, pedinte. O mesmo Deus que, na travessia do deserto, fez brotar água da rocha, aparece agora percorrendo nossas estradas e pedindo água. E assim o faz, terno e cuidadoso, para suscitar e sustentar um profundo intercâmbio de dons, para nos ajudar a descobrir nossas próprias sedes, nosso Desejo mais profundo, que é conhecê-lo e viver plenamente. “Dá-me desta Água Viva!”
Como aquela mulher da Samaria, frequentemente imaginamo-nos poderosos e autossuficientes, e nos entregamos cegamente às regras e doutrinas, tradições e leis, sem desejar nem esperar nada de novo. Cavamos poços e inventamos muros que separam povos, religiões e culturas, e eliminamos nossa própria Sede, aquilo que nos falta. Fazemos de conta que as instituições que criamos nos bastam, e que fora delas não há vida possível ou desejável. “Tu não tens balde e o poço é fundo... Como vais tirar esta água viva?”
Jesus aparece de repente, e entra em nossa vida para nos lembrar que as religiões e culturas, as tradições e leis não têm forças para, por si mesmas, saciar as mais profundas sedes humanas. A função da religião não é estancar, mas manter viva aquela Sede que dinamiza a vida do ser humano, que convida a trilhar caminhos não conhecidos, que nos ajuda a descobrir novas possibilidades de organizar o mundo e a sociedade, que revela brechas alternativas de comunhão e de solidariedade entre os povos.
Como a samaritana, também nós fazemos alianças e buscamos muletas – mais que cinco! – na ilusão de que elas sustentem nossos interesses estreitos e egoístas: a pátria, a raça, a religião, a igreja, o partido, o livre mercado... Acreditamos cegamente que eles nos ajudam a crer de modo correto e a viver com segurança. “Os nossos pais adoraram Deus sobre este monte, mas vocês dizem que é em Jerusalém que se deve adorá-lo”, disse a mulher. Fora disso, no máximo, ensaiamos uma pobre oração pelos que sofrem.
Precisamos compreender que Deus procura verdadeiros adoradores, pessoas que correspondam a ele em espírito e verdade, ou melhor, em ação e fidelidade. Estes são os discípulos e discípulas que, como o Mestre, têm como alimento o desejo de fazer a vontade de Deus, participam da sua obra e a completam: produzem vida abundante para seu povo, geram mais solidariedade que divisão, valorizam e cuidam da vida nas suas diversas expressões, exercitam mais acolhida que a doutrina, propõem mais ações que palavras.
Com seu jeito de se aproximar e com sua acolhida sem limites, Jesus leva aquela mulher da Samaria a descobrir sua própria verdade. E então ela deixa de repetir mecanicamente as ações determinadas pelo hábito, pela cultura e pela condição humilhada que a sociedade lhe impusera, e se torna “uma fonte de água que jorra para a vida eterna”. Ela deixa o balde e corre à cidade para anunciar: “Venham ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não seria ele o Messias?” Aquela que era desprezada renasce como missionária!
Como anuncia Paulo, por meio de Jesus Cristo estamos em paz com Deus e somos dinamizados pela esperança. Esta esperança não engana, pois o amor de Deus já nos envolve e guia, mediante o Espírito Santo. E isso não porque já estejamos plenamente convertidos ou isentos de pecado, mas porque, como ensina a Campanha da Fraternidade, uma vida impulsionada pela ternura não teme enfrentar a escuridão dos erros e dos pecados, pois ultrapassa a escuridão e encontra a pessoa, como Deus a sonhou (cf. Texto-Base, 141).
Jesus, peregrino no meio-dia da história, água que sacia nossa sede! Como a samaritana, sentimo-nos muito seguros das doutrinas que recebemos da tradição. Toca com tua mão, ou com o teu chicote, as pedras das nossas instituições e a crosta do nosso coração, e liberta a água viva e livre que elas querem aprisionar. Ajuda-nos a experimentar tua santa liberdade e a ser testemunhas intrépidas de uma religião que não se compraz na simples repetição de doutrinas e na celebração de ritos. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Livro do Êxodo 17,3-7 | Salmo Salmo 94 (95)
Carta de Paulo aos Romanos 5,1-8 | Evangelho de São João 4,5-42

quinta-feira, 5 de março de 2020

O Evangelho dominical (Pagola) - 08.03.2020


OS MEDOS DA IGREJA

Provavelmente, o medo é o que mais paralisa os cristãos e dificulta seguir fielmente a Jesus Cristo. Na Igreja atual, há pecado e fraqueza, mas, há sobretudo, medo de correr riscos. Iniciamos o terceiro milênio sem audácia para renovar criativamente a vivencia da fé cristã. Não é difícil assinalar alguns desses medos.
Temos medo do novo, como se conservar o passado garantisse automaticamente a fidelidade ao Evangelho. É verdade que o Concílio Vaticano II afirmou deforma rotunda que na Igreja deve haver uma constante reforma, pois como instituição humana, necessita-a permanentemente. No entanto, não é menos verdade que o que move a Igreja nestes momentos não é tanto um espírito de renovação, mas um instinto de conservação.
Temos medo de assumir as tensões e conflitos que surgem com a busca de fidelidade ao Evangelho. Calamo-nos quando deveríamos falar; inibimo-nos quando deveríamos intervir. Proíbe-se o debate de questões importantes, para evitar situações que podem inquietar. Preferimos a adesão rotineira que não traz problemas nem desgosta a hierarquia.
Temos medo da investigação teológica criativa. Medo de rever ritos e linguagens litúrgicas que não favorecem hoje a celebração viva da fé. Medo de falar dos direitos humanos dentro da Igreja. Medo de reconhecer praticamente à mulher um lugar mais de acordo com o espírito de Jesus.
Temos medo de colocar a misericórdia acima de tudo, esquecendo que a Igreja não recebeu o ministério do julgamento e da condenação, mas o ministério da reconciliação. Há medo de acolher os pecadores como Jesus fez. Dificilmente se dirá hoje da Igreja que é amiga dos pecadores, como se dizia do Seu Mestre.
Segundo o relato evangélico, os discípulos caem por terra cheios de medo ao ouvir uma voz que lhes diz: «Este é o meu Filho amado ... escutai-O». É assustador ouvir apenas Jesus. É o próprio Jesus quem se aproxima, toca-lhes e diz: «Levantai-vos, não tenhais medo». Só o contato vivo com Cristo nos poderia libertar de tanto medo.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 4 de março de 2020

ANO A | TEMPO QUARESMAL | SEGUNDO DOMINGO | 08.03.2020


Jesus é a Boa Notícia que humaniza, e precisamos levá-lo a sério!
O caminho da vida cristã inaugurado por Jesus Cristo, autenticamente humano e plenamente divino, é amor e serviço. E o amor é sempre exigente! Na prisão, Paulo experimenta isso na própria carne, vive o sofrimento por amor como graça, e pede que participemos do seu sofrimento pelo Evangelho. É nesta humana capacidade de sofrer por amor que se esconde o sentido da vida e a maior glória que podemos desejar. Uma vida levada adiante como amor e serviço traz em si a vitória sobre a morte e o brilho da imortalidade!
No segundo domingo da quaresma meditamos sobre a transfiguração de Jesus. Depois de ter perguntado aos discípulos o que o povo pensava sobre ele, Jesus interrogou os próprios discípulos, e ouviu de Pedro uma resposta que apontava para um messianismo forte e nacionalista: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo!” Nessa profissão de fé formalmente correta se escondem ideias e expectativas bastante contraditórias, e Jesus sente necessidade de esclarecer esse messianismo marcado pela ideia de poder e de nação.
Então, Jesus começa a corrigir atentamente as expectativas de sucesso e honra que povoam a mente e o coração de Pedro e dos demais discípulos: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; mas quem perde a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la” (Mt 16,24-25). Os discípulos não compreendem estas insistentes palavras de Jesus. Eles, como nós, precisam alimentar-se com sua Palavra e purificar o olhar para serem capazes de, como o bom samaritano e o próprio Jesus, ver, aproximar-se e cuidar da vida ameaçada, com eficácia e ternura.
Seis dias depois dessas tensões e lições, ocorre a transfiguração de Jesus. A ênfase do relato está mais na dimensão auditiva (a palavra que ressoa desde o interior da nuvem) que no aspecto visual (o brilho forte como o do sol e a brancura brilhante como a da luz). É verdade que a mudança no aspecto visual de Jesus chama a atenção dos discípulos e provoca entusiasmo, tanto que eles até desejam prolongar no tempo esta experiência. É sempre assim: experiências de poder e glória costumam embriagar e podem levar ao fanatismo. Por isso, o evangelho quer chamar nossa atenção para a voz que vem da Nuvem.
Na cena, Jesus aparece acompanhado por Elias e Moisés e conversa com eles. Eles são dois ícones da história do povo de Israel: Moisés, que lembra o êxodo libertador, e Elias, que recorda a profecia corajosa, radicada na experiência de um Deus que caminha com seu povo mas não se deixa prender a nenhuma imagem. Parece que conversam com Jesus sobre o anseio de liberdade e a necessidade de profecia. Mas os discípulos não parecem interessados nisso. Eles se deixam seduzir pelo brilho da cena e fecham os ouvidos ao que se fala.
A nuvem tenebrosa e luminosa que envolve os discípulos assustados recorda o êxodo, a longa e exigente travessia da escravidão para a liberdade. Se antes eles estavam achando tudo muito bom e bonito, caem no chão e são tomados pelo medo quando são envolvidos pela nuvem. Parece que o temor aumenta quando ouvem a voz que ordena: “Este é o meu filho amado, nele está o meu pleno agrado: escutai-o!” Escuta séria e atenta é o que faltava aos discípulos. Nenhum seguidor de Jesus pode pretender menosprezar a lição de um Deus que se deixa crucificar por amor. “Confessar que Jesus deu seu sangue por nós nos impede de ter dúvidas sobre o amor sem limites que enobrece todo ser humano” (CF 2020, nº 175)
O intimismo e o espiritualismo que costumam envolver e acompanhar muitas experiências religiosas podem ser perigosos quando pretendem esconder a letal aliança com o poder das elites a indiferença diante da situação dos oprimidos e das diversas formas de vida ameaçadas. A tentação de construir tendas, templos e palácios em lugares inacessíveis aos simples humanos sempre ronda a Igreja, e nem Pedro e seus sucessores estiveram imunes a ela. É preciso descer da montanha, sair dos templos, livrar-se da sedução do brilho, ganhar as ruas e não esquecer a lição da solidariedade! Na Quaresma, “recordamos e celebramos a oferta de uma vida que foi intensamente doada, dedicada, compartilhada, cuidadora”, diz a CF 2020 (nº 167).
Deus Pai e Mãe! Aqui estamos para escutar a Palavra teu Filho. Suscita e fortalece em nós um sincero desejo de ver, de aproximar-nos com compaixão e de cuidar da vida que sofre. Não nos deixes cair na tentação de armar piedosas tendas longe das dores das vítimas e dos clamores dos pobres e sofredores. Toca delicadamente nosso ombro, espanta o medo que nos aprisiona, e levanta-nos de pé, para que desçamos da montanha revestidos da coragem dos profetas e da esperança dos sonhadores. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Livro do Gênesis 12,1-4 | Salmo Salmo 32 (33)
Segunda Carta de Paulo a Timóteo 1,8-10 | Evangelho de São Mateus 17,1-9