segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Critérios para uma reforma da Igreja

O conhecido teologo suíço Hans Küng publicou, no ano passado, mais um livro tão sério  quanto polêmico. O título deste livro que ele diz ter preferido não escrever é Salvar a Igreja (tradução italiana: Salvare la Chiesa, Rizzoli, 2011). Depois de fazer um diagnóstico histórico-crítico da enfermidade grave que acomete a Igreja católica (capítulos 1-5, p. 17-202), o ele propõe algumas intervenções curativas, ou uma terapia ecumênica (capítulo 6, p. 203-278). Neste capítulo ele afirma que, para curar-se, a Igreja deve: reforçar sua missão essencial e sua responsabilidade social; o papa deve estabelecer uma radical comunhão com a Igreja; a Cúria romana deve ser reconduzida ao Evangelho; os funcionários da Cúria precisam ser escolhidos por cometência técnica e não por favoritismo pessoal; é necessrio dar um choque de transparência e de competência na administração financeira da Igreja; deve abolir a Congregação para a Doutrina da Fé e toda forma de repressão (inquisição doutrinal); precisa reelaborar radicalmente o Direito Canônico; deve liberar o casamento aos padres e bispos; precisa permitir a ordenação de mulheres; deve assegurar às comunidades diocesanas a eleição dos seus bispos; andar na direção de facultar a comunhão eucarística aos protestante e católicos; dinamizar a abertura e colaboração ecumnica, sem silêncios e desculpas. Traduzo e disponibilizo aqui o terceiro parágrafo deste último capítulo, no qual Hans Küng apresenta os critérios cristologicos desta terapia (p. 210-213).

Em poucas palavras, a Igreja é a comunidade das pessoas que aceitaram Jesus Cristo, aderiram à sua causa e a testemunham ativamente como uma esperança para o mundo. A Igreja é digna de crédito quando não anuncia a mensagem cristã primeiramente aos outros, mas começa por si mesma, não se limitando assim a pregar aquilo que Jesus pede, mas respondendo em primeira pessoa à sua proposta. Portanto, sua credibilidade depende da fidelidade a Jesus Cristo. É uma Igreja somente e na medida em que se mantém fiel a Jesus Cristo na palavra e nos fatos.
Todas as reformas devem ser avaliadas segundo o critério central da Igreja: o Jesus histórico, tal qual encontramos descrito no Novo Testamento, nos traços essenciais do seu anúncio, da sua prática e do seu destino único de Cristo dos cristãos, a despeito de todas as tentativas de destruição. Porém, aos homens e mulheres de hoje, Jesus deve ser anunciado numa língua moderna e não numa linguagem velha e dogmática, incompreensível para um mundo leigo e secularizado. Somente assim ele poderá entrar como uma figura viva no nosso presente e se tornar um critério concreto com o qual nos confrontamos.
Portanto, não podemos imaginar que se ele, a quem o cristianismo deve se referir essencialmente, retornasse hoje, como na ficção de Dostoevskij, assumisse uma posição como aquela das autoridades romanas, frequentemente compartilhada pelas demais autoridades eclesiásticas, especialmente nas questões controvertidas. Ou seja:
1.    Que ele, que criticava os fariseus por colocarem pesos insuportáveis sobre as costas do povo, possa definir todos os métodos artificiais de prevenção da gravidez como um pecado mortal, como se estes métodos tivessem como objetivo banalizar a sexualidade e conduzissem necessariamente ao aborto;
2.    Que exatamente ele, que convidava e acolhia à sua mesa as pessoas excluídas, possa hoje proibir definitivamente que participem da eucaristia as pessoas separadas e recasadas;
3.    Que ele, que era permanentemente acompanhado por mulheres e cujos apóstolos eram todos casados, possa proibir hoje o matrimônio aos homens que receberam as ordens sagradas e proibir a ordenação às mulheres;
4.    Que ele possa afastar um número sempre crescente de párocos e capelães das comunidades, privando paróquias e comunidades da celebração da eucaristia;
5.    Que ele, que protegia as pessoas adúlteras e pacadoras, possa emitir duras sentenças em questões delicadas, que pedem atenção particular e crítica (como as relações pré-matrimoniais, a homossexualidade, o aborto, etc.);
6.    Que ele estaria de acordo que, no âmbito ecumênico, a diversidade de confissão fosse um impedimento para o matrimônio e para que teólogos/as leigos/as assumam dsempenhem sua missão a serviço da Igreja;
7.    Que ele contestaria a validade da ordenação e da celebração eucarística aos pastores e pastoras protestantes;
8.    Que ele impediria a hospitalidade eucarística e a celebração comum da eucaristia, a construção de templos e centros paroquiais comuns e o ensino religioso ecumênico;
9.    Que ele, ao invés de apresentar razões e convencer os teólogos, capelães universitários, professores de ensino religioso, jornalistas e membros e responsáveis pelos movimentos jovens, procuraria domá-los com punições e decretos, e privá-los da missão canônica...
Enfim, não consigo imaginar que ele contestaria aos não judeus e não cristãos o conhecimento do verdadeiro Deus e a possibilidade de encontrar o caminho que leva a ele. Jesus tratou as pessoas que tinham outra fé de um modo muito diferente dos contemporâneos que se diziam justos e ortodoxos. Ele os respeitou como seres humanos e lhes reconheceu a dignidade. Ele, nascido de mãe judia, demonstrou grande entusiasmo diante da fé demonstrada por uma mulher cananéia e por um oficial romano; acolheu amistosamente os gregos que o procuravam; e apresentou provocativamente aos seus conterrâneos judeus um samaritano erético como modelo de amor ao próximo.
Com o olhar voltado a Jesus Cristo, as necessárias reformas que a Igreja deve empreender podem ser expressas em forma de caminhos concretos, inspirados nas escrituras. Partindo dele, é fundamental que:
a)        A Igreja não se apresente e não seja compreendida como um aparato de poder, uma empresa ou uma indústria da religião que impede constantemente o exercício do diálogo e da democracia, mas como o Povo de Deus, o Corpo de Cristo e a comunidade do Espírito em nível mundial e local;
b)        O ministério eclesiástico não se apresente e não seja compreendido como uma falange ou um governo sagrado, mas como um serviço aos homens e mulheres;
c)        O papa não se apresente e não seja tratado como um semideus, um autocrata espiritual, um comandante supremo ou um executivo de uma grande empresa, mas como um bispo que guia a Igreja católica, cujo primado pastoral está estreitamente ligado à colegialidade episcopal e ao serviço da Igreja universal.

domingo, 29 de janeiro de 2012

A Sagrada Família segundo os Evangelhos (13)

Mateus 13,53-58: Esse homem não é o filho do carpinteiro?

Voltemos agora nossa atenção à interessante narração sobre a família de Jesus, que encontramos em Mt 13,53­-58. Esta perícope está localizada após a primeira parte do evangelho, que fala da justiça do reino (3,1­7,29); depois da segunda, que aborda sua dinâmica (8,1­-10,42); e da terceira, que tematiza seu mistério (11,1­-13,52). Está na abertura da quarta parte, que apresenta a comunidade cristã como semente do reino (13,53-­18,35).
O texto começa registrando a surpresa e admiração dos conterrâneos de Jesus – como das multidões – frente ao seu ensino nas sinagogas e aos milagres que havia feito noutros lugares. Como conheciam bem os familiares de Jesus, sua origem e sua condição humilde, a admiração se transformou em desprezo e escândalo. A narração soa como uma espécie de lamento diante do insucesso da ação missionária de Jesus em seus três circuitos pela Galiléia e, com os demais episódios relatados nos capítulos 11 a 13, parece querer explicar as razões dessa rejeição.
Nesta perícope, José e Jesus aparecem unidos pelo exercício da mesma profissão (cf. Mc 6,3) e, assim, eram publicamente reconhecidos: carpinteiros ou construtores, trabalhadores artesanais livres. É possível que tenham buscado trabalho em Séforis, cidade portuária próxima a Nazaré. Estes contatos eram também culturais e, neste sentido, podemos afirmar que a Sagrada Família tem contínuas relações com a população de Nazaré e com os habitantes de Séforis.
Com o início de sua vida pública, Jesus se distancia de Nazaré, da família e do trabalho, mas a experiência dos afetos e relacionamentos de Nazaré permanece (cf. Mt 7,7-­12).  Ele carrega em sua vida a marca da família, embora vá muito além do próprio âmbito familiar (cf. Mt 12,46­-50). Para ele, somente a vontade do Pai ou o reino representam o horizonte absoluto. Mas, de vez em quando, Jesus volta ao ambiente onde se havia criado e de onde guarda lembranças muito significativas.
A comunidade local se surpreende e se escandaliza com seu filho. Parece que idéia de que um personagem importante pudesse sair de uma vila tão pequena jamais foi aceita por seus próprios habitantes. Ele não havia recebido a instrução de rabinos importantes, não vinha de uma família de linhagem honrada, não estava relacionado com personagens notáveis e não tinha um círculo de relações que pudesse fazer dele um grande vulto. Afinal, ele havia sido aprendiz e ajudante de José na carpintaria e, depois da morte do pai, pode ter sido o único carpinteiro em Nazaré. Seus familiares e conhecidos não conseguem aceitar que um simples carpinteiro, membro de uma família irrelevante e conhecida, tenha autoridade religiosa ou se apresente como Messias. Têm a impressão de que ele está agindo acima do seu status familiar e social. Literalmente, tropeçam na sua origem e condição humilde, se escandalizam.
A resposta de Jesus diante da situação que se cria é mais uma vez dura e provocadora. Ele se recusa a fazer milagres em sua terra e afirma que "um profeta só não é estimado em sua própria pátria e em sua família" (v. 57). Seu compromisso com o Reino de Deus transforma os laços familiares e Jesus sente-se livre frente às normas e expectativas sociais. Como em Mt 12,46­-50 e Mc 3,31­-35, Jesus percebe que a própria família pode ser um obstáculo à sua missão. Por isso, propõe o caminho do discipulado, da abertura à vontade do Pai, da adesão ao projeto do reino como possibilidade de construir uma nova família. Os familiares de Jesus são convidados duramente à conversão ao reino, à descoberta e aceitação da encarnação humilde de Deus, a aceitar e facilitar sua missão messiânica.
Itacir Brassiani msf

A questão dos evangelhos da infância de Jesus

Embora tenhamos algumas referências à família de Jesus, dispersas em várias partes dos evangelhos, como todos sabem, as principais informações se encontram no início dos evangelhos de Mateus e Lucas, nos capítulos que se convencionou denominar ‘evangelhos da infância’ (Mt 1­-2; Lc 1­-2).
As primeiras comunidades cristãs estavam fascinadas pela realidade da vida, morte e ressurreição de Jesus, pelo novo modo de viver inaugurado por ele, e pelo desejo de compreendê­los mais e melhor. É desse fascínio pelo mistério da pessoa de Jesus Cristo que nascem as perguntas pela sua origem. Tais perguntas não são resultados de uma mera inquietação intelectual e supõem a meditação conscienciosa sobre o mistério da nova criação, inaugurada em Jesus Cristo. As narrações sobre a infância de Jesus respondem a esse desejo de um conhecimento mais íntimo e profundo de Jesus Cristo e à necessidade de proclamar a Boa Notícia.
A encarnação e a páscoa de Jesus Cristo são as chaves indispensáveis para compreender a família de Nazaré como manifestação da salvação operada por Deus, como expressão da auto­comunicação de Deus à humanidade e como resposta dos homens ao dom de Deus. Nesse sentido, os evangelhos da infância são uma releitura do único acontecimento salvífico que é Cristo na época em que viviam a segunda e a terceira geração de cristãos, quando estavam desaparecendo as testemunhas diretas. Daí a importância de cada gesto, símbolo e palavra.
Nos textos da infância de Jesus transparece uma situação concreta da Igreja: uma Igreja alegre e humilde que se expande no interior do helenismo (Lucas) e uma Igreja perseguida e angustiada em Israel (Mateus). Depois de terem optado por Jesus Cristo e considerando que o adulto sempre está em forma de embrião na criança, essas novas gerações de cristãos buscaram entre os familiares e conterrâneos algum aspecto que preconizasse já na infância sua sua personalidade posterior.
Os evangelhos da infância são escritos mais ou menos nos anos 70 dC, mas podem ter já existido antes no seio das comunidades cristãs de origem judaica. Nessa época, os elementos essenciais da vida de Jesus Cristo já estavam claros e assimilados pelas comunidades. Daí que os textos a que estamos nos referindo oferecem algumas pistas teológicas para descobrir o plano de Deus em realização na história, de um modo escondido e humilde.
Para Mateus, em Jesus Cristo, toda a história do povo de Deus adquire luz, sentido e realização; seu nascimento repercute entre os chefes políticos e religiosos da nação; Nazaré situa concretamente Jesus no marco geográfico e histórico de Israel e é o lugar da família, pedra de escândalo e de reconstrução.
Lucas tem uma sensibilidade aberta e missionária e, à luz de uma fé madura, mostra como o reino de Deus não fica preso nos limites familiares, regionais ou nacionais; destaca a repercussão da encarnação entre os pobres e israelitas piedosos.
Mateus e Lucas concordam em alguns pontos importantes: a pertença de Jesus à linhagem de Davi; que Jesus nasceu de uma virgem chamada Maria; que Maria estava noiva de José; que Maria se achou grávida antes do casamento; que Jesus foi concebido pela ação do Espírito Santo; que o nome de Jesus fora fixado antes do seu nascimento; que Jesus nasceu em Belém; que viveu com seus pais em Nazaré. Além disso, os quatro evangelistas concordam que o testemunho de João Batista e o encontro de Jesus com ele constituem o ponto de partida de sua ação pública.
Itacir Brassiani msf

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O amor é o mistério profundo de todas as coisas.

Deus é amor. Existe felicidade maior que o amor, que amar e ser amado/a? Deus é felicidade porque é amor, porque é a felicidade do amor. É a infinita felicidade do amor infinito. Tudo o que existe emerge deste amor. Todas as coisas são feitas por amor e são amor.
Deus não haveria criado alguma coisa que odiasse, diz o livro da Sabedoria (cf. Sb 11,24-25), e o simples fato de que mantém algo vivo é prova do seu amor. Assim, o que possibilita a existência de todas as coisas é o amor de Deus, o beijo do amor de Deus.
Picasso tinha razão quando dizia que no fundo não sabemos o que é uma árvore ou uma janela. Todas as coisas são muito misteriosas e estranhas (no sentido picassiano), e se esquecemos esta estranheza e mistério é simplesmente porque nos habituamos a vê-las. Comprendemos as coisas de modo muito obscuro. O que são as coisas? São o amor de Deus feito coisa.
Deus se revela a nós através das coisas. As coisas são mensagens do seu Amor. Quando leio um livro, ele está me falando através desse livro. Quando levanto os olhos para contemplar a paisagem, vejo que ele a criou para que eu a veja. A pintura que estou admirando, foi por ele inspirada ao pintor para que eu a contemplasse. Tudo o que degusto foi amorosamente doado por Deus para que eu o desfrute, a toda dor é igualmente doada amorosamente por Deus.
O amor de Deus criou o mundo e continua a criá-lo a cada instante no processo da evolução. Como o Deus criador é também o Deus transformador, a evolução do universo é obra do seu amor. Dizendo “crescei e multiplicai-vos”, Deus estabeleceu a lei da evolução.
O mundo não é como um quadro pintado há séculos por um artista, agora é exposto num museu. Antes, é uma obra de arte em constante processo de criação no atelier do artista. Deus não é o mármore – como afirmou Paulo, diante das esculturas, no areópago de Atenas – nem uma escultura. Ele é o Deus vivo, e nele vivemos, nos movemos e existimos. É dele que vem o mármore do areópago, as mãos que o esculpiram e a inspiração que moveu as mãos do artista.
Cada um/a de nós se considera o centro do universo. Por isso, vivemos num universo falso, como o universo imaginado pelos astrônomos pré-copernicanos. As coisas nos interessam na medida em que servem aos nossos pequenos interesses. Mas só seremos felizes se Deus for o centro do nosso universo. Assim nos alegraremos por sua existência, porque as coisas são como são, porque tudo acontece como acontece, porque Deus assim quer, independentemente do fato de servirem ou não aos nossos pequenos interesses.
Deus é amor, mas o nosso amor próprio é um auto-amor e, por issso, é um anti-amor. O amor é abandono confiante ao outro, e o amor próprio é o auto-abandono ou o não-abandono. O amor próprio é amor ao contrário, é amor voltado a si mesmo, é ódio.
Amar os outros como a nós mesmos parece uma coisa difícil de praticar e também de compreender. Mas este é o estatuto natural da pessoa no paraíso, o estado natural da pessoa humana. A pessoa humana é criada como uma totalidade orgânica que a faz indivíduo. “Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou. Homem e mulher ele os criou” (Gen 1,27).
Somos um só corpo composto de inumeras individualidades, e o egoísmo individual é anti-natural, como seria anti-natural o egoísmo de uma célula do organismo que, concentrando-se em si mesma, antepusesse seu interesse individual à função orgânica do conjunto, entrando em guerra com as outras células (como é o caso do câncer).
O amor próprio é o câncer do Corpo Místico, do Corpo Cósmico. Como diz Paulo: “O olho não pode dizer à mão ‘Não preciso de ti!’, nem a cabeça dizer aos pés “Não preciso de vós!’” (1Cor 12,21).

(Ernesto Cardenal, Canto all’Amore, I classici dello Spirito, Fabbri Editori, 1997, p. 50-52. Tradução de Itacir Brassiani msf)

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

4° Domingo do Tempo Comum

Este mundo amante da guerra não é o único possível.
(Dt 18,15-20; Sl 94/95; 1Cor 7,32-35; Mc 1,21-28)
Há algunos anos atrás, quando Israel bombardeava o Líbano, o grande jornalista e ensaísta uruguaio Eduardo Galeano lançava no ar perguntas contundentes: “Até quando continuaremos a aceitar que este mundo enamorado da morte é nosso único mundo possível? Até quando continuarão a soar em sinos de madeira as vozes da indignação? A miséria e a guerra são filhas do mesmo pai: como alguns deuses cruéis, comem os vivos e os mortos...” E no mês de janeiro de cada ano, millhares de homens e mulheres de todo mundo renovam e proclamam sua fé vivida todos os dias: um outro mundo é possível! Essa possibilidade é uma necessidade que urge a todos aqueles/as que seguimos Jesus Cristo. Ele nos ensina com autoridade e age com absoluta liberdade, atacando e deslegitimizando a ordem social dominante. As vozes que sempre se  opõem às mudanças ressoaram na sinagoga de Cafarnaum e se fazem ouvir nos grandes meios de comunicação de hoje, mas não assustam nem podem deter a ação libertária de quem sonha com um mundo enamorado da vida.
“Jesus foi à sinagoga e pôs-se a ensinar.”
São muitas e diversas as imagens de Jesus que circulam em nosso meio: desde as imagens que o aproximam da majestade dos reis até aquelas que o identificam com o jovem de bem com a vida, sem esquecer aquelas de um torturado banhado de sangue e as outras que o apresentam como um ser absolutamente sereno e tranquilo diante de tudo, como se não tivesse sentimentos.
Mas ao lado das imagens pintadas ou esculpidas, temos aquelas que criamos mentalmente e revelamos nos textos teológicos e espirituais. No campo dos escritos predomina um Jesus imaginado como um doce e ingênuo pregador dos valores do céu, da importância da alma, da supremacia das coisas espirituais sobre as materiais, da urgência da conversão do coração, da necessidade da oração, etc.
Não é muito diferente no campo da imaginação. É arriscado generalizar, mas não podemos negar que predominam imagens de um Jesus mal divinizado, milagreiro sempre pronto a mostrar seu poder, senhor inacessível que se relaciona conosco pela intermediação dos santos e santas, pregador de belas mensagens que alegram o coração de todos...
“E sua fama se espalhou rapidamente...”
A idéia ou imagem de um Jesus ocupado em curar doenças, como se fosse um curandeiro popular, está bastante presente em nosso meio. É bem verdade que os evangelhos nos dizem que Jesus curou muitas pessoas, mas disso não podemos passar muito rapidamente à imagem do médico ou do curandeiro como são hoje conhecidos. As curas de Jesus foram poucas e em contexto muito precisos. A verdadeira cura é a recuperação do bem-estar pessoal e social das pessoas, e é isso que Jesus faz.
Precisamos considerar a doença como um fato social, como uma questão de relações, e não como uma simples complicação orgânica. Em situações de alto grau de insegurança e tensão, de baixo grau de satisfação e de nutrição, as doenças se multiplicam. “A miséria e a guerra são filhas do mesmo pai” e ambas são geradoras de doenças. Segundo a OMS, a saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença.  
E Jesus não sai por aí simplesmente oferecendo curas a preços módicos, fazendo concorrência com os médicos e hospitais, como querem dar a entender algumas igrejas. O resgate do pleno bem-estar das pessoas, especialmente dos pobres e doentes, são sinais da chegada do Messsias. Quando Jesus cura, sua intenção não é afirmar o proprio poder ou divindade e fazer fama, mas oferecer sinais de que o Reino de Deus chegou de fato como vida em abundância para as pessoas mais sofridas.
“Ele manda até nos espíritos maus!”
Mas as curas que Jesus realizava não são aceitas com unanimidade. Sua ação restauradora da vida e libertadora das pessoas em sua integralidade é uma denúncia tácita da inoperância do sistema político, cultural e religioso que não só não possibilitava a saúde como também provocava o adoecimento físico e psíquico do povo. Esse enfrentamento com a ordem estabelecida fica mais claro no luta contra os ‘espíritos impuros’.
Para compreender o sentido profundo e revolucionário daquilo que denominamos exorcismo ou expulsão dos espíritos maus por parte de Jesus, precisamos esquecer aquilo que vimos nos filmes de exorcismo e o que vemos hoje nos cultos pentecostais. O ponto de partida é considerar a possessão como doença mental, ligada a um contexto social de extrema violência e insegurança do povo. Quando maior o grau de stress social, maior a incidência de doenças mentais e fenômenos estranhos.
“Viestes para nos destruir?”
Mas no texto do Evangelho que ouvimos hoje a questão não é propriamente possessão ou exorcismo. A cena merece nossa atenção porque é a primeira ação pública de Jesus. O palco da cena é a cidade de Cafarnaum e o lugar é a sinagoga – espaço dominado pelos escribas! – e o dia é sábado. Os escribas tinham o poder de dizer quem era puro e quem era impuro, e tais condições estavam estreitamente relacionadas, respectivamente, com a saúde ou a doença.
Diante de um povo admirado com a autoridade do ensinamento de Jesus, uma pessoa possuída por um espírito mau começa a protestar: “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir?” Está muito claro que na voz desse cidadão anônimo ressoa a voz dos escribas, ‘donos do campo’. O que está em jogo é a autoridade de ensinar, orientar e liderar o povo: ela pertence a Jesus ou aos escribas? O medo de perder a liderança pode provocar ações e discursos enlouquecidos...
 “Ele ensinava como quem tinha autoridade...”
Naquele homem dominado se manifesta o pânico e a desestabilização provocadas pela autoridade alternativa de Jesus. E isso vem confirmado pela própria ação de Jesus: ele propriamente não cura aquele homem, mas luta, ameaça o ‘espírito mau’ e manda que ele se cale e deixe de dominar as pessoas. E o povo fica impressionado: “O que é isso? Um ensinamento novo, dado com autoridade?”
Jesus não reivindica uma autoridade recebida de Deus nem faz questão de agir através de gestos portentosos. O poder divino que se expressa nele reside no testemunho de novas possibilidades de vida e na coragem de se confrontar com a ordem estabelecida, produtora de doenças e de opressão. A autoridade do seu ensinamento se assenta sobre seu ministério de compaixão e de libertação das pessoas escravizadas. Ele é o profeta anunciado no livro do Deuteronômio.
Jesus é o mestre que conduz o povo à liberdade e à vida, rompendo os murros e barreiras erguidos pelos escribas e doutores da lei. Se ele simplesmente curasse doentes não seria perseguido. Existiam muitos outros curandeiros que viveram em paz até o fim dos seus dias. Jesus foi enfrentado, rejeitado e eliminado porque, ensinando e curando, ousou atacar a legitimidade da ordem dominante.
“Permaneçamos sem distração junto dele...”
Somos discípulos daquele Nazareno que ensina com autoridade, que ameaça os espíritos que se apossam da nossa voz e determinam que apenas soletremos seus discursos. Voltemos às perguntas que não querem calar: “Até quando continuaremos a aceitar que este mundo enamorado da morte é nosso único mundo possível? Até quando continuarão a soar em sinos de madeira as vozes da indignação?”
Na expectativa da irrupção de um novo mundo, Paulo procura orientar os cristãos em relação ao matrimônio. No fundo está a questão seguinte: qual é a luta que não podemos adiar e que se sobre-põe a todas as outras prioridades? Paulo pede que os cristãos permaneçam sem distração junto ao Senhor, ou seja: que nada nos impeça escutar e aceitar aquilo que Jesus ensina com autoridade.
Jesus de Nazaré, profeta corajoso nas palavras e ousado na ação: somos discípulos/as, e conosco estão os irmãos e irmãs de milhões de comunidade cristãs, além de homens e mulheres de boa vontade que se fazem movimento. Não permita que vendamos nossa esperança por preço nenhum. Não não nos deixes trocar teu Evangelho por ‘antigas lições’, fazendo de ti um mestre doce e inofensivo. Faz ressoar em nossos sinos de bronze tua boa notícia, a indignação e a esperança! Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

A Sagrada Família segundo os Evangelhos (12)

Marcos 6,1-6: Esse homem não é o carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago?


O segundo texto de Marcos que se refere à família de Jesus se localiza, na perspectiva do conjunto literário, também no final da parte que explicita a "cegueira do mundo" (3,7-­6,7) e antes do início da "cegueira dos discípulos" (6,7-­8,26). Parece desempenhar a função de ponto de passagem e de articulação entre as duas seções.
Até esse momento Cafarnaum era o lugar privilegiado da ação messiânica de Jesus. É certo que ele havia percorrido a Galiléia ao menos três vezes e somente depois do episódio aqui narrado é que Jesus vai tomar distância da área de influência de Herodes Antipas. O evangelista registra que depois de uma missão do outro lado do mar "Jesus foi para Nazaré, sua terra, e seus discípulos o acompanharam" (v. 1). Parece que voltou para descansar e visitar seus familiares. No sábado foi à sinagoga e ensinava, e muitos ficavam admirados com sua sabedoria e com os milagres que realizava (v. 2).
A admiração foi progressivamente se transformando em escândalo, na medida em que as pessoas de Nazaré se davam conta da origem familiar e social de Jesus. "Esse não é o carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago, de Joset, de Judas e de Simão? E suas irmãs não moram aqui conosco?" (v. 3) A pepuena população se escandaliza porque, dentro dos esquemas mentais introjetados pelos dominantes, não podem admitir que alguém como eles pudesse ter sabedoria superior à dass autoridades religiosas constituídas ou pudesse realizar ações que demonstravam a presença de Deus.
Isso pode indicar que os primeiros 30 anos que Jesus viveu em Nazaré foram bastante comuns e sem qualquer ação notável. Daí que sua repentina capacidade e força espiritual deixavam seus conhecidos confusos. O povo humilde do lugar achava impossível que sua cidade de nada fosse o lar do Messias. O povo conhecia bem o lugar, a família e o cotidiano de Jesus e, por medo de mudar as concepções, temia reconhecer nele o Messias. Sua cidade ficou meio admirada, meio ofendida, e essa irritação contra Jesus, que a desafiava a mudar de atitude, venceu a admiração, e o resultado foi o antagonismo a ele, e não a aceitação dele como Messias. O empecilho para a fé era a encarnação, um Deus feito homem e inserido no contexto social, econômico e cultural.
Para se defender e justificar Jesus recorreu a um provérbio popular que pode ser traduzido como ‘santo de casa não faz milagre’: “um profeta só não é estimado em sua própria pátria, entre seus parentes e em sua família” (v. 4). O que chama a atenção é que Jesus dá a entender que entre aqueles que se escandalizavam com ele estavam também seus parentes, sua família. Pode acontecer que, quando alguém julga conhecer fatos e aspectos relativos a pessoas que lhe são familiares, esse mesmo conhecimento venha a ser empecilho para conhecer realmente e com profundidade. A experiência cotidiana e não refletida pode sustentar preconceitos.
Para concluir, anotamos que, na perspectiva do texto em análise, por sua condição humilde e normal a família de Jesus lhe confere uma condição de desprezo ou pelo menos de menosprezo. Por outro lado, a própria família revela dificuldades de reconhecer na sua pessoa e ação a irrupção do Messias e dos tempos messiânicos.
Itacir Brassiani msf

Evangelizar sem cair na tentação da restauração

O documento propõe três características fundamentais para uma Nova Evangelização do continente europeu: um olhar positivo e benevolente sobre o mundo atual; uma profunda atitude de escuta; um horizionte de esperança.

Já tive oportunidade de expressar algumas preocupações a respeito do processo sinodal sobre a Nova Evangelização (cf. neste mesmo Blog, Por uma evangelização realmente nova I e II, 20/11/2011). Volto à questão, estimulado por uma madura e equilibrada declaração da Conferência dos/as Batizados/as Francofones (cf. IHU Notícias, 23/01/2012).
Embora a Conferência se proponha a incluir os cristãos de língua francesa, peca por uma perspectiva claramente européia. Estão ausentes do texto possíveis elementos próprios dos povos francofones do continente africano. Isso, entretanto, não compromete a coragem e a verdade da declaração, da qual transcrevo a maioria dos parágrafos abaixo.
Evangelizar
“Evangelizar significa assumir a atitude de Jesus que, em todos os relatos evangélicos, encontra, escuta, dá a palavra, eleva e cura. Hoje, a Igreja busca os caminhos para uma "Nova Evangelização", sobretudo na Europa, nos países muito antigamente cristãos, e que, aos olhos de muitos, hoje parecem sê-lo menos. Nos países europeus, o Magistério deplora aquela que chama de secularização e a sua perda de influência, mas os cidadãos, cristãos e católicos em primeiro lugar, não se encontram tão mal. Ao contrário, apreciam a democracia e a liberalização dos costumes que a Igreja por muito tempo obstacularizou.”
“Além disso, dentro da Igreja, levantam-se movimentos de leigos para contestar o conservadorismo e a governança autoritária dos clérigos. A "Nova Evangelização", nesse contexto, não pode ser entendida em termos de reconquista de um terreno perdido, mas sim como um convite pessoal a se apropriar das palavras de Cristo na própria linguagem e na própria de homens e de mulheres de hoje, a acolher o Verbo na própria carne, mesmo que ela não seja judaico-cristã depois de 2000 anos.”

Um olhar positivo
“Depois de séculos de enfrentamentos, os europeus encontraram o sábio caminho da paz. Depois de mais de 60 anos, a Europa está em paz. A paz, primeira riqueza dos homens e primeiro dom de Deus. Desde o fim dos anos 1950, a União Europeia progride, certamente não muito depressa em certas questões, mas os cidadãos do continente globalmente obtiveram disso prosperidade e progresso social. Certos países da União souberam até desenvolver, sob a influência conjunta da social-democracia e da democracia cristã, um modelo social de proteção, que deve ser sustentado e estendido.”
“A Europa é democrática, aboliu a pena de morte e promove a paz no mundo: seus exércitos são os primeiros fornecedores de tropas para a manutenção da paz, enviadas pela ONU a todo o planeta. Os europeus podem ficar orgulhosos por participar no cotidiano dessa obra, certamente imperfeita, totalmente humana e frágil, mas única no mundo.”
“Alguns deploram que a Europa como instituição não faça mais referência ao cristianismo, mas ela talvez precisa ser uma organização cristã? Não, absolutamente não, porque deve dialogar com toda a Terra sem a prioris religiosos. Em contrapartida, a Europa integrou muitos valores do Evangelho, incluindo a paz e o respeito da pessoa e do indivíduo. Pela atenção aos pobres, ela deve continuar essa rota e às vezes confirmá-lo, sob o olhar de seus cidadãos. Reconciliada, a Europa não precisa ser piedosa ou praticante, ou fazer referência – como bloco único – a raízes cristãs. Basta-lhe sempre continuar debatendo e discutindo, conciliando, "fazendo concílio" das suas dificuldades, dos seus desacordos, para permanecer moderna, para viver e fazer viver uma permanente atualização de paz e de progresso social.”
“Somente reconhecendo essa Europa da modernidade, dando confiança a essa sociedade secularizada, mas democrática e social, que os cristãos poderão transmitir nela a mensagem de Cristo. Evangelizar significa não apenas socorrer, à beira da estrada, como o Samaritano, a pessoa dada como morta na fé, mas também dar confiança à sociedade (ao dono da pensão) para levar a termo a sua obra.”
Atitude de escuta
Para a referida Conferência, a atitude de escuta deve ser central num renovado processo de evangelização: escuta das pessoas, do povo simples com o qual a Igreja e os fiéis convivem; escuta da Igreja, de sua Tradição e de seu Magistério; escuta da Palavra de Deus.
“Embora distantes da Igreja, ou opostos às suas opiniões, aos seus ritos ou aos seus posicionamentos, os nossos concidadãos, no entanto, têm uma rica espiritualidade: é o específico do homem. Evangelizar significa sobretudo escutar, dar a palavra a essas interioridades, a essas expressões da fé ou da não fé que alguns crentes rígidos prefeririam nem ouvir, mas que são o terreno fértil dos imensos questionamentos espirituais do nosso tempo e a ocasião para que aqueles que se dizem cristãos testemunhem a sua fé em Cristo.”
“Pelo debate e pelo testemunho, pode haver escuta mútua: expressão de uma espiritualidade pessoal, mais ou menos cristã, ou nada cristã, e apostolado de uma fé cristã que dá à luz o seu Cristo, não com um discurso teórico, mas sim com uma palavra existencial. Com esse objetivo, a Conferência promoverá oficinas de expressão da fé, ou da espiritualidade, abertas a todos.”
Trata-se de escutar uma Tradição e um Magistério “vivos e presentes devem ser audíveis por todos. Escutá-los não é lhes outorgar uma obediência cega. A obediência evangélica não é a execução de uma ordem, mas sim uma escuta, uma discussão, uma disputatio, uma necessária interpretação, especialmente pelos e para os leigos encarregados "iluminar e ordenar de tal modo as realidades temporais, a que estão estreitamente ligados, que elas sejam sempre feitas segundo Cristo" (cf. LG 31). (...) Falando a mesma linguagem dos seus contemporâneos, os católicos poderão ser escutados por todos, crentes ou não crentes, o que é uma condição prévia para uma nova evangelização exitosa.”
“Evangelizar é sobretudo escutar a Palavra de Deus. Ler, falar, contar, discutir os relatos bíblicos e evangélicos, destacar as suas asperezas, os subentendidos, os símbolos, as correspondências, as contradições, os exageros, os escândalos. Não tomar nada ao pé da letra, mas fazer uma leitura e uma escuta ativas, revoltadas, implicadas, para finalmente, com a ajuda do Espírito, poder escutar o seu sal que dá sabor à nossa vida e nos faz dizer "Eu creio".
Crer e esperar sem medo
Os membros da Conferência dizem que a criaram porque não podem mais suportar que a Igreja seja átona, “que os cristãos se afastem dela silenciosamente, porque não são mais ouvidos.” Sabemo que toda oposição leigos-clero é estéril, e que a Igreja não se transforma como um partido, uma empresa, um país ou uma associação e, por isso, querem “ficar no meio do barco, não reivindicar nada, mas esperar tudo, não ir embora, mas não calar”, porque acreditam que são a Igreja e Cristo “todos juntos, leigos e clérigos, liberais e mais tradicionais, homens e mulheres igualmente.”
“Para que a nossa Igreja não seja mais estática, em pane ou tentada a afundar na restauração de um passado superado e contrário à evolução da sociedade, porque nós somos a Igreja e somos modernos, parte ativa da sociedade atual, porque não desenvolvemos uma contracultura, mas estamos na vida real, com todos os outros, cristãos e não cristãos, temos no coração o nosso sacerdócio de batizados/as e, por tudo isso, temos a Esperança de que fazemos e continuaremos refazendo a Igreja, porque Cristo se dirige a cada um de nós e a cada um daqueles que encontramos no nosso apostolado. Pouco a pouco, não mais de forma hierárquica, nem mediante um poder temporal, mas, de ser humano para ser humano, em rede, em rizoma, faremos crescer, faremos florescer e daremos o fruto da Vida.”
Interessante a declaração, não acham? E igualmente verdadeira e corajosa. E tiveram a atrevida confiança de enviá-la à Comissão preparatória do Sínodo! Cabe-nos fazer a nossa parte, ao menos para termos o direito de criticar se não formos ouvidos...

Itacir Brassiani msf

domingo, 22 de janeiro de 2012

Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos

O sonho da comunhão e da unidade em Jesus Cristo

Ano após ano alguns setores e agentes das Igrejas cristãs insistem, sem muito sucesso, na comunhão e na unidade pedida em testamento por Jesus. A Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos (que no Brasil é celebrada no período que vai da ascensão de Jesus à festa de Pentecostes), é uma iniciativa a serviço desta unidade e está em pleno curso na Itália (18 a 25 de janeiro). A proposta de oração para o ano 2012 é preparada pelos cristãos da Polônia, e tem o seguinte lema: “Todos seremos transformados pela vitória de Jesus Cristo nosso Senhor” (inspirado em 1Cor 15,51-58).

Interpelações conciliares
O Concílio Vaticano II declara que a promoção e a reintegração dos cristãos na unidade é um dos seus principais objetivos, convicto de que as divisões “contrariam a vontade de Cristo, são um escândalo para o mundo e prejudicam enormemente a pregação do Evangelho ” (UR 1). O Concílio acolhe com alegria os esforços pela unidade que estão em curso e exorta os fiéis católicos “a reconhecerem os sinais dos tempos e a participarem ativamente do trabalho ecumênico ” (Idem, 4). Todos conhecemos e apreciamos as corajosas declarações do Concílio Vaticano II. Cito aqui apenas alguns parágrafos do Decreto Unitatis Redintegratio.

“É necessário que os católicos reconheçam com alegria e com a devida estima os bens verdadeiramente cristãos provenientes do patrimônio comum existente entre os irmãos separados. Reconhecer as riquezas de Cristo e as obras virtuosas na vida de quem dá testemunho de Cristo até, às vezes, o derramamento do sangue, é justo e salutar...” (UR 4)

“A preocupação de restaurar a unidade concerne a toda a Igreja, tanto aos fiéis quanto aos pastores, de acordo com a posição de cada um, tanto no que se refere à vida cristã, como no que diz respeito aos estudos teológicos e históricos. Tornando-se comum a todos os cristãos, essa preocupação já por si mesma comporta uma certa união fraterna entre todos e vai levando, naturalmente, à unidade plena e perfeita, segundo a misericórdia de Deus.” (UR 5)

“O concílio exorta os fiéis para que evitem toda leviandade ou zelo imprudente que possam prejudicar o caminhar para a unidade. (...) O concílio deseja ardentemente que as iniciativas dos filhos da Igreja católica progridam em conjunto com as iniciativas dos irmãos separados, sem que ninguém coloque obstáculo aos caminhos da providência nem prejudique às futuras inspirações do Espírito Santo.” (UR 24).

Mas, na prática...
Lá se vão 50 anos desde que este apelo ressoou nos ouvidos assustados de alguns setores da Igreja católica. Na prática, este é um caminho envolto em neblina, cheio de curvas, buracos, pedras, desvios e retornos. A busca da comunhão intereclesial está longe de ser uma prioridade, seja na agenda da Santa Sé e dos bispos, seja no planejamento das Congregações religiosas,seja no programa das comunidades eclesiais. No máximo – repito, no máximo! – é uma atividade agendada uma ou duas vezes por ano!

Ouvi muitas vezes a queixa de colegas: “Mas por quê somos sempre nós, os católicos, que devemos tomar a iniciativa e propor a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos?” Comecemos por notar que isso não é verdade, pois o movimento ecumênico nasceu no âmbito das Igrejas reformadas e, por muito tempo, só vigorou no meio delas... A contragosto e só depois de muito tempo a iniciativa foi acolhida no meio católico.

Efetivamente, vivemos tranquilamente como se não tivéssemos necessidade da comunhão com as demais Igrejas cristãs. Em nossas paróquias e comunidades religiosas ignoramos olimpicamente que a divisão dos cristãos contraria a vontade de Cristo, é um escândalo para o mundo e prejudica a evangelização. Fazemos ouvidos de mercador ao apelo a participar ativamente do trabalho ecumênico. Ou o Concílio teria se enganado ou exagerado?!

Não só fazemos pouco caso do escândalo da divisão como, não poucas vezes, colocamos lenha na fogueira, fazendo comentários pouco lisonjeiros e até violentamente condenatórios às demais Igrejas. Certo, elas têm lá suas contradições... Mas, e a Igreja católica?! Não precisamos fazer um elenco dos horrores cometidos historicamente em nome de Cristo ou do Papa. Basta um olhar crítico sobre as nossas contradições e desvios de hoje...

Quanto tempo deveremos ainda esperar para que a sede de comunhão e unidade entre de cheio na nossa espiritualidade, faça parte do nosso processo formativo e ocupe um lugar relevante na agenda das nossas dioceses e paróquias?
Itacir Brassiani msf