sábado, 7 de janeiro de 2012

O nosso bezerro de ouro

A vida religiosa não vive um dos seus momentos mais gloriosos, pelo menos do ponto de vista numérico. Ontem (6 de janeiro) assisti parte de um documentário sobre a história recente da Itália, com foco na presença generosa, solidária e transformadora das religiosas italianas no continente Africano. Os testemunhos apresentados arrancam hinos de louvores a Deus e nos provocam a uma fidelidade radical e criativa. Mas não pode fechar nossos olhos à tendência de acomodação e resignação que ameaça a vida religiosa um pouco por todos os lados.
A tradição bíblica conserva e relata uma história muito significativa para o momento atyal da Igreja e da vida religiosa. Trata-se da descrição do episódio do bezerro de ouro. Encontra-se no livro do Êxodo 32,1-24.
Situemos o episódio no seu contexto literário. O povo está no deserto, fugindo da opressão do Egito e esperançoso de chegar a uma terra nova. Moisés, que havia liderado a caminhada desde a saída, subira à montanha para conversar com Deus e discernir os passos e rumos da luta.
Moisés demora a descer e o povo se mostra cansado de um Deus que só se faz presente mediante uma nuvem misteriosa (cf. Ex 33,7-11). Tem necessidade de um Deus mais concreto, mais palpável. De uma caminhada com meta determinada e data definida para chegar. Por isso o povo pede a Aarão: “Vamos! Faça para nós um deus que caminhe à nossa frente, porque não sabemos o que aconteceu com esse Moisés que nos tirou do Egito” (Ex 32,1). Um deus que obedeça às próprias decisões e preferências do povo.
Por vezes, a transcendência de Deus deixa o povo confuso e até deprimido. Javé não se deixa prender e limitar por nada. Insiste em apontar o caminho aberto sem um ponto de chegada. Teima em manter seu povo na estrada, quando só queria descansar. Continua a mostrar sua glória, mas não permite que seu povo o veja de frente (cf. Ex 33,18-23). Permanece mistério imanipulável, transcendente e inapreensível.
Também nós temos a tentação de pedir um bezerro de ouro. Desejamos para a vida religiosa um pouco de estabilidade e segurança. Queremos uma sociedade com figura e instituições seguras e definidas, com metas perfeitamente alcançáveis. A busca de uma “nova sociedade” ou do "outro mundo possível" nos parece um caminho sem fim, cansativo, inseguro. Preferimos as seguranças, definições e imposições da “velha sociedade”, mesmo que ela seja construída e sustentada sobre os nossos despojos. Parece mais seguro e agradável um “bezerro” no meio de nós que uma “nuvem” na nossa frente ou no alto da montanha...
É verdade! Parece duro, desgastante e insensato continuar sonhando com “um novo jeito de ser Igreja”. Para que? Como seria essa nova Igreja que sonhamos? Ninguém sabe descrever ao certo... Parece preferível “um deus que caminhe à nossa frente”, palpável, definido. Cansados de não caminhar – porque os passos que havíamos dado não foram suficientes para nos levar para fora de nós mesmos! – preferimos ficar com uma velha Igreja, pesada, estável, marcada pelo legalismo romano e pelo imobilismo doutrinal. E nos sentimos felizes sendo despojados de nossas “jóias” (a autonomia, a liberdade, a criatividade, a participação) em troca de uma falsa segurança. De uma segurança que escraviza e infantiliza.
Esta é a encruzilhada da vida religiosa. Uma encruzilhada dramática. Somos convocados a decidir se continuaremos sonhando com uma vida religiosa simplesmente evangélica, radicalmente evangélica, ou se vamos fazer “estátuas” com o “ouro” que acumulamos. O desafio de buscar uma vida religiosa que seja caminho humano para o Reino de Deus pode exigir dias e anos de deserto, muitos momentos de solidão na montanha, tempos de incerteza e insegurança. Ocasiões em que não há mais caminho e a nuvem luminosa se mostra tenebrosa e ameaçadora. Seguir Jesus Cristo é fazer da vida um caminho aberto, viver como eterno aprendiz, não renunciar à criatividade, construir “tendas” provisórias e acolhedoras para nossos sonhos.
No momento histórico atual ouvimos gritos que reivindicam uma vida religiosa de resultados, com visibilidade social e força institucional. Casas sólidas ao invés de tendas. Hábitos definidos que distinguem e separam. Trabalhos clássicos e socialmente tolerados. Alguns desanimaram de caminhar no escuro da noite, tendo que contar apenas com a frágil tocha da esperança. Outros cansaram de não caminhar, de olhar para trás. O “Egito” lhes parece mais seguro e mais próximo que uma terra indefinida ou um outro mundo possível, do qual se diz que tem leite e mel em abundância. Para que se preocupar com “refundação” se o “bezerro” seguro do ofício pastoral e das obras sociais dá satisfação e segurança? O que significa a refundação e para onde levará?
Para muitos o tempo é de “voltar para casa”, retirar-se da caminhada, abandonar o deserto e se refugiar nas cidades construídas. Pensam que é hora de imaginar (fazer imagem!) um deus que fique à nossa disposição, considere as nossas preferências e satisfaça os nossos desejos. Dizem que a modernidade acabou e que suas utopias não passam de quimeras. Pouco teria sobrado das lutas e movimentos populares. O sonho de um outro mundo possível teria sido ofuscado pelo brilho sedutor dos néons e abafado pelo som ensurdecedor dos muitos shows.
Somos tentados a nos levantar, oferecer holocaustos e sacrifícios, sentar-nos para comer e beber e levantar de novo para nos divertir (cf. Ex 33,6). Mas então o que faremos do Evangelho de Jesus Cristo? Que destino daremos à memória incômoda da vida, martírio e ressurreição de Jesus Cristo?
O velho evangelista João nos lembra, na leitura que a Igreja propõe para hoje: “Caríssimos, não acrediteis em qualquer espírito, mas examinai os espiritos para saber se são de Deus, pois muitos falsos profetas vieram ao mundo. Este é o critério para saber se uma inspiração vem de Deus: de Deus é todo espírito que professa Jesus Cristo que veio na carne” (1Jo 4,1-2). E isso significa aceitar que Jesus veio na fraqueza e pelos fracos, na pobreza e pelos pobres, percorreu e inventou caminhos, fez-se eternamente peregrino e itinerante. E não há outro caminho de dignigade e de futuro para a vida religiosa.
Pe. Itacir Brassiani msf

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