quinta-feira, 26 de julho de 2018

O Evangelho dominical - 29.07.2018


O GESTO DE UM JOVEM

De todos os atos realizados por Jesus durante a Sua atividade profética, o mais recordado pelas primeiras comunidades cristãs foi seguramente uma comida massiva organizada por Ele no meio do campo, nas cercanias do lago de Galileia. É o único episódio recolhido em todos os evangelhos.
O conteúdo do relato é de uma grande riqueza. Seguindo o seu hábito, o evangelho de João não lhe chama «milagre», mas «sinal». Com isso convida-nos a não ficarmos nos atos que se narram, mas a descobrir desde a fé um sentido mais profundo.
Jesus ocupa o lugar central. Ninguém pede que intervenha. É Ele mesmo quem intui a fome daquela gente e coloca a necessidade de a alimentar. É comovedor saber que Jesus não só alimentava as pessoas com a Boa Nova de Deus, mas que lhe preocupava também a fome dos Seus filhos.
Como alimentar uma multidão no meio do campo? Os discípulos não encontram nenhuma solução. Felipe diz que não se pode pensar em comprar pão, pois não têm dinheiro. André pensa que se poderia partilhar o que há, mas apenas um rapaz tem cinco pães e um par de peixes. O que é isso para tantos?
Para Jesus é suficiente. Esse jovem sem nome nem rosto vai tornar possível o que parece impossível. A Sua disponibilidade para partilhar tudo o que tem é o caminho para alimentar aquelas pessoas. Jesus fará o resto. Toma em Suas mãos os pães do jovem, dá graças a Deus e começa a distribuí-los entre todos.
A cena é fascinante. Uma multidão, sentada sobre a relva verde do campo, partilhando uma comida gratuita um dia de primavera. No é um banquete de ricos. Não há vinho nem carne. É a comida simples das pessoas que vivem junto ao lago: pão de cevada e peixe salgado. Uma comida fraterna servida por Jesus a todos graças ao gesto generoso de um jovem.
Esta comida partilhada era para os primeiros cristãos um símbolo atrativo da comunidade nascida de Jesus para construir uma humanidade nova e fraterna. Evocava-lhes ao mesmo tempo a eucaristia que celebravam o dia do Senhor para alimentar-se do espírito e da força de Jesus: o Pão vivo vindo de Deus.
Mas nunca esqueceram o gesto do jovem. Se há fome no mundo, não é por escassez de alimentos, mas por falta de solidariedade. Há pão para todos, falta generosidade para o partilhar. Temos deixado a marcha do mundo nas mãos de um poder econômico inumano, dá-nos medo partilhar o que temos, e as pessoas morrem de fome pelo nosso egoísmo irracional.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 25 de julho de 2018

ANO B – DÉCIMO-SÉTIMO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 29.07.2018


Uma pessoa que morre de fome é uma pessoa assassinada!
Há uma lei que não está escrita na Constituição nem na Bíblia, mas nos é ensinada em lições que vão do berço à sepultura: “Cada um pra si e Deus por todos”. Um complemento mais violento ensina que “quem pode mais, chora menos”. Não é difícil perceber que este princípio vai se impondo tranquilamente na arena política, no sistema econômico, na área cultural e até no âmbito da religião. Basta prestar atenção às Igrejas que prometem bênçãos em forma de imediata prosperidade econômica e apresentam exemplos de gente que enriquece dando as costas aos necessitados.
No evangelho de hoje João nos apresenta Jesus em plena ação missionária. Já havia realizado três sinais que demonstravam claramente a chegada dos tempos esperados, da utopia do Reino de Deus, da Vida plena e gratuita para todos: transformara água em vinho numa festa de casamento fadada ao fracasso; curara o filho de um funcionário do rei e um paralítico que há três décadas não abandonava a esperança de recuperar a saúde e a plena cidadania. Impactada por esses sinais, uma grande multidão seguia Jesus. O povo intuía que da periferia e da pobreza estava nascendo uma grande e promissora novidade.
O evangelista subentende, mas não diz, que Jesus sente compaixão pelo povo. A compaixão é filha da fraqueza, da humana vulnerabilidade, das periferias anônimas, pois os palácios se sustentam sobre o poder e o medo. No entardecer das possibilidades de ajuda, quando as leis do mercado revelam que não têm coração, Jesus percebe a fome do povo e desperta os discípulos da indiferença que os envolvia inteiramente. Para ver o povo e resgatar a compaixão ativa e redentora também as Igrejas também precisam migrar para as periferias, deixar as discussões abstratas e estéreis, sair da própria barca...
Os discípulos não conseguiam ver saída para o drama do povo fora da lógica do império. “Onde vamos comprar pão para eles comerem?” Sem um plano alternativo, constatam desolados que estavam num beco sem saídas: “Nem meio ano de salário bastaria...” Mas, avaliando suas próprias possibilidades, descobrem que entre eles há alguém que tem cinco pães e dois peixes que providenciara para as necessidades da comunidade. “Mas o que é isso para tanta gente?”, questionam-se. Parece que eles querem disfarçar o egoísmo elitista, característico de quem pensa apenas nas próprias necessidades.
Como está longe de Jesus uma Igreja que se compraz apenas em palavras e de ritos religiosos, que lava as mãos diante das tragédias que se abatem sobre o povo! O mundo está farto de instituições que entregam seus membros à implacável lógica dos impérios. E não nos desculpemos perguntando o que representam cinco pães e dois peixes para uma multidão de famintos... “O pouco com Deus é muito; o muito sem Deus é nada”, ensina a sabedoria popular. Jean Ziegler, relator da ONU, diz que, num mundo que produz alimentos de sobra, a morte anual de milhões de pessoas por causa da fome é o escândalo do nosso século. “Uma criança que morre de fome é uma criança assassinada”, afirma ele.
A saída não é simples, mas seguramente não consiste em cada um cuidar de si, nem em considerar povo faminto um simples objeto de caridade. O povo é soberano, e as autoridades, como Jesus, devem colocar-se a seu serviço. E não se trata de povos nacionais, mas de um único povo, aquele que congrega todos os homens e mulheres. Paulo enfatiza que há um só corpo e um só espírito, uma só fé, uma só esperança, um só batismo, um só Senhor... Ou seja: todas as divisões são arbitrárias e fadadas a desaparecer. Certamente a luta pelo pão na mesa de todos não pode ser estranha à unidade do gênero humano.
A solução para a crise alimentar sistêmica que fere a humanidade não está ao alcance de um país ou de uma Igreja particular. O caminho de saída começa com a adoção de um consumo moderado pelos ricos e com a erradicação da exploração comercial por parte dos países poderosos. E prossegue na defesa da soberania alimentar dos povos e na pressão para que os organismos multilaterais tomem medidas concretas e efetivas que garantam o acesso universal aos alimentos. E isso não é algo estranho à fé! A comida suficiente aparece quando Jesus assume o protagonismo e os discípulos se associam à sua ação...
Jesus de Nazaré, peregrino incansável no santuário das dores humanas, Deus compassivo e próximo de todos os sofredores, sonhadores e construtores de um mundo outro! Dá-nos olhos abertos e lucidez intelectual para que encontremos os recursos necessários para evitar as tragédias que golpeiam teus irmãos e irmãs. Dá-nos um coração humanamente sensível, que nos leve ao encontro deles para servi-los com tudo o que somos e temos. Dá-nos um coração forte, enamorado de ti, um coração que não nos permita aceitar ou pregar doutrinas escapistas ou soluções violentas para a tragédia da fome. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Segundo Livro dos Reis 4,42-44 * Salmo 144 (145) * Carta de Paulo aos Efésios 4,1-6 * Evangelho de São João 6,1-15)

segunda-feira, 23 de julho de 2018

Primeiras Constituições dos Missionários da Sagrada Família


Missionários da Sagrada Família: Constituídos para quê?
No dia 25 de julho de 1895, as Constituições dos Missionários da Sagrada Família eram aprovadas pela Igreja. Antes que o Pe. Berthier chegasse à casa que abrigaria os primeiros aspirantes e postulantes, em Grave (Holanda), o Fundador deixava claro o perfil e a finalidade do sonho que acalentava. E podemos imaginar sua alegria ao receber a aprovação da Igreja para seu projeto... Na data que marca esse acontecimento, parece-me importante reler o que ele escreveu nos primeiros parágrafos (1 a 19) da Constituição de 1895. Isso é muito importante no momento em que enfrentamos o desafio da reestruturação.
1.    (a) “A colheita é grande, mas os trabalhadores são poucos!” (Mt 9,37). (b) Esta é a verdade dos nossos dias, como no tempo de Nosso Senhor. (c) Em pleno século XIX, 7/8 da população do globo ainda vive nas trevas da heresia ou da infidelidade. (d) O próprio Papa Leão XIII escrevia, em uma encíclica de 3 de dezembro de 1880:
2.    (a) “As missões apostólicas são pressionadas por muitas e graves necessidades, pois a cada dia é menor o número dos santos operários. (b) Enquanto alguns são roubados pela morte e outros são tragados pela velhice ou limitados pelo cansaço, aqueles que estão dispostos a sucedê-los são em número insuficiente e de qualidade inferior. (c) Assistimos ao desaparecimento de inteiras famílias religiosas, pressionadas por leis nefastas. (d) Por todos os lados vemos padres afastados dos altares e obrigados ao serviço militar e os bens do clero secular e regular sendo confiscados e vendidos.”
3.    (a) “Ao mesmo tempo, uma grande possibilidade se abre em outras regiões que antes pareciam inacessíveis, cresce o conhecimento de novos lugares e povos que pedem envio de soldados de Cristo e abrem-se novas frentes missionárias. [...] (b) É lamentável a sorte daqueles que são guiados por falsos mestres e anseiam pela pura luz da verdade, mas não encontram ninguém que os instrua na santa doutrina ou os convide a entrar na Igreja de Cristo. (c) Verdadeiramente, os pequenos pedem pão e não há ninguém que os atenda. (d) Os campos estão dourados, a colheita é abundante e os operários são pouco numerosos, e talvez no futuro serão ainda menos.”
4.    (a) “Veneráveis Irmãos, a situação é tal que cremos ser nosso dever estimular o zelo e a caridade cristã a fim de que, seja através da oração, seja através de ofertas, todos se empenhem em ajudar a obra das santas missões e favorecer a propagação da fé. [...] (b) A vocês também, Veneráveis Irmãos, chamados a participar da nossa solicitude, exortamos com firmeza a engajarem-se ativa e energicamente nas missões apostólicas, sustentados pela confiança em Deus, sem temer as dificuldades e com ânimo concorde.”
5.    “Portanto, se vocês conhecem pessoas zelosas pela glória de Deus, capazes e desejosos de participar das santas missões, ofereçam a ajuda que ela necessitam a fim de que, procurando e descobrindo a vontade de Deus, não deem ouvidos à carne ou ao sangue, mas se orgulhem de obedecer à voz do Espírito.”
6.    “Não dispensem esforços para que os demais sacerdotes, os religiosos e religiosas e todos os fiéis confiados ao cuidado de vocês, através de incessantes preces, atraiam a ajuda do céu em favor dos semeadores da Santa Palavra.”
7.    (a) “E que à oração suplicante se una a esmola, cuja força consiste em possibilitar àqueles que estão distantes das missões e ocupados em diferentes atividades, associarem-se aos trabalhos e méritos dos missionários. [...] (b) Veneráveis Irmãos, façam com que todos compreendam que sua generosidade não será um prejuízo mas uma vantagem, pois empresta-se ao Senhor aquilo que é doado aos necessitados. (c) E é por isso que a esmola é considerada a mais lucrativa de todas as atividades.”
8.    (a) Desde 1880 estão sendo fundadas escolas apostólicas, mas esse processo foi quase paralisado pelos decretos de expulsão e pela diminuição da fé e da própria população. (b) Além disso, essas escolas apostólicas só admitem adolescentes de 12 a 14 anos, e as vocações tardias não encontram facilmente oportunidades.
9.    (a) A Sociedade das Missões Estrangeiras alcançou um grande sucesso, mas normalmente não abre suas portas senão aos jovens de origem francesa e habilitados a estudar filosofia. (b) Mas sabemos que os jovens oriundos de famílias pobres têm dificuldade de frequentar os estudos secundários que preparam à filosofia, e assim são excluídos dessa sociedade.
10.             A experiência comprova que, nos países profundamente cristãos e onde as famílias são numerosas, encontramos jovens inteligentes e virtuosos, de 14 a 30 anos, que, tendo se preservado dos vícios, aspiram à vida apostólica, desde que uma obra especial suporte os custos da sua formação.
11.             (a) Assim, fundar tal obra e torná-la acessível aos jovens das diversas nações católicas significa suprir uma lacuna e assumir o ponto de vista de Sua Santidade o Papa Leão XIII. (b) No dia 14 de novembro de 1894, o plano dessa obra foi apresentado à Sua Santidade por Sua Eminência o Cardeal Rampolla, Secretário de Estado. (c) Depois de tomar conhecimento, na audiência que Sua Santidade concedeu no dia seguinte ao Cardeal Langénieux, Leão XIII disse que uma tal iniciativa é oportuna, que ele a abençoava, desejava que fosse iniciada sem demora e a colocava sob sua proteção.
12.             Portanto, o berço dessa obra é a bênção da Igreja, e isso deve encorajar aqueles que a graça atrair a ela.
13.             (a) Esta obra recebe o nome de Sagrada Família e está sob a proteção de Nossa Senhora Reconciliadora de la Salette, à qual invocará habitualmente. (b) É na Sagrada Família, em Nazaré, que cresceu o Sacerdote Eterno, Nosso Senhor Jesus Cristo, o missionário do Pai. (c) E é sobre a montanha de la Salette que foi concebido o projeto dessa obra.
14.             (a) A Sagrada Família é o modelo perfeito de espírito de respeito, de obediência, de caridade, de dedicação, de humildade, de vida de trabalho, de pobreza e de pureza que deve reger essa obra. (b) Aqueles que a graça atrair a essa obra se empenharão em assimilar este espírito.
15.             (a) Seus membros não esquecerão que o respeito e a caridade mútuas são mais importantes que todas as Constituições, e que todas as regras e todos os votos têm por objetivo enraizar neles o amor a Deus e ao próximo. (b) Portanto, eles se esforçarão para não procurar honras, para ter um só coração e uma só alma, para entreajudarem-se nos trabalhos, para consolarem-se reciprocamente nos sofrimentos da vida, para edificarem-se uns aos outros. (c) Os membros do instituto se chamarão Missionários da Sagrada Família.
16.             (a) Os Missionários da Sagrada Família formam um instituto de votos simples que tem como fim a santificação dos seus membros, que é a única coisa necessária da qual fala Nosso Senhor no Evangelho. (b) Esse instituto tem também por finalidade especial formar missionários e aumentar seu número através da formação de vocações apostólicas, sobretudo tardias. (c) Essa é a razão de sua existência e também o meio mais eficaz de trabalhar pela glória de Deus e a salvação da humanidade. (d) As pessoas se convertem à fé e à vida cristã pelo Evangelho. (e) Fides ex auditu, auditus autem per verbum Dei. (f) Precisa-se pois de missionários, mas formá-los é mais eficaz que trabalhar nas missões, pois enquanto um missionário faz um certo bem numa terra estrangeira, quem forma numerosos missionários faz um bem multiplicado tantas vezes quantos são os bons trabalhadores da vinha do Senhor por ele formados.
17.             (a) Assim, os membros do Instituto serão zelosos antes de tudo pelo desenvolvimento da obra das vocações apostólicas tardias, organizando centros nos quais ela possa prosperar, atraindo e formando o máximo possível de bons missionários. (b) E à medida em que o número de padres amadurecidos pela piedade, pelo estudo e pela experiência crescer, procurarão estabelecer seminários da mesma natureza e com o mesmo objetivo em lugares onde o espírito de fé e as famílias numerosas ofereçam mais possibilidades de encontrar boas vocações.
18.             (a) Quando o primeiro objetivo da obra for realizado, nada impedirá aos missionários aceitar missões estrangeiras. (b) Se os superiores julgarem que, em determinadas situações, for útil ao progresso ou à sobrevivência da obra pregar missões nos países católicos, ou mesmo aceitar paróquias oferecidas pelos bispos nas regiões onde faltam padres, nada impedirá que eles empenhem nisso alguns membros, (c) desde que nas missões sejam ao menos dois e nas paróquias sejam ao menos três, para que possam observar a vida regular e não percam de vista o objetivo principal do Instituto e, (d) consequentemente, cultivem as vocações apostólicas, formando na piedade, na virtude e no estudo os adolescentes e os jovens que dão esperanças de se tornarem bons missionários. (e) O instituto não aceitará a direção de colégios nem de seminários que não sejam aqueles que criarem para a finalidade da obra.
19.             (a) O objetivo do instituto supõe que seus membros sejam geralmente padres ou se preparem para ser padre. (b) Todavia, alguns trabalhos no interior das residências, ou mesmo algumas tarefas de catequese nas missões, não exigem o ministério sacerdotal. (c) Por isso, podem ser admitidos no instituto leigos que não se tornarão padres e que serão tratados como verdadeiros irmãos da Sagrada Família. (d) Eles a assumirão como o fez São José, que por eles será considerado modelo e honrado como protetor.

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Memórias da missão


AS DORES DA MALÁRIA, O PARTO DA MISSÃO!
A ocorrência de doenças, tanto conosco como com familiares nossos, muito marcante. Não lembro de ter padecido com alguma enfermidade mais relevante, mas presenciei a doença da minha avó e também as frequentes convulsões da minha irmã, e isso marcou me muito a vida. Foram poucas as visitas aos médicos para tratar de alguma enfermidade ou mal-estar pessoal. Não obstante isso, preciso confessar uma coisa: o ambiente do consultório médico ou odontológico, assim como do hospital. sempre me provocaram um certo medo.
Eis que venho para Moçambique, realizar o sonho da missão sempre esteve vivo dentro de meu coração, mas que não imaginava que se realizasse tão rapidamente. Mas aqui estou, feliz e animado para continuar a caminhar. Aqui estou, aprendendo com este povo. E um dos aprendizados que tive por aqui, foi a solidariedade na hora da doença.
Faz cinco meses que pisei nestas terras, e já passei por três malárias e um tratamento odontológico. Embora possa parecer estranho, posso dizer que o tratamento odontológico foi mais cansativo e doloroso que as malárias que enfrentei. “Ricardo, que você está fazendo aí, pegando essas malárias? Volta pro Brasil!”. Ouvi muito esse tipo de apelo espantado quando partilhei com alguns amigos que estava com malária.
O tratamento dura três dias, com duas doses de quatro comprimidos por dia. Este remédio afeta diretamente meu estômago, e a gente passa os dois primeiros dias sentindo-se muito mal, sem poder comer quase nada e vomitando. Esse mal-estar vem acompanhado por calafrios, febre e dores por todo o corpo. Estes são os sintomas e consequências mais comuns da malária.
Quando fiquei sabendo que eu viria para Moçambique, fui muito alertado sobre os riscos da malária. Entretanto, gostaria de dizer que estou suscetível a esta doença como os brasileiros estão suscetíveis à dengue. A malária é uma doença comum nestas terras, e há tratamento eficaz contra ela. Para não contraí-la, é preciso se precaver, usar repelente e roupas compridas, impedindo que o mosquito nos pique. A malária se manifesta quando nossa imunidade está baixa.
É claro, não podemos negar que não são dias bons esses que a gente passa com a malária. Porém, aprendi a conviver e tirar forças desta doença. Passo três dias quase que inteiramente na cama, passando muito mal. Quando os sintomas começam a diminuir e as minhas forças aumentam um pouco, sinto que tenho mais gana e mais sensibilidade para continuar na missão! Partilhei isso com o pessoal que mora aqui comigo, e isso foi motivo de riso, Mas o povo daqui também passa por malárias, e acho que são até um pouco mais resistentes que eu...
Como disse, a malária causa muitas dores e sofrimentos. Mas pergunto: em que lugar deste mundo não estamos suscetíveis a doenças ou quaisquer outros perigos? E uma das qualidades do missionário é aceitar que se está em contato com dores e sofrimentos que antes não eram passíveis de acontecer.
Sentir essas dores faz parte da missão! Me fortaleço a cada malária, pois vim a Moçambique com o objetivo de conhecer as alegrias e sofrimentos deste povo. Ao missionário não pode anunciar as belezas do Evangelho, entregar pão e conforto, mas viver atordoado pelo medo de partilhar das mazelas deste povo.
Por isso, quero dizer a todos que leem estas linhas – truncadas, doídas e, até certo, ponto assustadoras –, principalmente àqueles que desejam entregar a sua vida aos demais, em missão na África ou em qualquer outro lugar, até na rua da sua casa: Não tenha medo de enfrentar se expor às mazelas e perigos da missão!
Repito, com todas as forças: quando nos entregamos de coração e alma à missão, não há dor que impeça o nosso progredir. As dores da malária são uma porção mínima do que a missão tem a nos oferecer, e garanto que as belezas, alegrias, sorrisos, carinhos, abraços são muito maiores em número e em qualidade.
Não deixemos que as dores das diferentes malárias existentes no mundo nos paralisem. Avante! Com fé, esperança, felicidade e amor sempre, e, acima de tudo o amor, como disse São Paulo!
Fr. Ricardo Klock msf

quinta-feira, 19 de julho de 2018

O Evangelho dominical - 22.07.2018


O OLHAR DE JESUS

Marcos descreve com todo o detalhe a situação. Jesus dirige-se numa barca com o Seus discípulos para um lugar tranquilo e retirado. Quer escutá-los com calma, pois voltaram cansados da sua primeira correria evangelizadora, e desejam partilhar a sua experiência com o Profeta que os enviou.
O propósito de Jesus fica frustrado. As pessoas descobrem a Sua intenção e adiantam-se correndo pela margem. Quando Jesus e os discípulos chegam ao lugar, encontram-se com uma multidão vinda de todas as aldeias em redor. Como reagirá Jesus?
Marcos descreve graficamente a sua atuação: os discípulos hão de aprender como tratar as pessoas; nas comunidades cristãs recorda-se como era Jesus com essas pessoas perdidas no anonimato, das que ninguém se preocupa. «Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão, sentiu compaixão deles, pois eram como ovelhas sem pastor, e pôs-se a ensinar muitas coisas».
O primeiro elemento que destaca o evangelista é o olhar de Jesus. Não se irrita porque tenham interrompido os Seus planos. Olha-os demoradamente e comove-se. As pessoas nunca o incomodam. O Seu coração intui a desorientação e o abandono em que se encontram os camponeses daquelas aldeias.
Na Igreja, temos de aprender a olhar as pessoas como olhava Jesus: captando o sofrimento, a solidão, o desconcerto ou o abandono que sofrem muitos. A compaixão não brota da atenção às normas ou à recordação das nossas obrigações. Desperta-se em nós quando olhamos atentamente os que sofrem.
Desde esse olhar, Jesus descobre a necessidade mais profunda de aquelas pessoas: andam «como ovelhas sem pastor». O ensino que recebem dos letrados da Lei não lhes oferece o alimento que necessitam. Vivem sem que ninguém cuide realmente delas. Não têm um pastor que as guie e as defenda.
Movido pela Sua compaixão, Jesus «ensina-lhes muitas coisas». Com calma, sem pressas, dedica-se pacientemente a ensinar-lhes a Boa Nova de Deus. Não o faz por obrigação. Não pensa em si mesmo. Comunica-lhes a Palavra de Deus, comovido pela necessidade que têm de um pastor.
Não podemos permanecer indiferentes ante tanta gente que, dentro das nossas comunidades cristãs, anda a procurar um alimento mais sólido que o que recebe. Não temos de aceitar como normal a desorientação religiosa dentro da Igreja. Temos de reagir de forma lúcida e responsável. Não poucos cristãos procuram ser melhor alimentados. Necessitam pastores que lhes transmitam a mensagem de Jesus.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 18 de julho de 2018

ANO B – DÉCIMO-SEXTO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 22.07.2018


A compaixão é a base, o impulso e a meta da vida cristã!
Somos filhos do nosso tempo, mas em nossa memória coletiva pulsam também os ideais dos nossos antepassados. Deles e dos pensadores ocidentais, aprendemos que é refletindo, dobrando-nos sobre nós mesmos, que chegamos a saber quem somos. A tradição bíblica, porém, tem uma perspectiva diferente: descobrimos e revelamos nossa identidade respondendo a quem nos interpela, tomando uma atitude diante do rosto do Outro que está diante de nós, assumindo nossa responsabilidade na história. Nós somos a resposta que damos aos dilemas do mundo e aos múltiplos chamados que nos solicitam!  
Mas não podemos esquecer também que um dos aspectos mais profundos da fé que herdamos dos hebreus é a imagem de um Deus que cuida de nós como o pastor toma conta das suas ovelhas: Ele nos guia por caminhos seguros e nos conduz a pastagens abundantes, e nos dá a felicidade e o amor como companheiros que vão à nossa direita e à nossa esquerda... “O Senhor é meu pastor, nada me falta”: assim começa uma das mais belas orações do judaísmo. E essa não é uma afirmação ingênua e piedosa, mas expressão de resistência, a convicção de um povo que sente falta de quase tudo, mas resiste.
As pessoas que fazem a experiência de serem amadas e guiadas por Deus se descobrem também intimadas a amar e cuidar dos outros, sem agenda fixa ou hora marcada. O evangelista nos conta que, depois de enviar os discípulos para uma experiência de missão, e depois de saber do assassinato do profeta João Batista, é tanta gente que procura Jesus e os apóstolos que eles não têm mais tempo nem para comer. O cansaço da missão recém concluída e a tensão provocada pelo martírio de João pedem descanso, um retiro mais tranquilo. E isso lhes parece prudente e mais que merecido...
Um verdadeiro pastor, porém, não sabe dar as costas às suas ovelhas. Jesus não suporta ignorar as necessidades do seu povo, e ensina seus discípulos a não se contentarem com a contabilização de pequenos sucessos pastorais. A necessidade fizera o povo apressar o passo, e muita gente, tendo visto Jesus e os discípulos partirem de barco, correram por terra e chegaram ao lugar do descanso antes que eles. Diante da multidão que foi ao seu encontro, Jesus poderia ter atitudes: orgulho pelo sucesso da pregação; indiferença diante do que poderia ser somente busca de milagres e vantagens fáceis...
Entretanto, Jesus desce do barco e lê no rosto da multidão o abandono por parte daqueles que deveriam conduzi-la e defendê-la. “Quando saiu da barca, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão, porque estavam como ovelhas sem pastor.” Compaixão é a atitude profunda e quase orgânica de quem assume as dores dos outros como e fossem suas, de quem reconhece como próprias as lutas daqueles que são mais vulneráveis. É uma força que destrói os muros que, por medo, comodismo ou egoísmo, os povos, religiões, Igrejas e indivíduos vão construindo em torno de si mesmos e seus interesses.
Por isso, a compaixão é também o dinamismo que comove Jesus e tira os cristãos dos castelos construídos pelo individualismo para coloca-los na estrada da missão. É isso que Jesus demonstra ao longo de toda a sua vida, e é isso que ele propõe para aqueles que seguem seus passos. Sua primeira ação diante do povo abandonado é “ensinar muitas coisas para eles”: ensinar que eles sofrem porque foram abandonados pelas autoridades políticas e religiosas; que os muros que separam povos e classes são invenções humanas e devem acabar; que Deus não é um pastor amigo e compassivo...
Escrevendo aos efésios, Paulo sublinha que, a partir de Jesus Cristo, acabaram os privilégios de raça e de religião que definem quem está mais perto ou mais longe de Deus, quem tem prioridade e quem deve esperar na fila. Privilégios estabelecem hierarquias, classes, muros; privilégios perpetuam dominações. Pregado na cruz em meio a dois criminosos, Jesus derruba os muros que separam, elimina as distâncias e hierarquias culturais e sociais, assina o tratado de paz que faz de todos os povos uma única família. Não há mais diferença de dignidade entre homens e mulheres, cristãos e pagãos, escravos ou livres. Eis a Boa Notícia, o Evangelho que há dois milênios suscita alegria e compromisso!
Jesus, belo e amado pastor, peregrino no santuário das dores humanas! Atravessamos hoje os sombrios vales da indiferença, da opressão, da discriminação e do ódio transformadas em estrutura e em cultura, inclusive nas redes sociais e comunidades eclesiais. Desperta também hoje na tua Igreja homens e mulheres que, como tu, diante das dores e misérias humanas, se deixem mover e guiar pela compaixão. Que ninguém busque boas e piedosas razões para justificar a indiferença diante do sofrimento humano. Que a simples visão do teu bastão e do teu cajado nos reanime e oriente.  Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Profecia de Jeremias 23,1-6 * Salmo 22 (23) * Carta de Paulo aos Efésios 2,13-18 * Evangelho de São Marcos 6,30-44)

terça-feira, 17 de julho de 2018

POESIA E REALIDADE

Em menos de dois anos, celebraremos 110 anos do debut Missionário da Congregação. Por isso, estando de passagem por Natal (RN), e tendo contemplado a torre da igreja São Pedro, agrada-me  disponibilizar  um belo depoimento do Pe. Júlio Maria de Lombaerde msf, missionário enviado ao Brasil em 1912, que foi quem projetou, mais tarde, a referida torre. Depois de 6 meses de introdução à língua e aos costumes brasileiros, Pe. Júlio Maria celebrou sua primeira missa pública  na noite do Natal de 1912, em Ceará-Mirin (RN). Com seus reconhecidos dotes literários e poéticos, Pe. Júlio Maria relata o significado e o impacto desta experiência no seu jovem coração missionário. O texto faz parte do livro Diário Missionário do Pe. Júlio Maria (tradução do Pe. Demerval Alves Botelho SDN. O Lutador, Belo Horizonte, 1991, p. 122-124).

À tarde (do dia 34.12.1912), dois homens vieram me buscar (em Ceará-Mirim, RN), com um cavalo arreado, para levar-me ao lugar, onde eu devia celebrar a missa de meia-noite. Como a distância não passava de 6 km, saímos às 22:00 h, para estarmos no lugar ali pelas 23:00 h.
Que viagem emocionante e quantas recordações me vinham ao espírito! O tempo estava calmo, de uma calmaria que tinha algo de majestoso. A lua espargia sobre as montanhas e pelas planícies uma luz suave, cor lilás. Ao longe se destacava a superfície das montanhas com nesgas de nuvens brancas. Parecia que os coqueiros esguios e as palmeiras-reais se banhavam à luz da lua. No firmamento, brilhavam algumas estrelas, comunicando à estrada longa e azulada, uma nota vibrante, quase como uma voz que murmurava os cantos dos anjos.
Tinha naturalmente os olhos fixos naquele espetáculo e, deixando o cavalo andar com seus passos cadenciados, fiquei absorto em pensamentos e rezava. Meu desejo era de chorar e de cantar ao mesmo tempo.
Chorar!... Por que chorar, quando tudo anunciava alegria e felicidade? Quando tudo se dispunha a repetir o canto de entrega e de amor? É que o que provoca lágrimas não são somente as grandes alegrias e grandes sofrimentos. Existe também um certo conjunto de coisas agradáveis, tristes, majestosas sobretudo, que emocionam e que elevam. E este era o meu caso.
O pensamento do Natal me enchia de alegria e consolação. A vista daqueles prados imensos, quase desertos, que se estendiam em todas as direções, cuja silenciosa monotonia não era quebrada por nada, a não ser pelo canto, ainda que mais monótono das cigarras e pela passagem de algum animal noturno, à espreita de alguma presa. Tudo isso me comunicava uma espécie de melancolia.
Afinal, dominando todas essas impressões, veio-me à lembrança a Sagrada Família em sua viagem de Nazaré a Belém, quase à mesma hora, no mesmo dia, para comemorar o mistério, cujo aniversário íamos celebrar. A grandeza desse espetáculo me cativava, enchia-me a alma de emoções. Parecia mesmo encher-me os olhos de uma visão que eu não poderia deixar de ter.
Às 23:00 h chegamos no povoado. O povo estava lá. Uns de pé e outros sentados ao redor da igreja, conversando e cantando. O barulho dos passos dos nossos cavalos anuncia-lhes nossa chegada. Logo todos se levantam e gritam: “É o padre que está chegando! O padre veio mesmo!...”
Rodeiam-me, olham para mim, examinam e vêm beijar-me as mãos. As mães, com os filhos pequenos nos braços, inclinam-se à minha passagem e me pedem que os abençoe. Outras, mais desinibidas, num gesto de fé tão sublime e com toda a simplicidade, pegam minha mão e, depois de beijá-la, levam-na aos lábios dos filhos. Coitadas das velhas vovós, cuja idade impede-lhes de acompanhar-me... Pegam-me na batina à minha passagem, ou me prendem pela faixa para beijá-la com enorme emoção... Era realmente como a passagem de Nosso Senhor pelo meio da multidão arrebatada da Judeia.
Pobre e querido povo! Compreendem a missão e o caráter sagrado do padre. Vêem nele como que o resumo de toda a religião, uma espécie de Credo vivo de tudo aquilo que creem e veneram.
Fui andando lentamente à pé, pois assim que chegamos, levaram os nossos animais para a cocheira. Tendo entrado na igreja, fui ajoelhar-me nos degraus do altar a fim de preparar-me, na tranquilidade e no silêncio, para a celebração do augusto Sacrifício.
No silêncio, sim, mas na tranquilidade não. Não se podia pensar nisto. Quando atravessei a multidão, aglomerada diante da igreja, apenas algumas pessoas puderam chegar perto de mim e receber a bênção. Então imaginem a piedosa inveja daqueles que só puderam me ver de longe!...
Tão logo me ajoelhei e fechei os olhos, vi-me cercado por todos os lados. Subiam os degraus do altar, comprimiam-se e empurravam-se, de modo que fui forçado a estender as duas mãos para que fossem beijadas por aqueles que me cercavam, e poder, assim, sair daquele aperto, pois a igreja estava literalmente lotada. Eu me sentia como Moisés, rezando com os braços abertos. E aqueles que me cercavam disputavam minhas mãos para cobri-las de beijos. Mas isso não foi o bastante. Alguns me beijavam os ombros, enquanto outros se punham de joelhos diante de mim para abraçar meu crucifixo missionário.
Felizmente, compreendendo que eu queria rezar, deixaram-me em paz. A igreja começou a esvaziar-se pouco a pouco. Apenas algumas crianças, seguindo as recomendações das mães, vieram acocorar-se perto de mim. De mãos postas e com o olhar puro e cândido fixo em mim, pareciam esperar que eu lhes falasse alguma coisa. O olhar delas brilhava em seus rostos trigueiros ou pretos, como uma pequena lâmpada nas trevas. Havia uma meia-dúzia agarradas à minha batina, e algumas até com a cabeça escondida sob a minha faixa... Com uma voz que mal sabe articular as palavras, murmuravam: “A bênção padre, a bênção, padre!”
Pequenos querubins, dignos de postar em torno da manjedoura. Com os braços, aproximava-os de mim, traçando sobre as frontes um pequeno sinal da cruz. Senti lágrimas a me molhar as pálpebras e cair sobre o rosto delas como reflexos luminosos de um coração de padre. Possam estes raios apagar de suas frontes o vício e fazer resplandecer em seus corações o amor do divino Infante, cujo nascimento vamos celebrar.
A igreja de Ceara-Mirim hoje.
Enquanto me preparava diante do altar, organizaram tudo fora da igreja para a celebração da Santa Missa. O altar foi erguido na frente da porta do santuário, encimado de um baldaquino vermelho e enfeitado de tecidos e grinaldas.
Tudo ficou pronto e nada faltava, a não ser o santificador e sua divina Vítima para encher a noite de vida e de amor, e ouvir em espirito os anjos repetirem o seu canto: “Glória in excelsis Deo!” Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.

quinta-feira, 12 de julho de 2018

O Evangelho dominical - 15.07.2018


NOVA ETAPA EVANGELIZADORA

O papa Francisco está a chamar-nos para uma «nova etapa evangelizadora marcada pela alegria de Jesus. Em que pode consistir? Onde pode estar a sua novidade? Que temos de mudar? Qual foi realmente a intenção de Jesus ao enviar os seus discípulos a prolongar a Sua tarefa evangelizadora?
O relato de Marcos deixa claro que só Jesus é a fonte, o inspirador e o modelo da ação evangelizadora dos Seus seguidores. Não farão nada em nome próprio. São «enviados» de Jesus. Não pregarão sobre si mesmos: anunciarão o Seu Evangelho. Não terão outros interesses: só se dedicarão a abrir caminhos para o reino de Deus.
A única maneira de impulsionar uma «nova etapa evangelizadora marcada pela alegria de Jesus» é purificar e intensificar esta vinculação com Jesus. Não haverá nova evangelização se não há novos evangelizadores, e não haverá novos evangelizadores se não há um contato mais vivo, lúcido e apaixonado com Jesus. Sem Ele faremos tudo menos introduzir o Seu Espírito no mundo.
Ao enviá-los, Jesus não deixa os Seus discípulos abandonados às suas próprias forças. Dá-lhes o Seu «poder», que não é um poder para controlar, governar ou dominar os outros, mas a Sua força para «expulsar espíritos imundos», libertando as pessoas do que as escraviza, oprime e desumaniza.
Os discípulos sabem muito bem de que Jesus os encarrega. Nunca o viram a governar ninguém. Sempre o conheceram curando feridas, aliviando o sofrimento, regenerando vidas, libertando de medos, contagiando confiança em Deus. Curar e libertar são tarefas prioritárias na atuação de Jesus. Dariam um rosto radicalmente diferente à nossa evangelização.
Jesus envia-os apenas com o necessário para caminhar. Segundo Marcos, só levarão bastão, sandálias e uma túnica. Não necessitam de mais para ser testemunhas do essencial. Jesus quer vê-los livres e sem estarem atados; sempre disponíveis, sem instalar-se no bem-estar; confiando na força do Evangelho.
Sem recuperar este estilo evangélico não há nova etapa evangelizadora. O importante não é colocar em marcha novas atividades e estratégias, mas desprendermo-nos de costumes, estruturas e subordinações que nos estão a impedir de ser livres para contagiar o essencial do Evangelho com verdade e simplicidade.
Na Igreja temos perdido esse estilo itinerante que sugere Jesus. Nosso caminhar é lento e pesado. Não sabemos acompanhar a humanidade. Não temos agilidade para passar de uma cultura já do passado para a cultura atual. Agarramo-nos ao poder que tivemos. Enredamo-nos em interesses que não coincidem com o reino de Deus. Necessitamos conversão.
José Antônio Pagola
Tradução de Antônio Manuel Álvarez Perez

quarta-feira, 11 de julho de 2018

ANO B – DÉCIMO-QUINTO DOMINGO DO TEMPO COMUM – 15.07.2018


É fiel a Jesus a Igreja que vive em ritmo de missão!
Ainda está viva na nossa memória a recepção pouco positiva que a comunidade de Nazaré dispensou a Jesus, narrada no evangelho do domingo passado. Por causa da sua origem humilde, impacto provocado pela sua sabedoria logo se transformou em escândalo. A encarnação humilde e solidária, porém, não é mero acidente de percurso, mas o método missionário de Jesus! Ele envia os discípulos recomendando despojamento e humildade, pedindo que tomem parte na sua missão. A comunidade cristã é uma assembleia de pessoas chamadas e enviadas, e Paulo diz que Deus nos escolheu antes da criação do mundo para sermos santos e sem ambiguidades no amor. O amor é a dinâmica e o coração da missão.
A palavra Igreja significa etimologicamente assembleia ou reunião. A Igreja é uma autêntica assembleia de Deus, convocada e reunida por ele e em nome dele. Esta assembleia representa Jesus no mundo. A razão de ser da Igreja é deixar-se enviar, colocar-se a caminho, assumir uma missão, continuar a própria missão iniciada por Jesus Cristo. Ela é uma assembleia de pessoas enviadas, uma comunidade em missão. Isso significa que a Igreja não é uma sociedade voltada para si mesma, autorreferencial, como fala o Papa Francisco. A Igreja é uma espécie de movimento para fora, uma comunidade ex-cêntrica.
Preparar-se e capacitar-se para a missão recebida é sinal de responsabilidade pessoal e de apreço pelos destinatários do serviço que realizamos. No caso da missão que Jesus Cristo confia à comunidade cristã, a preocupação exagerada com os meios e com os recursos não deve travar as iniciativas nem adiar o enfrentamento das urgências. O que é indispensável é o mergulho pessoal no Evangelho de Jesus Cristo e a disposição de partilhar gratuitamente a liberdade e a dignidade que de graça recebemos. Como Jesus, seus discípulos não devemos nos preocupar demais com meios poderosos e técnicas especiais.
Com isso não quero dizer que a preparação espiritual e intelectual não sejam necessárias, mas apenas ressaltar que não devemos colocar aquilo que é secundário no lugar do que é essencial. Sem a experiência de fé e da liberdade que despoja e simplifica, não há curso ou instrumento multimídia que possa ajudar na missão. Sem a atitude de irmão e companheiro não existe missão frutuosa. A vocação missionária não é uma profissão que traz benefícios ou prosperidade individual, mas uma força desestabilizadora e profética, o que a faz nem sempre aceita e aplaudida.
Anunciar “Jesus te ama e te salva!” é bonito e verdadeiro, mas é pouco e insuficiente. É uma pena que haja missionários que imaginam que é necessário defender Jesus diante de um mundo indiferente ou resistente à religião, pois é o povo de Deus, e não Jesus, que precisa de defensores! E há pregadores que esquecem que a missão tem uma dimensão ativa, transformadora, libertadora: expulsar demônios, curar doentes, etc. Isso não significa virar exorcista ou curandeiro, mas criar condições para que as pessoas arrebentadas por dentro e por fora, menosprezadas e oprimidas, recuperem plenas condições de vida.
Em cada situação missionária, precisamos identificar quem são as pessoas e grupos aos quais são negadas as possibilidades de uma vida plena e agir em favor delas, levando em conta que, por mais que as ações espetaculares de expulsar os demônios e curar os doentes impressionem, a dimensão transformadora da missão cristã se mostra melhor noutras iniciativas que dão menos ibope, como na corajosa ação da CPT, no delicado e respeitoso trabalho do CIMI, na frutuosa atividade da Pastoral da Criança, no ingrato trabalho da Pastoral Carcerária, na anônima dedicação da Pastoral da Saúde...
É uma verdade central da nossa fé que, em Cristo, Deus nos abençoou abundantemente e nos escolheu ainda antes de criar o mundo para sermos pessoas maduras e íntegras no amor. Ele também abriu nossa mente à compreensão do mistério de sua santa vontade, nos adotou como filhos e filhas e nos introduziu na lista dos seus herdeiros. E isso não é pouco, nem coisa abstrata ou para um futuro incerto. O que não podemos é pensar que isso seja mérito ou privilégio. Somos filhos e filhas, e herdeiros, porque ele é bom, nos ama e nos acolhe sem levar em conta nossas ambiguidades e limites.
Jesus Cristo, profeta de Nazaré e missionário do Pai! Tu nos ensinas que a vontade mais genuína do teu e nosso Pai é que o amor e a fidelidade se encontrem, a justiça e a paz se abracem, a fidelidade brote da terra e a justiça se incline do céu. É isso que tu pedes que anunciemos e realizemos enquanto Igreja discípula e missionária. Por isso, confiantes, te pedimos pelos servidores e servidoras da Palavra, por aqueles cuja missão é, na medida do possível, atrair as pessoas a ti: abençoa o trabalho deles, de modo que realizando-o possam também eles ser atraídos a ti e confirmados na alegria. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Profecia de Amós 7,12-15 * Salmo 84 (85) * Carta aos Efésios 1,3-14 * Evangelho de São Marcos 6,7-13)

terça-feira, 10 de julho de 2018

18 anos de presença MSF no Alto Juruá (5)


Uma prece que vale por um projeto de vida
Em abril de 2007, ao concluir uma viagem de visita às Comunidades ribeirinhas, brotou do coração missionário do Ir. Lauri (hoje, conselheiro e ecônomo provincial) uma bela prece que vale por um projeto de vida. Esta poderia ser a prece matutina ou vespertina de todos os missionários e missionárias, na Amazônia ou na África, na Ásia ou na Europa, nas periferias urbanas ou nas comunidades perdidas nas selvas. Deixemos que nosso ser se expresse por inteiro nestas palavras carregadas de espírito e renovemos nosso ânimo missionário.
“Que eu saiba sempre compreender cada irmão e irmã.
Que eu nunca os avalie conforme o meu jeito de pensar.
Que eu nunca os julgue pelo que aparentam aos meus olhos.
Que eu saiba sempre compreendê-los com o coração e com a fé.
Que eu não veja como normalidade o sofrimento dos pequenos e indefesos.
Que o amor ao próximo seja sempre a bússola do meu caminhar e do meu agir.
Que minha busca fundamental seja sempre o Reino de Deus e sua Justiça.
Que o reino de Deus seja o tesouro no qual se alegra e descansa meu coração.
Que Cristo me dê forças e seja a poronga que ilumine minha vocação e minha vida.
Que o Senhor seja a seiva do mate que busco cada manhã.
Que eu nunca me canse, nem desanime diante das incompreensões e dificuldades.
Que eu sempre veja o rosto de Deus no rosto dos pequenos e fracos.
Que o amor seja sempre minha resposta e minha atitude.
Que a minha esperança seja renovada a cada dia pela Tua Palavra.
Que sejas tu meu vínculo de comunão com estes irmãos e irmãs. Amém.”
Itacir Brassiani msf

sábado, 7 de julho de 2018

18 anos de presença MSF no Alto Juruá (4)


Desafios e horizontes da missão
Hoje, ao completar 18 anos de missão, nossa comunidade missionária identifica os seguintes desafios em Carauari e Itamarati:
(a)    A animação pastoral das comunidades ribeirinhas e a presença nas aldeias indígenas (em parceria e diálogo com o CIMI, com a Pastoral da Juventude e com a Pastoral da Criança);
(b)    O acompanhamento das comunidades eclesiais urbanas, especialmente no fortalecimento dos vínculos fraternos e na formação de lideranças cristãs maduras;
(c)     O acompanhamento das famílias, considerando suas diversas configurações, assim como a instabilidade dos vínculos e a precocidade do matrimônio;
(d)    A valorização pastoral e a presença dos missionários nos novenários urbanos e ribeirinhos, inclusive como estratégia para promover avanços no sentido eclesial e missionário;
(e)    O planejamento, a execução e a avaliação comunitária (comunidade religiosa) dos diversos trabalhos, valorizando as habilidades de cada um e evitando tanto a fragmentação como a centralização;
(f)       A visualização de caminhos e estratégias para trabalhar com as juventudes, ajudando-as a visualizar possibilidades e alternativas de vida;
(g)    Os altos custos das visitas às comunidades ribeirinhas, da pastoral em geral, da infraestrutura e da manutenção da comunidade missionária;
(h)    A superação da impressão de que o envio dos coirmãos enviados à missão na Amazônia é uma espécie de punição ou castigo.
Nesse contexto, antes de estabelecer tarefas prioritárias, consideramos imprescindível definir claramente os princípios que dão o rumo e a substância à nossa ação missionária nessa região:
(a)    Viver e anunciar comunitariamente a alegria do Evangelho, ajudando a construir uma Igreja que seja mais semelhante a um hospital de campanha que a uma alfândega;
(b)    Assumir a missão como um processo de saída de nós mesmos, nossa visão e nossa cultura, e de conversão ao evangelho do outro;
(c)     Testemunhar a fraternidade e a comunhão, vivendo e trabalhando sempre a partir da comunidade religiosa e de vida, superando a tentação da divisão rígida e hierarquizada de trabalhos (pároco, vigários, ajudantes, etc.);
(d)    Desenvolver ações orgânicas, planejadas e avaliadas comunitariamente, valorizando as competências de cada coirmão e evitando iniciativas paralelas ou isoladas;
(e)    Encarnar-se na Igreja local e empenhar-se no fortalecimento das comunidades eclesiais, no horizonte dos projetos e prioridades da Prelazia e da REPAM (Rede Eclesial Pan-Amazônica);
(f)      Respeitar, apoiar e promover as lideranças leigas, especialmente mediante os Conselhos comunitários e paroquiais, e as pastorais de caráter solidário e popular;
(g)    Exercitar o diálogo aberto e respeitoso com as tradições culturais e religiosas do povo amazônico;
(h)    Colocar-se solidariamente a serviço dos pobres, apoiando suas lutas e fortalecendo suas organizações. (continua)
Itacir Brassiani msf