quinta-feira, 27 de março de 2014

Quarto Domingo da Quaresma (Ano A - 2014)

Não vivemos para ignorar ou julgar, mas para amar e libertar!

Como crianças que se deixam educar na fé, no caminho quaresmal vamos pouco a pouco redescobrindo Jesus como pão da vida, como filho amado, como água viva e, neste domingo, como luz do mundo. Jesus Cristo é luz que faz resplandecer a verdade e a beleza de todas as coisas. Ele nos lembra nosso parentesco com o pó e com o barro da terra e, assim, abre nossos olhos para que acreditemos nele, olhemos o mundo na sua perspectiva e nos engajemos na sua obra de libertar os oprimidos e abrir os olhos daqueles que não querem ver a ignomínia do tráfico de seres humanos.
João nos coloca, com Jesus, diante de um judeu que nasceu cego e pobre e deve mendigar para sobreviver. Ao mal físico da cegueira se acrescenta a chaga social da pobreza e a doença espiritual de quem pensa que o mendigo cego e sua família são os únicos culpados por tudo isso. Parece que os próprios discípulos pensam assim... E é mal-visto e suspeito quem ousa mudar esta condição natural e atuar contra os costumes e leis naturais que cimentam esta ordem social! “Este homem não pode vir de Deus... Nós sabemos que este homem é um pecador...”
O olhar de Deus é outro. Seus caminhos são alternativos. Este olhar diverso e inverso, próprio de Deus e daqueles que nele acreditam, se mostra de forma claríssima em Jesus de Nazaré. Para ele, nem o cego mendigo nem sua pobre família são culpados de qualquer coisa. Jesus não explica as causas da cegueira daquele homem, mas chama todos e cada um a tomar uma posição responsável diante dela,. “Temos que realizar as obras daquele que me enviou...” Estamos diante de uma pessoa necessitada que pede uma ação solidária, e não diante de alguém que precisa ser julgado.
Jesus de Nazaré é luz que nos ajuda a discernir e compreender a realidade assim como ela é. “Enquanto estou no mundo, eu sou a luz do mundo...” Trata-se de ver a ausência dos últimos e chamá-los a ocupar os primeiros lugares, de recuperar a visão daqueles que não conseguem ver e de devolver-lhes a cidadania. Jesus cura o cego, justifica sua família e afirma a culpa da elite religiosa. Assim, questiona a ordem estabelecida e quem a sustenta. Enquanto as elites se comprazem em culpar as vítimas e inocentar os algozes, Jesus desmascara suas cínicas mentiras.
É preciso exercitar um olhar capaz de transcender as aparências, agir de modo a derrubar os muros construídos pela exclusão e mantidos pela pela indiferença globalizada, vencer o medo acomodador que nos leva a duvidar que existam pessoas e grupos excluídos. “Não acreditaram que ele tinha sido cego...”  Toda ideologia, instituição ou sistema fechado em si mesmo e com pretensões de totalidade, seja ele partido, nação, instituição, Igreja ou academia, tem vocação totalitária e, portanto, pode cair na tentação das práticas de indiferença e de exclusão.
Paulo pede que nos comportemos como filhos da luz, o que significa concretamente ser bom com todos, reconhecer e afirmar a dignidade dos sem dignidade, lutar pela justiça, restabelecer a verdade. Mas o ponto de partida é despertar da tranquilidade do nosso sono, é começar pela necessária auto-crítica: “Será que também somos cegos?” E os passos seguintes levam a perseverar no caminho de Jesus de Nazaré, a pedir que ele abra nossos olhos, a assumir seu ponto de vista, a colaborar incansável e generosamente com sua ação libertadora.
Mas este é um caminho sempre cercado de ameaças e incompreensões. O cego e mendigo que recuperou a capacidade de ver e discutir com as auoridades encurraladas enfrentou sentenças ferozes e condenações inapeláveis: “Você nasceu inteirinho no pecado e quer nos ensinar?” E o próprio Jesus, por ousar retirar o véu dos olhos do cego e levantar o manto da exclusão que o vitimava, não tardou a ser carimbado como pecador. Não é novidade que também muitos pastores e profetas de hoje sejam demonizados e execrados pela mídia comercial.
Jesus, humano e divino profeta de Nazaré, luz do nosso olhar e razão do nosso caminhar. Tu nos ensinas que abrir os olhos e ver as coisas na tua perspectiva é um caminho que nunca termina de começar. Ajuda-nos a reconhecer em ti a Luz que revela a inegociável dignidade das pessoas transformadas em mercadoria. Guia-nos a uma vida realmente sábia, como a da mulher da Samaria e a do anônimo mendigo. E ensina-nos a encontrar no barro da terra a familiaridade que nos une a todos os seres e restitui a vida tanto aos humanos como às demais crituras. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Primeiro livro de Samuel 16,6-13 * Salmo 22 (23) * Carta aos Efésios 5,8-14 * João 9,1-41)

Tres anos sem Comblin

José Comblin, três anos depois da partida

Meu querido amigo: como sentimos falta de você! Há três anos você completava a sua jornada terrestre. A vida prosseguiu e tanta coisa aconteceu. Quantas vezes desejamos saber o que você diria sobre os fatos que foram se sucedendo, dentro e fora da Igreja. A renúncia do papa Bento XVI? A eleição de Bergoglio, o papa Francisco tão amado e conhecido em apenas um ano? As mobilizações e manifestações que atravessam o mundo. Será que estamos vivenciando um novo amanhecer da Igreja como você tanto sonhava?
Sim, José Comblin sonhava e buscava construir dentro do seu âmbito a Igreja com a qual sonhava: a Igreja Povo de Deus, uma igreja mais humana, mais presente, mais próxima. Uma Igreja mais evangélica. Quem sabe, mais do que construir, tratava-se de restaurar a Igreja dos primeiros cristãos, fundada nos exemplos e nas exortações do mestre Jesus. Uma igreja que sai, que vai ao encontro, que busca os afastados. Uma igreja missionária. Essa foi sempre a sua insistência e nesse sentido organizou diversas formações missionárias. Uma igreja presente: nas viagens terrestres através das vastas extensões nordestinas, Comblin observava tudo: o campo, os assentamentos de terra que surgiam aqui e acolá, as periferias se estendendo sempre mais. E sempre voltava a perguntar: será que a igreja católica já chegou aqui? Os crentes não perdem tempo, nós católicos precisamos ser mais ágeis.
Sonhava com uma Igreja mais dedicada ao povo do que ao culto. Dedicada ao cuidado das pessoas, conselheira dos aflitos, animadora das comunidades, capaz de atrair a juventude ao Evangelho de Jesus. O culto vem depois, é resultado e consequência de uma presença viva e atuante. Ele constatava que se dedica mais tempo ao culto e tudo que o envolve (preparação, organização, utensílios, vestes) do que ao cuidado do povo de Deus: atendimento pessoal, visitas, formação de pessoas. Uma Igreja humana, compassiva, pautada pela misericórdia. Sempre afirmava que o Amor é a única realidade da pessoa humana que nunca desaparece. Assim ele vivia: seu amor imenso a cada pessoa - amigos, alunos, companheiros, vizinhos - se expressava pelo tempo que sempre encontrava para atender um e outro, para animar, aconselhar, ouvir, servir, abraçar, olhar simplesmente...
Abraçava uma Igreja capaz de tomar posição na defesa dos pequenos, dos pobres, da justiça. Como ele disse em artigo intitulado Os sinais dos tempos - Vaticano II: um futuro esquecido? (Em Concilium 312, 2005/4): “O reino de Deus não é uma situação nem uma instituição, é um movimento. Mais exatamente o reino de Deus é o movimento de libertação da dominação na qual seres humanos submetem outros seres humanos por meio de violência, engano, mentiras, etc. O advento do reino de Deus é uma luta contra forças humanas, instituições humanas que são opressoras. O que importa para Jesus não são os progressos científicos ou tecnológicos, as mudanças econômicas e sociais. O que o preocupa é a libertação dos oprimidos. Este assunto é hoje em dia mais atual do que nunca.”
Colocou-se ao lado daqueles que publicamente tomaram posição em defesa da VIDA e da vida em abundancia para todos. De bispos a leigos contava os exemplos em seus cursos: são os testemunhos de vida que marcam e atraem seguidores.
Será que estamos de fato vivenciando o novo amanhecer da Igreja como você tanto sonhava? Certamente ainda falta muito. Temos sim, uma oportunidade histórica: o Papa Francisco deseja de fato uma Igreja mais Evangélica, seguidora de Jesus, portadora da Boa Nova, particularmente aos pobres e sofredores. Como o Papa exclama na sua Exortação: “É uma mensagem tão clara, tão direta, tão simples e eloquente que nenhuma hermenêutica eclesial tem o direito de relativizar... Para quê complicar o que é tão simples? As elaborações conceptuais hão de favorecer o contato com a realidade que pretendem explicar, e não afastar-nos dela. Isto vale, sobretudo para as exortações bíblicas que convidam, com tanta determinação, ao amor fraterno, ao serviço humilde e generoso, à justiça, à misericórdia para com o pobre. Jesus ensinou-nos este caminho de reconhecimento do outro, com as suas palavras e com os seus gestos. Para quê ofuscar o que é tão claro?”  (A Alegria do Evangelho n. 194).
A grande novidade não é o conteúdo, mas é a maneira de viver o que já foi tão falado, estudado, refletido. É o testemunho do papa Francisco que vem revigorando tantos que estavam caídos pelo caminho. Como Comblin afirma: “O Evangelho para os dias de hoje é o anuncio, a proclamação da vida de Jesus. O que nos ensinou pela sua vida, pela sua atitude neste mundo com os poderosos, com os pobres, com os doentes. Porque somente o seguimento de Jesus pode convencer. A teologia não convence ninguém e nunca converteu ninguém. O que converte é o testemunho de pessoas que vivem de acordo com o Evangelho.”
Não bastam intenções nem exortações. Para chegar a isso é preciso formação. A mudança de mentalidade e de atitude se dá por uma formação sólida, consistente. É preciso espiritualidade, pois como José Comblin dizia, “para mergulhar no mundo dos pobres, dos excluídos, dos necessitados é preciso ter uma grande força espiritual”. É urgente repensar a formação em todos os níveis, a começar pelos agentes eclesiais. O mundo se deixará convencer pelo ser cristão, não pelo falar de cristianismo nem de Cristo. Na sua obra póstuma afirma: “Todos os cristãos precisam de uma formação evangélica profunda, de diversos níveis. Os ministros permanentes da Igreja serão formadores. Hoje em dia com Internet existem muitas maneiras de dar formação. Sem uma formação equivalente à formação na sociedade civil, comunidades cristãs serão impossíveis. A formação é o desafio prioritário.”
Assim prestamos a nossa homenagem às Escolas de Formação Missionária idealizadas por José Comblin. Neste ano de 2014 a primeira Escola iniciada em Juazeiro, Bahia completa 25 anos.  Ela cresceu, floresceu e frutificou: além de lideranças firmes atuantes neste chão nordestino, hoje temos seis escolas espalhadas pelo Nordeste e são poucas as iniciativas de formação de leigos que se mantem por tanto tempo. Uma proposta que segue dando certo, é atual e criativa, lapida mentes e corações, contagiando o ardor do Evangelho de Jesus.
Interceda por nós, querido amigo José Comblin, para que o Espírito Santo venha em socorro de nossa fraqueza e sejamos fiéis ao Caminho de Jesus!


Monica Maria Muggler

terça-feira, 25 de março de 2014

Solenidade da Anunciaçao

Anunciação: Deus reconhece e aprecia nossa graciosidade!
(Zc 7,10-14; 8,10; Sl 39/40; Hb 10,4-10; Lc 1,26-38)
Aqui, na Vila de Nazaré, Maria acolheu a saudaçao e o convite de Deus...

A celebração da Anunciação recorda que Deus é substancialmente dom que se faz carne e corpo e assume o ser humano como sua morada. Assumindo a corporeidade humana, o Filho entende cumprir a vontade (e não apenas uma vontade) do Pai. A ele não agradam sacrifícios e holocaustos, que eliminam carne e corpo, mas uma vida capaz de amar no corpo e na carne. Deus e humanidade estão absolutamente e desde sempre comprometidos e imbricados um com o outro. Deus é o destino do ser humano, e a criatura humana é a morada de Deus.
“Alegre-se, cheia de graça!”
O anúncio do mensageiro de Deus é dirigido a Maria, mas não tem nela seu termo. Na anunciação, Maria representa a humanidade que é querida por Deus como sua morada e sua parceira. As palavras do anjo nos asseguram que, aos olhos de Deus, a humanidade é cheia de graça, bonita e charmosa. Por isso, não podemos nos contentar com coisas de pequena monta, projetos acanhados e interesses mesquinhos. Deus tem grandes planos para realizar por nós e através de nós!
É claro que frequentemente o medo limita nossas iniciativas e não sabemos bem como fazer as coisas. O que o mensageiro divino pede é que saibamos confiar na força criadora do Espírito de Deus, pois ele transforma montes de ossos secos e vales áridos em comunidades vivas e roças abundantes. Quando a humanidade se mantém aberta à iniciativa de Deus, nada é impossível. Quando estamos convictos de que Deus aposta em nós, tudo é possível.
“O Senhor está com você!”
Em nossas celebrações repetimos várias vezes “Ele está no meio de nós!” Mas esta presença de Deus em nosso meio não é automática nem inócua. Ela depende da nossa adesão ao projeto de Deus e, ao mesmo tempo, interpela a uma resposta consequente. Implica sempre num discernimento dessa presença e dessa vontade no meio dos acontecimentos humanos. Isso é próprio de um Deus que fala e age de modo humano, que mistura seu Espírito à nossa carne.
O rei Acaz se recuss a discernir os sinais de Deus, mas não consegue se livrar da responsabilidade de se posicionar frente às dores e esperanças do seu povo. Para justificar sua omissão, o rei recorre inclusive à teologia, afirmando que não pode colocar Deus à prova. Tomando a palavra, o profeta diz que Deus é capaz de fazer a vida brotar nos corpos virgens e estar ao lado do seu povo nos momentos difíceis e nas lutas mais árduas. Seu nome é Emanuel, Deus-conosco.
Na espiritualidade da Sagrada Família damos centralidade à encarnação, na qual “se manifesta o dom de Deus aos homens”. Nesta humilde e discreta família hebréia, na concretude e na simplicidade estonteante de Jesus de Nazaré, Deus se mostra o presente mais precioso e se faz presença definitiva na carne vulnerável e fértil, na busca comunitária e sem descanso de sua vontade, nas múltiplas alianças vividas cotidianamente para levar todas as pessoas à única família do Pai.
“Tu me deste um corpo!”
A carta aos Hebreus nos apresenta um diálogo orante de Jesus com o Pai. Segundo esta carta, a encarnação é uma resposta generosa que substitui sacrifícios e ofertas. Assim, sgundo Jesus Cristo, assumir a condição humana com suas possibilidades e debilidades, fazer-se próximo e irmão é uma ação mais importante e agradável a Deus que qualquer oferenda ou ato litúrgico. A encarnação não se dá em vista dos socrifícios mas para substituí-los! O corpo não é um elemento a ser sacrificado mas assumido, já que seu valor supera as ofertas e sacrifícios.
Ao mesmo tempo, a encarnação expressa a resposta humana e divina diante de Deus. “Eis-me aqui para fazer a tua vontade.” Trata-se de assumir a corporeidade histórica, assim como as relações humanas e as estruturas sociais, para realizar no mundo a vontade de Deus, para ajudar na plenificação da vida de todas as criaturas. Ser corpo, permanecer no corpo, humanizar os corpos é um meio para realizar a vontade de Deus e uma expressão do seu cumprimento. Claro que se trata, em primeiro lugar, do corpo dos outros, e não de uma auto-complacência fechada e egoísta.
“Para Deus nada é impossível.”
A maioria das religiões parece temer a corporeidade e a matéria e, por isso, criam normas e sistemas para afastar os fiéis do mundo concreto e fixar a atenção num hipotético mundo espiritual. O próprio cristianismo não está livre desta tentação. A ideologia que afirma a existência de dois mundos diversos e opostos e de duas histórias paralelas diminui a força de fermentação e de transformação da fé e reduz a religião a um acontecimento privado e íntimo. E um dos frutos desta concepção é a idéia de que algumas mudanças são impossíveis.
Ora, a encarnação traz consigo a afirmação de que para Deus nada é impossível, e não se trata apenas da concepção virginal. Maria representa a comunidade eclesial e, num sentido mais amplo, a humanidade, e o que o anjo afirma é que não há limites para a ação divina, nem mesmo nossa recusa intransigente. O desejo profundo de Zacarias e de Isabel, a esperança viva de Maria e de José, a radical expectativa do Reino por parte dos oprimidos abrem possibilidades de uma intervenção radical e transformadora de Deus na história mediante a encarnação. Para Deus não é impossível, antes, é desejável fazer-se presente no corpo humano e humanizador.
Inspirados pela encarnação que se realiza na Sagrada Família de Nazaré, compreendemos que é inadiável a missão de encontrar ou abrir vias para destruir os muros que separam e “conduzir todos os homens e mulheres à única família do Pai”. E isso para além das diferenças étnicas, culturais, etárias, econômicas, políticas, sociais, etc. Os dons recebidos, se não forem comunicados e compartilhados, perdem tanto sua beleza como sua vitalidade.
“Eis aqui a serva do Senhor!”
O sim discreto e comprometido de Maria abre possibilidades inauditas para a humanidade. Para fazer-se carne, Deus bate à porta das  criaturas e se fica à espera da sua resposta. Acolhendo a proposta divina, Maria nos mostra que a atitude que melhor contribui para a realização da vontade de Deus não é a de ser senhora e patroa, mas humilde servidora. Aquele que eleva os humildes e rebaixa os orgulhosos escolhe servos/as e parceiros/as aos quais confia sua obra libertadora.
Mas é claro que a postura de servidora assumida por Maria não tem nada de ingenuidade ou de passividade. No seu cântico, Maria mostra que servir o Senhor e cumprir sua vontade significa discernir a ação na Deus na elevação dos humilhados e no atendimento das necessidades dos famintos, assim como na limitação do poder dos poderosos e dos bens dos ricos. Em Maria e na vida dos cristãos, o serviço não se casa com a ausência de crítica social e teológica.
Tanto quanto manifetação do dom de Deus à humanidade, o evento da encarnação nos mostra “a resposta do homem ao dom de Deus na sua expressão mais clara”. A encarnação não é apenas o movimento descendente e condescendente de Deus em direção à humanidade e ao corpo, mas também o movimento ascendente e transcendente dos homens e mulheres que pronunciam e mantém seu sim à proposta de Deus. Nossa mãe Maria, nosso pai José e nosso irmão Jesus, na sua radical disponibilidade ao projeto de Deus, são as mais belas flores desta nossa humanidade ferida e redimida.
“Não escondi tua justiça dentro do meu coração...”
Aproximemo-nos agradecidos/as e necessitados/as da mesa do Senhor. Ofereçamos a ele nosso corpo vivo e comprometido com novas relações, e assim ele nos dará seu próprio corpo e nos acolherá numa vida cujo dinamismo nada pode estancar. E rezemos com a alegria e o espanto das comunidades antigas: “Alegra-te, tu que és o trono do Rei. Alegra-te, pois carregas aquele que tudo carrega. Alegra-te, estrela que revelas o sol. Alegra-te, útero da divina encarnação. Alegra-te, pois por meio de ti a encarnação se renova. Alegra-te, porque por meio de ti o Criador se faz criatura, o Senhor se faz servo, o grande se faz criança. Alegra-te, Maria, cheia de graça! O Senhor está contigo! Bendita és tu entre as mulheres, e bendito é o fruto do teu ventre, Jesus!”

Pe. Itacir Brassiani msf

domingo, 23 de março de 2014

Reflexões do Pe. Ceolin (10)

"Ser sinal entre aqueles que estão longe"
Ou: considerações sobre o carisma dos Missionários da Sagrada Família

Para ser sinal é preciso ter estupenda audácia – inspirada e sustentada pela graça de Deus – para apostar na radicalidade do Evangelho, levando a sério a experiência de Deus e da fraternidade, essencial para a Vida Religiosa. É preciso também abraçar a missão primeira, que consiste em ser no mundo memória do Evangelho, assumindo-a radicalmente acreditando no amor primeiro de Deus, conhecendo o sentido da vida e os valores reais do Reino de Deus, razão primeira do discipulado. Finalmente, é preciso existir para o serviço ao mundo, e a primeira tarefa deste serviço é tornar visível a dimensão teologal da vida humana.
A força do sinal brota de uma tríplice fidelidade: fidelidade pessoal ao Espírito; fidelidade às origens e ao carisma específico da Congregação; fidelidade ao mundo em que vivemos, aos homens e mulheres do nosso tempo. É a realidade humana atual que assinala o lugar concreto “para onde o Senhor quer nos enviar” e quem são concretamente “aqueles que estão longe”.
Sabemos que um sinal fala por si mesmo. O sinal suscita questionamento, mesmo que nem sempre seja imediatamente compreendido e aceito. O profeta Jeremias perambulou nu e edescalço durante três anos, e só mais tarde o povo de Israel entendeu o que aquilo significava...
O sinal existe para ser visto, deve sair de casa, ir à rua, sair ao encontro dos dramas e das misérias humanas, alcançar o palco das decisões que marcam a vida do povo. A Vida Religiosa Inserida é ainda uma tímida (e temida) e minoritária tentativa de levar o sinal à rua.
Quem são “aqueles que estão longe” (cf. Mc 16,7 e At 2,39)? Longe é o lugar onde Jesus nos precede, onde precisamos ir para encontrá-lo. É de lá que ele nos chama! É para lá que ele nos envia! Segundo as escrituras, sabemos que Jesus assumiu e se faz presente prioritariamente em quatro lugares ou realidades da vida do povo: em Belém, na Galiléia, na Samaria e em Jerusalém.
Belém é o lugar da exclusão de Deus. É a sociedade que exlcui a presença de Deus. Belém é para nós um sinal de que Jesus vai nascer migrante, frágil, vulnerável, indefeso. Por isso muita gente tem dificuldades de encontrá-lo, de reconhecê-lo e de segui-lo. Na verdade, ele não cabe nas idéias, imagens e quadros que temos a respeito de Deus. Quem são as pessoas que hoje vivem em Belém?
A Galiléia é símbolo da má fama, da marginalização. É lá que Jesus chama os apóstolos (cf. Mc 3,17-19). É lá que ele inicia a missão (cf. Mt 4,17). Da Galiléia veio o primeiro Papa... Foi na Galiléia que Jesus publicou seu programa, no sermão da montanha (cf. Mt 5 – 7). Nazaré da Galiléia representa a opção de Jesus por todos os desprezados e desvalorizados. É o lugar do escândalo da sua encarnação. “De Nazaré pode vir alguém que presta?” Quem seriam os galileus de hoje, os grupos sociais aos quais o Senhor nos envia?
A Samaria é o lugar da dupla marginalização (cultural e espiritual). Era considerada uma região herética e cismática, odiada e rejeitada pelos cidadãos da Judéia. A Samaria simboliza o mundo não judeu (não católico...). Representa o lugar do amor universal de Deus. Ele é o Deus de todos, e não apenas do povo de Israel. Quem seriam os samaritanos de hoje?
Na vida de Jesus, Jerusalém é o lugar do fracasso, da condenação, da morte “fora dos muros”. É também o lugar da missão cumprida (“Tudo está consumado!... Ninguém tira a minha vida: eu a dou livremente!...”) Por isso, Jerusalém é também o lugar da resposta triunfante de Deus, símbolo da vitória contra todos os poderes do mal. Entre tantas pessoas que “estão longe”, quem vive hoje em Jerusalém?
De tanto viver em Belém na Galiléia, em Nazaré, na Samaria e em Jerusalém, multidões de irmãs e irmãos nossos perderam a esperança no amanhã. Os cristãos, e especialmente os religiosos e religiosas, estão sendo chamados a ajudá-las a encontrar caminhos de superação e esperança.
No caminho do discipulado, do seguimento do Mestre, vendo e compreendendo sempre mais os sinais e o significado da sua opção por determinados lugares, aos poucos vai se definindo para nós, Missionários da Sagrada Família, o lugar e o significado do nosso carisma: o que nós devemos significar para o mundo; qual é mesmo o nosso lugar; o que entendemos por “ir àqueles que estão longe”.
É bem verdade que nem todos podemos inserir-nos missionariamente entre as pessoas que vivem à margem da vida, da sociedade e da própria fé em Jesus Cristo. Mas isso não deve servir de álibi para eximirmo-nos do nosso Carisma! Todos temos o dever de viver o significado do Carisma, a mística e o espírito da inserção! Que repercussões concretas deverá ter isso em cada um de nós e na vida da Província, na formação, na atividade pastoral, em nosso “jeito MSF” de viver e de atuar?
A Ir. Ana Roy, de quem me vali para estas considerações, recentemente dizia aos formadores e formadoras reunidos em Rio do Sul: a primeira preocupação das pessoas consagradas não deve ser o que fazer mas como ser um sinal eloquente pela própria vida. Nas palavras dela: “Somos sinais para o mundo quando gotejamos Deus...” E concluo, parafraseando São Paulo: “Mesmo que eu falasse a língua dos homens e dos anjos e tivesse todo conhecimento... Ainda que... Seria apenas um sino ruidoso... Eu não seria nada... De nada isso adiantaria...”
Pe. Rodolpho Ceolin msf
 (Meditação não publicada, escrita no dia 25 de março de 1995, festa da “encarnação do Senhor entre aqueles que estavam e ainda estão longe”, conforme anotou o próprio Pe. Ceolin)

quinta-feira, 20 de março de 2014

Historia do povo negro

Epopéia do povo negro no Brasil

1838: No dia 20 de março, o governo do Sergipe proíbe que portadores de moléstias contagiosas e africanos, escravos ou não freqüentem escolas públicas.
1454: A bula Papal editada por Nicolau V dá aos portugueses a exclusividade para aprisionar negros para o reino e lá batizá-los.
1630: Data provável da formação do Quilombo dos Palmares. Palmares ocupou a maior área territorial de resistência política à escravidão. Ela foi uma das maiores lutas de resistência popular nas Américas.
1695: Morte de Zumbi dos Palmares. Zumbi dirigiu Palmares num dos seus momentos mais dramáticos. As forças chefiadas pelo bandeirante Domingos Jorge velho destruíram o Quilombo e, depois, assassinaram Zumbi.
1741: Alvará determina que os escravos fugitivos serão marcados com ferro quente com a letra "F" carimbada nas espáduas.
1835: Levante de negros urbanos de Salvador. Segundo historiadores, a Revolta dos Malês foi a mais importante revolta urbana de negros brasileiros, pelo número de revoltosos, grau de organização e objetivos militares.
1833:  Fundação do Jornal "O Homem de cor" por Paula Brito, é o primeiro jornal brasileiro a lutar pelos direitos do negro.
1850: É editada a Lei Euzébio de Queiroz, que põe fim ao tráfico de escravos. Nesse mesmo ano, é editada a lei da terra. A partir dessa lei era proibido ocupar terras no Brasil. Para possuir terra era necessário comprá-la do governo.
1854: Decreto proíbe o negro de aprender a ler e escrever.
1866: O império determina que os negros que serviam no exército seriam alforriados.
1869: Proibida a venda de escravos debaixo de pregão e com exposição pública. A lei proíbe a venda de casais separados e de pais e filhos.
1871: É editada a lei do ventre livre. Com ela os filhos de escravos seriam libertos, depois de completarem a maioridade.
1882: Morre o abolicionista Luiz Gama. Sua mãe, Luiza Mahin foi um das principais lideranças na Revolta dos Malês, em Salvador.
1883: Primeira libertação coletiva de escravos negros no Brasil.
1884: Abolição da escravatura negra na província do Amazonas.
1885: É editada a Lei do Sexagenário, que liberta os escravos com mais de 65 anos de idade. Segundo dados, a vida útil de um escravo era 15 anos, em média.
1886: O governo proíbe o açoite dos castigos aos escravos.
1888: Promulgada a Lei Áurea, que extingue a escravidão no Brasil. O Brasil é o último a abolir a escravidão do ocidente.
1890: Decreto sobre a imigração veta o ingresso no país de africanos e asiáticos. O ingresso de imigrantes europeus é liberada pelo governo.
1910: João Cândido, o Almirante negro, lidera a revolta da esquadra (Revolta das Chibatas) contra os castigos físicos praticados contra os marinheiros.
1931: Nasce a Frente Negra Brasileira (FNB) que chegou a reunir mais de 100 mil membros, em diversos Estados do país. A organização pleiteava sua transformação em partido político. No ano de 1937, com a instalação do Estado Novo, a FNB é colocada na ilegalidade.
1945: Renasce o Movimento Negro no país. Surge em São Paulo a Associação do Negro Brasileiro, fundada por ex- militantes da FNB. No Rio de Janeiro é organizado o Comitê Democrático Afro-Brasileiro com o objetivo de defender a constituinte, a anistia e o fim do preconceito racial e de cor.
1950: No Rio é aprovada a Lei Afonso Arinos, que condena como contravenção penal a discriminação de raça, cor e religião, também é criado o conselho nacional de mulheres negras.
1969: O governo do general Emílio G. Médici proíbe a publicação de noticias sobre movimento negro e a discriminação racial.
1978: Consolidação, em São Paulo, do MNU Movimento Negro Unificado, que declara o dia 20 de novembro como o dia da consciência negra.
1986: Tombamento da serra da Barriga local onde se desenvolveu o quilombo dos palmares, a gaúcha Deise Nunes de Souza é coroada Miss Brasil é a primeira Miss Brasil negra.
http://www.geledes.org.br/esquecer-jamais/179-esquecer-jamais/14716-a-historia-da-escravidao-negra-no-brasil 

Terceiro Domingo da Quaresma (Ano A - 2014)

Adoremos a Deus em espírito e verdade, ação e fidelidade!
No terceiro domingo da quaresma, somos convidados a descobrir a presença de Jesus no meio de nós. Ele vem ao nosso encontro como pedinte e necessitado, desce às profundezas da condição humana, derruba os muros que separam, relativiza as ideologias religiosas, liberta de uma rotina da dependência e desperta nossa sede de viver. O vida é dom de Deus e não conhece limites nem fronteiras, diversamente do poço de Jacó, que cava divisões aparentemente insuperáveis.
No evangelho, João nos apresenta Jesus como sacramento vivo de um Deus que vem ao nosso encontro. Ele se aproxima cansado, sedento, necessitado, pedinte. O mesmo Deus que, na travessia do deserto, fez brotar água da rocha, aparece percorrendo nossas estradas e pedindo água. E assim o faz para suscitar uma profunda troca de dons, para ajudar-nos a descobrir nossas próprias sedes, nosso Desejo mais profundo: conhecê-lo e viver plenamente. “Dá-me desta Água Viva!...”
Como aquela mulher da Samaria, às vezes imaginamo-noss poderosos e entregamo-nos às regras e doutrinas, tradições e leis, e não esperamos nada de novo. Cavamos poços e inventamos muros que separam povos, religiões e culturas, e esquecemos nossa própria Sede, aquilo que nos falta. Fazemos de conta que as instituições que criamos nos bastam, e que fora delas não há vida possível e desejável. “Tu não tens balde e o poço é fundo... Como vais tirar esta água viva?”
Então, Jesus aparece e entra na nossa vida para nos lembrar que as religiões e culturas, as tradições e leis não têm condições de saciar as mais profundas sedes humanas. A função da religião não é estancar, mas manter viva aquela Sede que dinamiza a vida do ser humano, que convida a trilhar caminhos não conhecidos, que faz descobrir novas possibilidades de organizar o mundo e a sociedade, que revela possibilidades alternativas de comunhão e solidariedade entre os povos.
Como a samaritana, nos também fazemos alianças e buscamos muletas – mais que cinco! – que  sustentem nossos interesses estreitos e esgoístas: a pátria, a raça, a religião, a igreja, o partido, o livre mercado... Acreditamos cegamente que eles nos ajudam a crer de modo correto e a viver com segurança. “Os nossos pais adoraram Deus sobre este monte, mas vocês dizem que é em Jerusalém que se deve adorá-lo...” Fora disso, no máximo, ensaiamos uma pobre oração pelos que sofrem...
Precisamos compreender que Deus procura verdadeiros adoradores, pessoas que o adorem em espírito e verdade, ou melhor, em ação e fidelidade. Estes são os discípulos e discípulas que, como o Mestre, têm como alimento o desejo de fazer a vontade de Deus, participam da sua obra e a completam: produzem vida abundante para seu povo, geram mais solidariedade que divisão, exercitam mais acolhida que a doutrina, propõem mais ações que palavras.
Com seu jeito de se aproximar e sua acolhida sem limites, Jesus leva aquela mulher da Samaria a descobrir a própria verdade. E então ela deixa de repetir mecanicamente as ações determinadas pelo hábito, pela cultura e pela condição social e se torna “uma fonte de água que jorra para a vida eterna”. Ela deixa o balde e corre à cidade para anunciar: “Venham  ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não seria ele o Messias?” Aquela que era desprezada renasce como missionária!
Como anuncia Paulo, por meio de Jesus Cristo estamos em paz com Deus e dinamizados pela esperança. Esta esperança não engana, pois o amor de Deus já nos envolve e guia, mediante o Espírito Santo. E isso não porque já estejamos plenamente convertidos ou isentos de pecado. Deus demonstra seu amor porque se entrega por nós sem se importar com o fato de ainda sermos pecadores e nos comportarmos como inimigos do seu Evangelho. Eis a razão de nossa esperança!
Jesus, peregrino no meio-dia da história, água que sacia nossa sede! Tu és Senhor e ages como irmão, és semeador que convida à colheita, és profeta que desperta nossa profecia... Como a mulher da Samaria, estamos demasiadamente seguros das doutrinas que recebemos da tradição... Toca com tua mão, ou com o teu chicote, as pedras das nossas instituições e a crosta do nosso coração, e liberta a água viva e livre que elas aprisionam. E faz com que todos os que viemos a este encontro contigo experimentemos tua santa liberdade e nos tornemos testemunhas intrépidas de uma religião que não se compraz na simples repetição de doutrinas  e na celebração de ritos. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Êxodo 17,3-7 * Salmo 94 (95) * Carta aos Romanos 5,1-2.5-8 * João 4,5-42)

quarta-feira, 19 de março de 2014

Queimados, uma memoria

Insurreição do Queimado, um marco da luta pela liberdade
Jaqueline Freitas
O dia 19 de março de 1849 é um dos mais significativos do calendário da cultura negra. Nesta data, aconteceu a Insurreição do Queimado, esse emblemático episódio da história afro-brasileira. E apesar dos escassos registros sobre o assunto, a data é lembrada e celebrada, principalmente, no Estado do Espírito Santo, onde ocorreu o grito de liberdade dos negros escravizados.
Principal movimento contra a escravidão ocorrido no Espírito Santo, a Insurreição do Queimado é resultado da construção de um processo político de conquistas e foi um marco na história da negritude capixaba. Contam os pesquisadores que a revolta nasceu de uma promessa não concretizada de liberdade, feita pelo frei italiano Gregório José Maria de Bene aos escravos da localidade de São José do Queimado, hoje distrito do município de Serra.
Tido como defensor dos ideais de liberdade, o missionário tinha interesses políticos em construir uma igreja na região, e teria garantido a negociação da alforria com os donos de fazendas, em troca da construção do templo pelos escravos. Há relatos de que o frei não teria garantido nada, e, sim, prometido interceder junto aos fazendeiros para obter a concessão da alforria. Consta, ainda, que ele realmente não admitia a escravidão e que teria estabelecido uma estreita ligação com os escravos, o que preocupava e contrariava quem usava a mão de obra escrava para enriquecer.
O fato é que o não cumprimento do que fora interpretado como uma promessa deflagrou uma rebelião. Relatos de descendentes dos sobreviventes apontam que mais de 300 homens, mulheres e até crianças manifestaram o inconformismo – afinal, a igreja fora entregue pronta antes do dia de São José, conforme combinado, e resultara de muito tempo de árduo trabalho. Conta-se, também, que o templo foi construído com pedras divididas por tamanhos, e carregadas por longas distâncias e subidas íngremes; as pedras pequenas, do tamanho de um punho, eram destinadas às crianças, algumas com apenas seis anos de idade.
O movimento foi caracterizado por extrema violência, especialmente na contenção, por parte da Polícia da Província, e durou cinco dias, até a prisão de seu principal líder, Eliziário Rangel. A maioria dos escravos foi brutalmente assassinada e seus corpos jogados na hoje chamada “Lagoa das Almas”.
Alguns sobreviventes foram para o município de Cariacica, onde fundaram o Quilombo de Rosa d’ Água. Além de Eliziário, os outros líderes foram Francisco de São José (o “Chico Prego”) e João Monteiro (o “João da Viúva”). Chico Prego e João da Viúva foram enforcados, mas Eliziário protagonizou uma lendária fuga – saiu pela porta da cela deixada aberta –, no que foi considerado pelos escravos como um milagre atribuído a Nossa Senhora da Penha, padroeira do Espírito Santo. Na verdade, o carcereiro, penalizado com os maus tratos impostos aos negros, confessou, depois, ter facilitado a fuga.
Elisiário tornou-se uma lenda para os negros que sonhavam com a liberdade, e foi alcunhado como o “Zumbi da Serra”, em alusão ao herói do Quilombo dos Palmares. Chico Prego ganhou estátua em uma praça no município da Serra, e seu nome batiza a Lei Municipal de Incentivo à Cultura.

segunda-feira, 17 de março de 2014

O desafio da colegialidade

O desafio de uma Igreja colegial

A Arquidiocese de Belo Horizonte está promovendo, ao longo do ano 2014, uma nova experiência de formação permanente. Este programa tem como interlocutor os cristãos em geral, especialmente as lideranças ecleiais, e é realizado através de uma série de “Semanas Tamáticas”, subdivididas em palestras e seminários com temas mais específicos.

A primeira destas Semanas Temáticas aconteceu nos dias 9 a 15 do mês em curso e teve como tema a Colegialidade.  Dentro da programação da Semana, no dia 13 de março foi promovido um Seminário sobre “rede de comunidades com o protagonismo dos leigos”, com a presença e a intervenção sempre apreciada de Dm JoséMaria Pires, arcebispo emérito de João Pessoa e vigário paroquial na zona rural da Arquidiocese de Belo Horizonte.

O princípio da colegialidade seria um dos sinais dos tempos, ou melhor, uma das exigências que interpelam mais fortemente a Igreja pós-conciliar? Certamente a colegialidade não se realiza por decreto, nem por simples voluntarismo; ela tem seu processo e seu tempo, seu calendário. Mas tem também seus instrumentos importantes e mais representativos: o sínodo dos bispos, as conferências episcopais,  as assembléias diocesanas, as comissões e conselhos paroquiais, etc.
Por isso, no mesmo dia em que acontecia este Seminário, eu estava reunido, pela segunda vez nestes poucos meses, com o Conselho de Pastoral da Area Pastoral Nossa Senhora Aparecida, uma pró-paróquia confiada aos cuidados da nossa Comunidade MSF em Belo Horizonte. Trata-se de uma Comunidade eclesial com mais de 20 anos de existência, cuja população pertence às classes populares, e que está sendo desmembrada da Paróquia Santa Maria Mãe da Misericórdia.
É nas pequenas parcelas do povo de Deus como esta, e não à margem delas ou apesar delas, que a Igreja se faz carne, com todas as ambiguidades e possibilidades inerentes aos grupos humanos primários. Na reunião do último dia 13 mais uma vez vieram à tona as tensões internas entre grupos e lideranças, assim como entre a vida litúrgica voltada para dentro e a necessidade de sair em missão, de ir ao encontro dos conjuntos habitacionais construídos na área e habitados por uma multidão que ignora a vida eclesial e que é ignorada pela Igreja.
Assim, mesmo que discretamente suspiremos por uma estrutura eclesial na qual tudo funcione bem e as tensões sejam mínimas, os Conselhos de Pastoral – o princípio da colegialidade! – continuam sendo um espaço e uma oportunidade privilegiada de aprendizado e de exercício da cidadania e da corresponsabilidade eclesial. Com todos os seus limites. Mas, do ponto de vista da eclesiologia conciliar, é melhor trabalhar com um Conselho precário que com conselho nenhum...

Itacir Brassiani msf

domingo, 16 de março de 2014

Reflexões do Pe. Ceolin (9)

Os alicerces ou pilares da Comunidade religiosa

Quando e por quê uma Comunidade religiosa começa a ruir? A solidez de uma Comunidade religiosa reside nas mesmas características das primeiras comunidades cristãs: perseverar na doutrina dos apóstolos; frequentar o templo e participar das orações; partilhar os bens; amar-se e respeitar-se reciprocamente.
Perseverar na doutrina dos apóstolos significa manter-se como comunidade a serviço do Reino de Deus. E isso implica, entre outras coisas: perseverar no seguimento de Jesus Cristo; manter-se fiel à finalidade e ao carisma da Congregação; cultivar a espiritualidade específica; mentar-se no espírito, nos objetivos e ensinamentos do Fundador; planejar a vida e a ação apostólica da Comunidade.
Frequentar o templo e participar das orações significa constituir comunidades de fé e de oração, ser uma comunidade litúrgica, eucarística, que se alimenta na fé e na oração. Os primeiros cristãos reuniam-se diariamente para a fração do pão em memória do Senhor, a Eucaristia; para ouvir os ensinamentos dos apóstolos, a Palavra; para rezar uns pelos outros e pelos apóstolos; para louvar a Deus com alegria e simplicidade de coração; para partilhar a experiência de Deus e buscar conjuntamente sua vontade. O que isso sugere às comunidades religiosas?
Partilhar os bens significa pôr em comum tudo o que temos e tudo aquilo que viermos a receber. E mais: por-se a serviço, ser disponível, desacomodar-se; assumir responsavelmente as tarefas que nos cabem; aprimorar dons, capacidades e talentos; capacitar-se e atualizar-se em vista da missão que recebemos ou para a qual poderemos ser convocados.
Amar-se e respeitar-se reciprocamente significa construir comunidades de amor e respeito mútuo. E isso implicana vida de comunhão fraterna, que, em grande parte, depende dos três pilares anteriores. A superação do individualismo auto-suficiente desrespeitoso e desleal, do isolamento indiferente ou agressivo, é favorecida pela perseverança na doutrina, pela participação nas orações e eventos comunitários, pela alegre partilha dos bens, das responsabilidades e da vida.
Quando é que uma Comunidade ou uma Província começa a desabar? Em muitos casos, um barco começa a ir a pique em razão de pequenas avarias, de rachaduras insignificantes. Pequenos descuidos e desleixos podem levar a grandes catástrofes... Uma casa pode ruir por causa de pequenas infiltraçõesd de água nos alicerces...
Por onde começa a maioria das disistências da vida consagrada? Seria verdade que alguns nem mesmo entraram nela de fato? Não quero acusar nem duvidar da sinceridade de ninguém. “Antes, arranca a trave que está no teu olho... Deixa que os outros apontem o cisco que está no teu próprio olho...”

Pe. Rodolpho Ceolin msf

(Meditação escrita pelo Pe. Ceolin provavelmente no final dos anos 90 e não publicada. Faz parte de uma série de manuscritos que ele me confiou amavelmente nos últimos meses da sua vida)

sábado, 15 de março de 2014

Lembrando o Pe. Lourival Bergmann msf

Amanhã, dia 16 de março, completaremos cinco anos sem a presença física do nosso amigo e coirmão Lourival. Nem parece, pois dele a gente não esquece, e parece que daqui a pouco ele chega, prepara uma feijoada, assa uma carne, faz uma rosca, prepara um chimarrão ou abre uma geladinha... Tudo para que a conversa corra solta e a vida seja mais vida. Faço minha homenagem a esse amigo do peito reproduzindo aqui as últimas palavras que escrevi a ele, seis dias antes do falecimento. Deus seja louvado pela (breve e intensa) vida do Lori!

Estimado Lourival, amigo e irmão!
Hoje de manhã recebi um breve e-mail do Donato informando dos seus problemas de saúde e da sua hospitalização. Ele também escreveu que você está consciente da gravidade da situação e continua sereno.
Você sabe que em situações como essa nos faltam as palavras, e mesmo que as tenhamos elas não servem para nada. Mas quero que as palavras me ajudem a dizer que acompanho você de perto nesse momento difícil. Você pode contar com minha prece e minha estima.
Gostaria de que você pudesse enfrentar as terapias que forem necessárias com serenidade e confiança. Há mais de 30 anos você entregou sua vida a Deus. Renova essa oferta nesse momento crucial, mas agora ajuntando tudo o que você fez de bom nessa longa caminhada.
Queria lhe dizer ainda que você é um dos melhores coirmãos que eu conheço. Apesar das nossas diferenças, ou talvez por causa delas, eu gosto muito de você. Foi muito bom compartilhar a vida com você em Santo Ângelo e em Passo Fundo. Obrigado pelo bom companheiro que você é e pelo seu jeito de tornar a vida mais gostosa. Poucas pessoas têm esse precioso dom.
Caro Lourival: no silêncio pesado da UTI, nessas horas que não passam, na espera da bênção da recuperação ou na preparação para o encontro definitivo, reze com o Salmo 23: “O Senhor é meu pastor. Nada me falta. Ele me guia por bons caminhos por causa do seu nome. Embora eu caminhe por um vale tenebroso, nenhum mal temerei, pois junto de mim estás; teu bastão e teu cajado me deixam tranquilo. Felicidade e amor me acompanham todos os dias da minha vida. Minha morada é a casa de Javé por dias sem fim.”
Segura na mão de Deus e segue adiante. Você não está sozinho. Muitos estamos com você, embora não possamos estar ali.
Com estima e gratidão por tudo!
Ita
Roma, 10 de março de 2009.

(Veja que escrevi em azul, recordando seu timão!)