quinta-feira, 31 de outubro de 2019

O Evangelho dominical (Pagola) - 03.11.2019


ACREDITAR NO CÉU

Nesta festa cristã de Todos os Santos, quero dizer como entendo e trato de viver alguns aspetos da minha fé na vida eterna. Quem conhece e segue Jesus Cristo entender-me-á.

Acreditar no céu é para mim resistir-me a aceitar que a vida de todos e de cada um de nós é apenas um pequeno parêntesis entre dois imensos vazios. Apoiando-me em Jesus, intuo, pressinto, desejo e creio que Deus está conduzindo para a sua verdadeira plenitude o desejo de vida, de justiça e de paz que se encerra na criação e no coração da humanidade.

Acreditar no céu é para mim rebelar-me com todas as minhas forças a que essa imensa maioria de homens, mulheres e crianças, que só conheceram nesta vida miséria, fome, humilhação e sofrimentos, fique enterrada para sempre no esquecimento. Confiando em Jesus, creio numa vida onde já não haverá pobreza nem dor, ninguém estará triste, ninguém terá que chorar. Por fim poderei ver aos que vêm nas barcas chegar à sua verdadeira pátria.

Acreditar no céu é para mim aproximar-me com esperança a tantas pessoas sem saúde, doentes crônicos, inválidos físicos e psíquicos, pessoas afundadas na depressão e na angústia, cansadas de viver e de lutar. Seguindo Jesus, creio que um dia conhecerão o que é viver com paz e saúde total. Escutarão as palavras do Pai: “Entra para sempre no gozo do teu Senhor.”

Não me resigno a aceitar que Deus seja para sempre um “Deus oculto”, de quem não podemos conhecer jamais o Seu olhar, a Sua ternura e os Seus abraços. Não posso imaginar não me encontrar nunca com Jesus. Não me resigno a que tantos esforços por um mundo mais humano e ditoso se percam no vazio. Quero que um dia os últimos sejam os primeiros e que as prostitutas nos precedam. Quero conhecer aos verdadeiros santos de todas as religiões e de todos os ateísmos, os que viveram amando no anonimato e sem esperar nada.

Um dia poderemos escutar estas incríveis palavras que o Apocalipse coloca na boca de Deus: “Ao que tenha sede, Eu lhe darei de beber grátis da fonte da vida”. Grátis! Sem o merecer. Assim saciará Deus a sede de vida que há em nós.

José Antônio Pagola.
Tradutor: Antônio Manuel Álvarez Perez.

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

ANO C | TEMPO COMUM | SOLENIDADE DE TODOS OS SANTOS | 03.11.2019


A caminho da santidade é pavimentado pelo amor e o serviço!
Hoje a festa é de todos os santos e santas. E esta é a oportunidade para lembrar que a verdadeira santidade se manifesta na vida das pessoas que ousam sair do estreito limite dos seus próprios interesses e se se aproximarem solidariamente dos últimos; que vão aos rincões mais distantes para levar a bandeira da paz; que são movidas por uma insaciável sede de justiça; que choram as dores dos povos de todas as cores, e provam o fel da violência e da perseguição; que transformam a terra pela mansidão. Celebremos a alegria de participar de uma imensa caravana de homens e mulheres que sonharam e viveram desse modo.
A recente canonização da Santa Irmã Dulce dos Pobres não deve nos induzir a esquecer das santas e santos esquecidos, daqueles que não chegaram aos altares e não têm um dia especial ou um nome conhecido, que gastaram a vida anonimamente e cujos milagres não cabem nas estreitas regras canônicas que enquadram os milagres; e até de gente que não rezou pelo nosso catecismo, como Lutero, Martin Luther King, Gandhi, Betinho e tantos outros. Hoje celebramos a memória de todos aqueles que nos antecederam na fé e cujo testemunho mantém a Igreja e a humanidade no caminho certo, apesar das suas ambivalências.
Mas a celebração de todos os santos e santas também não deve nos levar a olhar somente para o passado. É oportunidade e provocação para refletir sobre a vocação fundamental de todos os cristãos. É verdade que a santidade é um caminho estreito e uma vocação exigente, mas isso não significa que seja reservada a alguns grupos especiais de cristãos. Há quase 60 anos o Concílio Vaticano II proclama de forma clara e inequívoca, contra a ideia predominante nas Igrejas, que a santidade não é privilégio dos ministros ordenados e das pessoas consagradas. Muito antes, a história já havia comprovado o que agora é proclamado solenemente.
Na passagem do milênio, o hoje São João Paulo II nos provocava a não contentarmo-nos com pequenas medidas, com voos rasantes e ideais nanicos, e pedia que aspirássemos nada menos e nada mais que à santidade. E este chamado à santidade, que é para todos, precisa se transformar em desejo pessoal e em decisões e ações concretas. Como diz São João, nós somos chamados filhos de Deus e já o somos desde agora, mas somos desafiados a crescer na identificação com Jesus Cristo, a gravar no corpo e na mente as marcas de Jesus Cristo. “Seremos semelhantes a ele...” E isso deve ser mais que um simples sentimento.
Jesus Cristo é o verdadeiro e perfeito santo de Deus e, ao mesmo tempo, o caminho para a santidade. Não há santidade à margem do seguimento de Jesus Cristo, mesmo que tal seguimento seja implícito. Trata-se de refazer o caminho prático trilhado por Jesus: “amar como Jesus amou; sonhar como Jesus sonhou; pensar como Jesus pensou; viver como Jesus viveu; sentir como Jesus sentia...” Este é o caminho para que, no meio ou no fim do dia e no meio ou no fim da vida, sejamos felizes, bem-aventurados, santos. O caminho para santidade, percorrido pelo próprio Jesus Cristo, é pavimentado pelas bem-aventuranças!
A bela mensagem deste trecho do “sermão da montanha” apresenta os sinais que indicam o caminho da santidade. Jesus não fala de oito grupos específicos de pessoas, mas de oito características daqueles que percorrem este caminho. Esta via sagrada começa com a pobreza e termina com a perseguição, que não representa um obstáculo, pois o Reino de Deus é antes de tudo dos pobres e dos perseguidos. A consolação é para os aflitos, a terra é para os mansos, a saciedade é para os famintos, a misericórdia é para os compassivos, a visão de Deus é para os puros e a filiação divina é para os promotores da paz.
Felicidade e santidade não significam ausência de dificuldades, mas realização plena e profunda do ser humano. Mais que perfeição, santidade é perseverança no amor e no serviço solidário. Passa longe do Evangelho uma santidade que se resuma em práticas de piedade e devoções. Está distante da essência humana uma felicidade baseada no sucesso pessoal, indiferente à sorte dos semelhantes. As pessoas que se vestem de branco e trazem palmas nas mãos são aquelas que vieram da grande tribulação, que lavaram suas vestes no sangue do Cordeiro, que encarnaram o Evangelho no mundo e na própria vida.
Deus pai e mãe, fonte de toda santidade. Dá-nos a graça de permanecermos sempre de pé diante do teu Filho, em meio a uma nuvem de testemunhas, rodeados por gente de todas as nações, tribos, raças e línguas. Fica conosco e caminha à nossa frente, para que estejamos sempre prontos a amar e servir. E que a inexplicável alegria em meio às intermináveis lutas seja nossa arma e nosso triunfo. E então estaremos vivendo em comunhão com aqueles que te louvam no céu e na terra. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf

Apocalipse de São João 7,2-14 | Salmo 23 (24)
1ª Carta de São João 3,1-3 | Evangelho de São Mateus 5,1-12

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

O Evangelho dominical (Pagola) - 27.10.2019


QUEM SOU EU PARA JULGAR?

A parábola do fariseu e do publicano geralmente desperta em muitos cristãos uma grande rejeição do fariseu, que se apresenta diante de Deus arrogante e seguro de si mesmo, e uma simpatia espontânea para com o publicano, que humildemente reconhece seu pecado. Mas o relato pode despertar em nós este sentimento: «Agradeço-Te, meu Deus, porque não sou como este fariseu».
Para ouvir corretamente a mensagem da parábola, temos ter em mente que Jesus não pretende criticar os setores fariseus, mas sacudir a consciência de «alguns que presumiam ser homens de bem e desprezavam os outros». Entre estes encontramo-nos, certamente, não poucos católicos dos nossos dias.
A oração do fariseu revela a sua atitude interior: «Oh Deus! Te dou graças porque não sou como os outros». Que tipo de oração é esta de acreditar que é melhor que os outros? Mesmo um fariseu, fiel cumpridor da lei, pode viver numa atitude pervertida. Este homem sente-se justo diante de Deus e, precisamente por isso, se converte em juiz que despreza e condena aos que não são como ele.
O publicano, pelo contrário, só consegue dizer: «Oh Deus! Tem compaixão deste pecador». Este homem reconhece humildemente o seu pecado. Não se pode vangloriar da sua vida. Entrega-se à compaixão de Deus. Não se compara com ninguém. Não julga os outros. Vive verdadeiramente ante si mesmo e ante Deus.
A parábola é uma penetrante crítica que desmascara uma atitude religiosa de engano, que nos permite viver seguros da nossa inocência, enquanto condenamos desde a nossa suposta superioridade moral a todos os que não pensam ou agem como nós.
Circunstâncias históricas e correntes triunfalistas afastadas do evangelho fizeram os católicos especialmente propensos a esta tentação. Por isso, temos de ler a parábola, cada um em atitude autocrítica: por que achamos que somos melhores que os agnósticos? Por que nos sentimos mais perto de Deus do que os não praticantes? O que está no fundo de certas orações pela conversão dos pecadores? O que significa apontar os pecados dos outros sem viver convertendo-nos a Deus?
Em certa ocasião, ante a pergunta de um jornalista, o Papa Francisco fez esta afirmação: “Quem sou eu para julgar um gay?” As suas palavras surpreenderam a quase todos. Aparentemente, ninguém esperava uma resposta tão simples e evangélica de um papa católico. No entanto, essa é a atitude de quem vive em verdade ante Deus.
José Antônio Pagola.
Tradutor: Antônio Manuel Álvarez Perez.

quarta-feira, 23 de outubro de 2019

ANO C | TEMPO COMUM | TRIGÉSIMO DOMINGO | 27.10.2019


Os direitos humanos são apenas para os humanos direitos?
No centro do evangelho de hoje está a questão da correta atitude de quem reza. Jesus nos pede que estejamos atentos ao modo como rezamos, e o faz confrontando a postura de dois personagens bem conhecidos: o fariseu, cioso de sua superioridade e perfeição, ostensiva e exteriormente piedoso; o publicano, cobrador de impostos, impuro e execrável aos olhos dos judeus nacionalistas, excluído da vida social e religiosa que gira em torno do templo. São caricaturas que podem nos ajudar a avaliar nossa postura.
Desejoso de ser visto e reconhecido, o fariseu reza de pé, e olha os demais de cima para baixo. Sua oração é uma espécie de autoelogio, e vem marcada pelo desprezo e pela condenação dos demais, por ele considerados inferiores e pecadores. É como se Deus fosse obrigado a agradecer o fariseu por ele ser bom e correto. O publicano não entra no templo e, sem coragem até de levantar os olhos, bate no peito reconhecendo sua condição ambivalente e pedindo que Deus se compadeça dele. E estas atitudes estão longe de ser um problema somente do judaísmo, nem apenas dos primeiros cristãos!
A ostentação e a pretensão de superioridade, sempre acompanhadas de uma agressiva discriminação, contaminaram também os cristãos e, infelizmente, resistem, como erva daninha difícil de erradicar, até nossos dias. E, o que é pior, quase sempre vêm revestidas com a atraente roupagem da piedade. Mas, desde o mito bíblico de Abel e Caim, sabemos que Deus que não trata todas as pessoas do mesmo modo. “Ele não é parcial em prejuízo do pobres, mas escuta, sim, as súplicas dos oprimidos; jamais despreza a súplica do órfão, nem da viúva, quando desabafa suas mágoas”, lembra o livro do Eclesiástico.
Por outro lado, precisamos lembrar que, por mais que nos custe admitir, a humanidade e o país estão divididos. Não é necessário viajar o mundo para perceber que, em termos gerais, os países do Norte vivem na abundância de bens e oportunidades, enquanto que os países do Sul são condenados a digerir a miséria à qual a secular expropriação os condenou. E existem também divisões entre os que se dizem “homens de bem” e os “outros”. Ultimamente, há quem repita, em alto e bom tom, que só pode reivindicar os direitos humanos quem for humano direito, ou até, segundo os mais exaltados, humano de direita.
Será que esta divisão nefasta e nada evangélica está presente também no interior das nossas igrejas? Infelizmente, parece que sim! Basta dar uma olhada atenta à primazia conferida às Igrejas europeias no confronto com as Igrejas do Terceiro Mundo. Temos também os conflitos que rondaram todo o magnífico e corajoso Sínodo para a Amazônia, sem esquecer aquela profunda e dolorida divisão entre as próprias comunidades cristãs: ortodoxos e romanos, católicos e protestantes, igrejas clássicas e igrejas pentecostais, e assim por diante. Fariseus versus publicanos!
A humanidade tem como vocação ser uma só família, e essa é também a vontade de Deus. A interdependência dos povos e nações é já um fato objetivo, mas precisa se tornar um valor subjetivo, garantido ética e institucionalmente. O desafio é transformar essa solidariedade objetiva e estrutural num valor buscado e assegurado para todos. A dignidade da pessoa humana independe da sua origem étnica, da pertença religiosa, da nacionalidade, da convicção política, da identidade sexual, da instrução. Estas diferenças não dividem, nem hierarquizam; apenas distinguem, complementam e enriquecem.
Ao ouvir a prece da pessoa humilde e discriminada, Deus resgata sua dignidade e a verdadeira igualdade entre todos os seres humanos. A este propósito, é impressionante o testemunho de Paulo. Ele combate com tenacidade a pretensão de superioridade dos judeus e dos novos cristãos de origem judaica frente aos cristãos vindos do paganismo. Quando diz, em forma de testamento, que combateu o bom combate, completou a corrida e guardou a fé, está se referindo à sua convicção de que Cristo é nossa paz, pois de dois povos fez um só povo, derrubando o muro da inimizade que os separava (cf. Ef 2,14).
Deus Pai e Mãe, tu fazes a prece do humilde atravessar as nuvens e escutas atenta e cordialmente o clamor dos oprimidos. Então, despoja-nos de todo orgulho arrogante e de toda competição infantil. Ajuda-nos a anunciar teu Evangelho integralmente e a fazer resplandecer, pelo anúncio e pelo testemunho, a boa notícia e a boa convivência que ele nos pede. Ajuda-nos a vislumbrar em Jesus teu rosto compassivo e misericordioso, e anunciá-lo a todos. E isso até que a humanidade seja de fato uma só família, na qual todos os membros são queridos e respeitados, para além de toda e qualquer diferença. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Livro do Eclsiástico 31,15-22 | Salmo 33 (34)
Segunda Carta de Paulo A Timóteo 4,6-8.16-18  | Evangelho de São Lucas 18,9-14

domingo, 20 de outubro de 2019

Pacto das Catacumbas pela Casa Comum


Por uma Igreja com rosto amazônico, pobre e servidora, profética e samaritana
(Pacto das Catacumbas pela Casa Comum)

Nós, participantes do Sínodo Pan-amazônico, partilhamos a alegria de habitar em meio a numerosos povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos, migrantes, comunidades na periferia das cidades desse imenso território do Planeta. Com eles temos experimentado a força do Evangelho que atua nos pequenos. O encontro com esses povos nos interpela e nos convida a uma vida mais simples de partilha e gratuidade.
Marcados pela escuta dos seus clamores e lágrimas, acolhemos de coração as palavras do Papa Francisco: “Muitos irmãos e irmãs na Amazônia carregam cruzes pesadas e aguardam pela consolação libertadora do Evangelho, pela carícia de amor da Igreja. Por eles, com eles, caminhemos juntos”[1].
Evocamos com gratidão aqueles bispos que, nas Catacumbas de Santa Domitila, ao término do Concílio Vaticano II, firmaram o Pacto por uma Igreja servidora e pobre[2].  Recordamos com veneração todos os mártires membros das comunidades eclesiais de base, de pastorais e movimentos populares; lideranças indígenas, missionárias e missionários, leigas e leigos, padres e bispos, que derramaram seu sangue, por causa desta opção pelos pobres, por defender a vida e lutar pela salvaguarda da nossa Casa Comum[3]. À gratidão por seu heroísmo unimos nossa decisão de continuar sua luta com firmeza e coragem. É um sentimento de urgência que se impõe ante as agressões que hoje devastam o território amazônico, ameaçado pela violência de um sistema econômico predatório e consumista.
Diante da Trindade Santa, de nossas Igrejas particulares, das Igrejas da América Latina e do Caribe e daquelas que nos são solidárias na África, Ásia, Oceania, Europa e no norte do continente americano, aos pés dos apóstolos Pedro e Paulo e da multidão dos mártires de Roma, da América Latina e em especial da nossa Amazônia, em profunda comunhão com o sucessor de Pedro, invocamos o Espírito Santo, e nos comprometemos pessoal e comunitariamente com o que se segue:
1.       Assumir, diante da extrema ameaça do aquecimento global e da exaustão dos recursos naturais, o compromisso de defender em nossos territórios e com nossas atitudes a floresta amazônica em pé. Dela vêm as dádivas das águas para grande parte do território sul-americano, a contribuição para o ciclo do carbono e regulação do clima global, uma incalculável biodiversidade e rica sócio diversidade para a humanidade e a Terra inteira.
2.      Reconhecer que não somos donos da mãe terra, mas seus filhos e filhas, formados do pó da terra (Gn 2, 7-8)[4], hóspedes e peregrinos (1 Pd 1, 17b e 1 Pd 2, 11)[5], chamados a ser seus zelosos cuidadores e cuidadoras (Gn 1, 26)[6]. Para tanto, comprometemo-nos com uma ecologia integral, na qual tudo está interligado, o gênero humano e toda a criação porque a totalidade dos seres são filhas e filhos da terra e sobre eles paira o Espírito de Deus (Gn 1, 2).
3.      Acolher e renovar a cada dia a aliança de Deus com todo o criado: De minha parte, vou estabelecer minha aliança convosco e com vossa descendência, com todos os seres vivos que estão convosco, aves, animais domésticos e selvagens, enfim, com todos os animais da terra que convosco saíram da arca (Gn 9, 9-10 e Gn 9, 12-17[7]).
4.      Renovar em nossas igrejas a opção preferencial pelos pobres, em especial pelos povos originários, e junto com eles garantir o direito de serem protagonistas na sociedade e na Igreja. Ajudá-los a preservar suas terras, culturas, línguas, histórias, identidades e espiritualidades. Crescer na consciência de que estas devem ser respeitadas local e globalmente e, consequentemente favorecer, por todos os meios ao nosso alcance, que sejam acolhidas em pé de igualdade no concerto mundial dos demais povos e culturas. 
5.      Abandonar, como decorrência, em nossas paróquias, dioceses e grupos toda espécie de mentalidade e postura colonialista, acolhendo e valorizando a diversidade cultural, étnica e linguística num diálogo respeitoso com todas as tradições espirituais.
6.      Denunciar todas as formas de violência e agressão à autonomia e direitos dos povos originários, à sua identidade, aos seus territórios e às suas formas de vida.
7.      Anunciar a novidade libertadora do evangelho de Jesus Cristo, na acolhida ao outro e ao diferente, como sucedeu com Pedro na casa de Cornélio: “Vós bem sabeis que a um judeu é proibido relacionar-se com um estrangeiro ou entrar em sua casa. Ora, Deus me mostrou que não se deve dizer que algum homem é profano ou impuro” (At 10, 28)[8].
8.      Caminhar ecumenicamente com outras comunidades cristãs no anúncio inculturado e libertador do evangelho, e com as outras religiões e pessoas de boa vontade, na solidariedade com os povos originários, com os pobres e pequenos, na defesa dos seus direitos e na preservação da Casa Comum
9.      Instaurar em nossas igrejas particulares um estilo de vida sinodal, onde representantes dos povos originários, missionários e missionárias, leigos e leigas, em razão do seu batismo, e em comunhão com seus pastores, tenham voz e voto nas assembleias diocesanas, nos conselhos pastorais e paroquiais, enfim em tudo que lhes compete no governo das comunidades.
10.    Empenhar-nos no urgente reconhecimento dos ministérios eclesiais já existentes nas comunidades, exercidos por agentes de pastoral, catequistas indígenas, ministras e ministros e da Palavra, valorizando em especial seu cuidado em relação aos mais vulneráveis e excluídos.
11.     Tornar efetiva nas comunidades a nós confiadas a passagem de uma pastoral de visita a uma pastoral de presença, assegurando que o direito à Mesa da Palavra e à Mesa de Eucaristia se torne efetivo em todas as comunidades.
12.    Reconhecer os serviços e a real diaconia do grande número de mulheres que hoje dirigem comunidades na Amazônia e procurar consolidá-los com um ministério adequado de mulheres dirigentes de comunidade.
13.    Buscar novos caminhos de ação pastoral nas cidades onde atuamos, com protagonismo de leigos e jovens, com atenção às suas periferias e aos migrantes, aos trabalhadores e aos desempregados, aos estudantes, educadores, pesquisadores e ao mundo da cultura e da comunicação[9].
14.   Assumir diante da avalanche do consumismo um estilo de vida alegremente sóbrio, simples e solidário com os que pouco ou nada tem; reduzir a produção de lixo e o uso de plásticos, favorecer a produção e comercialização de produtos agroecológicos, utilizar sempre que possível o transporte público.
15.    Colocar-nos ao lado dos que são perseguidos pelo profético serviço de denúncia e reparação de injustiças, de defesa da terra e dos direitos dos pequenos, de acolhida e apoio a migrantes e refugiados. Cultivar amizades verdadeiras com os pobres, visitar as pessoas mais simples e os enfermos, exercitando o ministério da escuta, da consolação e do apoio que trazem alento e renovam a esperança.
Conscientes de nossas fragilidades, de nossa pobreza e pequenez diante de tão grandes e graves desafios, confiamo-nos à oração da Igreja. Que sobretudo nossas Comunidades Eclesiais nos socorram com sua intercessão, afeto no Senhor e, sempre que necessário, com a caridade da correção fraterna.
Acolhemos de coração aberto o convite do Cardeal Hummes para nos deixarmos guiar pelo Espírito Santo nestes dias do Sínodo e no retorno às nossas igrejas:
“Deixem-se envolver no manto da Mãe de Deus e Rainha da Amazônia. Não deixemos que nos vença a autorreferencialidade, mas sim a misericórdia diante do grito dos pobres e da terra. Será necessária muita oração, meditação e discernimento, além de uma prática concreta de comunhão eclesial e espírito sinodal. Este sínodo é como uma mesa que Deus preparou para os seus pobres e nos pede a nós que sejamos aqueles que servem à mesa[10].
Celebramos esta Eucaristia do Pacto como “um ato de amor cósmico. “Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma igreja de aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o altar do mundo”. A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a criação. O mundo saído das mãos de Deus, volta a Ele em feliz e plena adoração: no Pão Eucarístico “a criação propende para a divinização, para as santas núpcias, para a unificação com o próprio Criador”. “Por isso, a Eucaristia é também fonte de luz e motivação para as nossas preocupações pelo meio ambiente, e leva-nos a ser guardiões da criação inteira”.[11]

Catacumbas de Santa Domitila
Roma, 20 de outubro de 2019


[1] Homília do Papa Francisco na Missa de abertura do Sínodo, Roma 06-10-2019
[2] Pacto por uma Igreja servidora e pobre. Catacumbas de Santa Domitila, Roma 16 de novembro de 1965. O Pacto assinado por 42 concelebrantes, recebeu em seguida a adesão de cerca de 500 padres conciliares.
[3] DAp 98, 140, 275, 383, 396.
[4]7 Então o SENHOR Deus formou o ser humano com o pó do solo, soprou-lhe nas narinas o sopro da vida e Ele tornou-se um ser vivente. 8 Depois, o Senhor Deus plantou um jardim em Éden, a oriente, e pôs ali o homem que havia formado”.
[5] “... vivei no temor o tempo de vossa permanência como migrantes” (1 Pd 1, 17b) e “Amados, exorto-vos, como peregrinos e forasteiros...” (1 Pd, 2, 11).
[6]26 Deus disse: ‘Façamos o ser humano à nossa imagem e segundo nossa semelhança, para que domine [cuide] sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todos os animais selvagens e todos os animais que
se movem pelo chão’. 27 Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou”.
[7] 12 E Deus disse: “Eis o sinal da aliança que estabeleço entre mim e vós e todos os seres vivos que estão convosco, por todas as gerações futuras. 13 Ponho meu arco nas nuvens, como sinal de aliança entre mim e a terra. 14 Quando eu cobrir de nuvens a terra, aparecerá o arco-íris nas nuvens. 15 Então me lembrarei de minha aliança convosco e com todas as espécies de seres vivos, e as águas não se tornarão mais um dilúvio para destruir toda carne. 16 Quando o arco-íris estiver nas nuvens, eu o contemplarei como recordação da aliança eterna entre Deus e todas as espécies de seres vivos sobre a terra”. 17 Deus disse a Noé: “Este é o sinal da aliança que estabeleço entre mim e toda a carne sobre a terra”.
[8] 4 Então, Pedro tomou a palavra: “De fato”, disse, “estou compreendendo que Deus não faz discriminação entre as pessoas. 35 Pelo contrário, ele aceita quem o teme e pratica a justiça, qualquer que seja a nação a que pertença (At 10, 34-35).
[9] Cfr DSD 302.1.3
[10] HUMMES, Card. Cláudio, 1ª. Congregação Geral do Sínodo Amazônico, Relação introdutória do Relator Geral, Roma, 07-10-2019 (BO 792).
[11] Laudato Si’, 237.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial de Oração pelas Missões – 20.10.2009


Batizados e enviados: a Igreja de Cristo em missão no mundo

Queridos irmãos e irmãs!
Pedi a toda a Igreja que vivesse um tempo extraordinário de missionariedade no mês de outubro de 2019, para comemorar o centenário da promulgação da Carta apostólica Maximum illud, do Papa Bento XV (30 de novembro de 1919). A clarividência profética da sua proposta apostólica confirmou-me como é importante, ainda hoje, renovar o compromisso missionário da Igreja, potenciar evangelicamente a sua missão de anunciar e levar ao mundo a salvação de Jesus Cristo, morto e ressuscitado.
O título desta mensagem – «batizados e enviados: a Igreja de Cristo em missão no mundo» – é o mesmo do Mês Missionário. A celebração deste mês ajudar-nos-á, em primeiro lugar, a reencontrar o sentido missionário da nossa adesão de fé a Jesus Cristo, fé recebida como dom gratuito no Batismo. O ato, pelo qual somos feitos filhos de Deus, sempre é eclesial, nunca individual: da comunhão com Deus, Pai e Filho e Espírito Santo, nasce uma vida nova partilhada com muitos outros irmãos e irmãs. E esta vida divina não é um produto para vender, mas uma riqueza para dar, comunicar, anunciar: eis o sentido da missão. Recebemos gratuitamente este dom, e gratuitamente o partilhamos (cf. Mt 10, 8), sem excluir ninguém. Deus quer que todos os homens sejam salvos, chegando ao conhecimento da verdade e à experiência da sua misericórdia por meio da Igreja, sacramento universal da salvação (cf. 1 Tm 2, 4; 3, 15; Lumen gentium, 48).
A Igreja está em missão no mundo: a fé em Jesus Cristo dá-nos a justa dimensão de todas as coisas, fazendo-nos ver o mundo com os olhos e o coração de Deus; a esperança abre-nos aos horizontes eternos da vida divina, de que verdadeiramente participamos; a caridade, que antegozamos nos sacramentos e no amor fraterno, impele-nos até aos confins da terra (cf. Miq 5, 3; Mt 28, 19; At 1, 8; Rm 10, 18). Uma Igreja em saída até aos extremos confins requer constante e permanente conversão missionária. Quantos santos, quantas mulheres e homens de fé nos dão testemunho, mostrando como possível e praticável esta abertura ilimitada, esta saída misericordiosa ditada pelo impulso urgente do amor e da sua lógica intrínseca de dom, sacrifício e gratuidade (cf. 2 Cor 5, 14-21)!
Sê homem de Deus, que anuncia Deus: este mandato toca-nos de perto. Eu sou sempre uma missão; tu és sempre uma missão; cada batizada e batizado é uma missão. Quem ama, põe-se em movimento, sente-se impelido para fora de si mesmo: é atraído e atrai; dá-se ao outro e tece relações que geram vida. Para o amor de Deus, ninguém é inútil nem insignificante. Cada um de nós é uma missão no mundo, porque é fruto do amor de Deus. Ainda que meu pai e minha mãe traíssem o amor com a mentira, o ódio e a infidelidade, Deus nunca Se subtrai ao dom da vida e, desde sempre, deu como destino a cada um dos seus filhos a própria vida divina e eterna (cf. Ef 1, 3-6).
Esta vida é-nos comunicada no Batismo, que nos dá a fé em Jesus Cristo, vencedor do pecado e da morte, regenera à imagem e semelhança de Deus e insere no Corpo de Cristo, que é a Igreja. Por conseguinte, neste sentido, o Batismo é verdadeiramente necessário para a salvação, pois garante-nos que somos filhos e filhas, sempre e em toda parte: jamais seremos órfãos, estrangeiros ou escravos na casa do Pai. Aquilo que, no cristão, é realidade sacramental – com a sua plenitude na Eucaristia –, permanece vocação e destino para todo o homem e mulher à espera de conversão e salvação. Com efeito, o Batismo é promessa realizada do dom divino, que torna o ser humano filho no Filho. Somos filhos dos nossos pais naturais, mas, no Batismo, é-nos dada a paternidade primordial e a verdadeira maternidade: não pode ter Deus como Pai quem não tem a Igreja como mãe.
Assim, a nossa missão radica-se na paternidade de Deus e na maternidade da Igreja, porque é inerente ao Batismo o envio expresso por Jesus no mandato pascal: como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós, cheios de Espírito Santo para a reconciliação do mundo (cf. Jo 20, 19-23; Mt 28, 16-20). Este envio incumbe ao cristão, para que a ninguém falte o anúncio da sua vocação a filho adotivo, a certeza da sua dignidade pessoal e do valor intrínseco de cada vida humana desde a concepção até à sua morte natural. O secularismo difuso, quando se torna rejeição positiva e cultural da paternidade ativa de Deus na nossa história, impede toda e qualquer fraternidade universal autêntica, que se manifesta no respeito mútuo pela vida de cada um. Sem o Deus de Jesus Cristo, toda a diferença fica reduzida a ameaça infernal, tornando impossível qualquer aceitação fraterna e unidade fecunda do género humano.
O destino universal da salvação, oferecida por Deus em Jesus Cristo, levou Bento XV a exigir a superação de todo o fechamento nacionalista e etnocêntrico, de toda a mistura do anúncio do Evangelho com os interesses económicos e militares das potências coloniais. Na sua Carta apostólica Maximum illud, o Papa lembrava que a universalidade divina da missão da Igreja exige o abandono duma pertença exclusivista à própria pátria e à própria etnia. A abertura da cultura e da comunidade à novidade salvífica de Jesus Cristo requer a superação de toda a indevida introversão étnica e eclesial.
Também hoje, a Igreja continua a necessitar de homens e mulheres que, em virtude do seu Batismo, respondam generosamente à chamada para sair da sua própria casa, da sua família, da sua pátria, da sua própria língua, da sua Igreja local. São enviados aos gentios, ao mundo ainda não transfigurado pelos sacramentos de Jesus Cristo e da sua Igreja santa. Anunciando a Palavra de Deus, testemunhando o Evangelho e celebrando a vida do Espírito, chamam à conversão, batizam e oferecem a salvação cristã no respeito pela liberdade pessoal de cada um, em diálogo com as culturas e as religiões dos povos a quem são enviados. Assim missio ad gentes, sempre necessária na Igreja, contribui de maneira fundamental para o processo permanente de conversão de todos os cristãos. A fé na Páscoa de Jesus, o envio eclesial batismal, a saída geográfica e cultural de si mesmo e da sua própria casa, a necessidade de salvação do pecado e a libertação do mal pessoal e social exigem a missão até aos últimos confins da terra.
A coincidência providencial do Mês Missionário Extraordinário com a celebração do Sínodo Especial sobre as Igrejas na Amazônia leva-me a assinalar como a missão, que nos foi confiada por Jesus com o dom do seu Espírito, ainda seja atual e necessária também para aquelas terras e seus habitantes. Um renovado Pentecostes abra de par em par as portas da Igreja, a fim de que nenhuma cultura permaneça fechada em si mesma e nenhum povo fique isolado, mas se abra à comunhão universal da fé. Que ninguém fique fechado em si mesmo, na autorreferencialidade da sua própria pertença étnica e religiosa. A Páscoa de Jesus rompe os limites estreitos de mundos, religiões e culturas, chamando-os a crescer no respeito pela dignidade do homem e da mulher, rumo a uma conversão cada vez mais plena à Verdade do Senhor Ressuscitado, que dá a verdadeira vida a todos.
A este respeito, recordo as palavras do Papa Bento XVI no início do nosso encontro de Bispos Latino-Americanos na Aparecida, Brasil, em 2007, palavras que desejo transcrever aqui e subscrevê-las: «O que significou a aceitação da fé cristã para os povos da América Latina e do Caribe? Para eles, significou conhecer e acolher Cristo, o Deus desconhecido que os seus antepassados, sem o saber, buscavam nas suas ricas tradições religiosas. Cristo era o Salvador que esperavam silenciosamente. Significou também ter recebido, com as águas do Batismo, a vida divina que fez deles filhos de Deus por adoção; ter recebido, outrossim, o Espírito Santo que veio fecundar as suas culturas, purificando-as e desenvolvendo os numerosos germes e sementes que o Verbo encarnado tinha lançado nelas, orientando-as assim pelos caminhos do Evangelho. O Verbo de Deus, fazendo-Se carne em Jesus Cristo, fez-Se também história e cultura. A utopia de voltar a dar vida às religiões pré-colombianas, separando-as de Cristo e da Igreja universal, não seria um progresso, mas uma regressão. Na realidade, seria uma involução para um momento histórico ancorado no passado».
A Maria, nossa Mãe, confiamos a missão da Igreja. Unida ao seu Filho, desde a encarnação, a Virgem colocou-se em movimento, deixando-se envolver-se totalmente pela missão de Jesus; missão que, ao pé da cruz, havia de se tornar também a sua missão: colaborar como Mãe da Igreja para gerar, no Espírito e na fé, novos filhos e filhas de Deus.
Gostaria de concluir com uma breve palavra sobre as Pontifícias Obras Missionárias, que a Carta apostólica Maximum illud já apresentava como instrumentos missionários. De fato, como uma rede global que apoia o Papa no seu compromisso missionário, prestam o seu serviço à universalidade eclesial mediante a oração, alma da missão, e a caridade dos cristãos espalhados pelo mundo inteiro. A oferta deles ajuda o Papa na evangelização das Igrejas particulares (Obra da Propagação da Fé), na formação do clero local (Obra de São Pedro Apóstolo), na educação duma consciência missionária das crianças de todo o mundo (Obra da Santa Infância) e na formação missionária da fé dos cristãos (Pontifícia União Missionária). Ao renovar o meu apoio a estas Obras, espero que o Mês Missionário Extraordinário de outubro de 2019 contribua para a renovação do seu serviço missionário ao meu ministério.
Aos missionários e às missionárias e a todos aqueles que de algum modo participam, em virtude do seu Batismo, na missão da Igreja, de coração envio a minha bênção.
Vaticano, 9 de junho – Solenidade de Pentecostes – de 2019.

O Evangelho dominical (Pagola) - 20.10.2019


CONTINUAMOS A ACREDITAR NA JUSTIÇA?

Lucas narra uma breve parábola indicando-nos que Jesus a contou para explicar aos seus discípulos que é preciso orar sempre e sem desanimar. Este tema é muito querido para o evangelista que, em várias ocasiões, repete a mesma ideia. Como é natural, a parábola foi lida, quase sempre, como um convite para cuidar da perseverança da nossa oração a Deus.
No entanto, se observarmos o conteúdo do relato e a conclusão do próprio Jesus, vemos que a chave da parábola é a sede de justiça. Até quatro vezes se repete a expressão “fazer justiça”. Mais do que um modelo de oração, a viúva do relato é exemplo admirável de luta pela justiça no meio de uma sociedade corrupta que abusa dos mais fracos.
O primeiro personagem da parábola é um juiz que “nem teme a Deus nem se importa com as pessoas”. É a encarnação exata da corrupção que denunciam repetidamente os profetas: os poderosos não temem a justiça de Deus e não respeitam a dignidade nem os direitos dos pobres. Eles não são casos isolados. Os profetas denunciam a corrupção do sistema judicial em Israel e a estrutura machista daquela sociedade patriarcal.
O segundo personagem é uma viúva indefesa no meio de uma sociedade injusta. Por um lado, vive sofrendo os abusos de um adversário mais poderoso que ela. Por outro lado, é vítima de um juiz que não se importa em absoluto com a sua pessoa nem o seu sofrimento. Assim vivem milhões de mulheres de todos os tempos na maioria das terras.
Na conclusão da parábola, Jesus não fala de oração. Primeiro de tudo, pede confiança na justiça de Deus: “Deus não fará justiça aos seus eleitos que Lhe clamam dia e noite?” Esses eleitos não são os membros da Igreja, mas os pobres de todos os povos que clamam pedindo justiça. Deles é o reino de Deus.
Então, Jesus faz uma pergunta que é um desafio para os Seus discípulos: “Quando vier o Filho do Homem, encontrará esta fé na terra?” Não está pensando na fé como adesão doutrinal, mas na fé que alenta a atuação da viúva, modelo de indignação, resistência ativa e coragem para reclamar justiça aos corruptos.
É esta fé e a oração de cristãos satisfeitos das sociedades de bem-estar? Seguramente, tem razão o teólogo alemão João Batista Metz quando denuncia que na espiritualidade cristã há demasiados cânticos e poucos gritos de indignação, demasiada complacência e pouco anseio de um mundo mais humano, demasiado conforto e pouca fome de justiça.
José Antônio Pagola.
Tradutor: Antonio Manuel Álvarez Perez.

ANO C | TEMPO COMUM | VIGÉSIMO-NONO DOMINGO | 20.10.2019


A oração é um apostolado que sustenta a missão da Igreja!
No evangelho de hoje, Jesus fala sobre a oração.  Mas não insiste propriamente sobre a quantidade da oração, mas sobre a perseverança na oração, sobre a confiança em Deus. Ou seja: para Jesus não se trata apenas de ‘rezar sempre’, mas de ‘nunca desistir’ de rezar. O próprio Jesus não foi uma espécie de monge dedicado exclusivamente à oração, e os discípulos que deram prosseguimento à sua missão, conjugaram equilibradamente o anúncio do Evangelho com muitas iniciativas em favor das pessoas da comunidade ou de fora dela, a prática da caridade e a oração.
Para entender a parábola proposta por Jesus no evangelho deste domingo precisamos dar um passo atrás e situa-la no seu contexto literário. Assim, percebemos que vários versículos são dedicados à questão da vinda do Reino de Deus (cf. Lc 17,20-37). Misturando a linguagem direta com a linguagem apocalíptica, Jesus ensina que o Reino de Deus não aparece de forma ostensiva e espetacular, mas é uma surpresa que se esconde em todas as ações e movimentos de solidariedade. E a súplica da viúva da parábola tem seu foco implícito na expectativa da manifestação da justiça do Reino de Deus.
É importante lembrar também que, na Bíblia, a viúva é o protótipo da pessoa pobre e abandonada, do sujeito que está no limite da sobrevivência e não tem com quem contar. A tais pessoas pertence o direito de clamar a Deus. Quem clama são os oprimidos e os pobres; os poderosos e ricos apenas declamam ou reclamam. E Deus jamais se mostrou indiferente ao clamor de quem, dia e noite, suplica diante dele. A passagem paradigmática continua sendo aquela do livro do Êxodo: “Os israelitas continuavam gemendo e clamando sob dura escravidão. E os gritos de socorro devidos à escravidão subiram até Deus” (Ex 2,23).
Por isso, podemos afirmar que Jesus não quer propriamente chamar a atenção para a questão da oração contínua, e nem apenas para o seu conteúdo. A parábola está focalizada na eficácia do clamor dos pobres e injustiçados, daqueles que pedem perseverantemente a intervenção de Deus. Fazendo referência ao juiz que, mesmo não tendo fé, atende ao clamor da viúva, Jesus nos interroga: “E Deus, não fará justiça aos seus escolhidos, que dia e noite gritam por ele? Será que vai fazê-los esperar?” O próprio Jesus responde à pergunta: “Eu vos digo que Deus lhes fará justiça bem depressa.”
Jesus é pessoalmente a mediação da socorro de Deus, mas não é o único. Todas as pessoas que creem em Deus são mediadoras da sua resposta aos clamores pela vinda do seu Reino. Mesmo que, muitas vezes, nós mesmos estejamos entre aqueles que clamam quase desesperadamente, à medida em que aderimos a Jesus Cristo somos responsáveis também pela resposta de Deus aos clamores dos outros. Continuamos a pedir “venha o teu Reino”, mas não podemos enterrar os talentos que recebemos. Jamais podemos esquecer o exemplo do samaritano da conhecida parábola (cf. Lc 10,25-37): “Vai e faze tu a mesma coisa.”
A oração cristã é sempre um exercício de ruptura com o fechamento e a confiança absoluta em nós mesmos e de progressiva abertura à vontade de Deus, que é, ao mesmo tempo, surpreendente e libertadora. A oração é um exercício humano e espiritual que tenta aproximar a nossa vontade da vontade de Deus, que procura deslocar o centro em torno do qual gira a nossa vida de nós mesmos para o advento Reino de Deus, para a vida plena ou do bem viver para todos.
A eficácia da oração se mostra claramente não apenas no atendimento automático desse ou daquele pedido, mas no alargamento e no aprofundamento da nossa consciência, do nosso modo de ver as coisas. A oração nos ajuda a tomar consciência da ação de Deus que está em curso na história e das possibilidades escondidas nela e em nós mesmos. Mas também nos eleva ao alto da cruz para que, assumindo uma perspectiva cristã, sintonizemos com todas as criaturas que clamam por uma libertação que ainda não se realizou.
Dai-nos, Jesus, missionário do Pai, a confiança e a perseverança daquela viúva que não tinha com quem contar. Torna tua Igreja cada vez mais radicalmente missionária, uma Igreja que sai de si e vai ao encontro dos irmãos e irmãs empurrados para as periferias, para testemunhar a eles a tua misericórdia. Ajuda-nos e pedir, sem cansar, que venha o teu Reino. Envia irmãos e irmãs que sustentem nossos braços cansados. Leva-nos até o alto da tua cruz para que, sintonizados com todos os clamores, desçamos aos caminhos da história para iluminá-los com o nosso testemunho. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf

Êxodo 17,8-13 | Salmo 120 (121)
Segunda Carta de Paulo A Timóteo 3,14-4,2 | Evangelho de São Lucas 18,1-8