domingo, 8 de janeiro de 2012

Batismo de Jesus

Renascemos em Deus para reinventar o mundo.
(Is 55,1-11; Is 12,2-6; 1Jo 5,1-9; Mc 1,7-11)

Com a festa do batismo de Jesus terminamos o tempo festivo do natal e começamos o tempo comum. Não esqueçamos entretanto que, da Epifania, celebrada ontem, ao batismo de Jesus, celebrada nesta segunda-feira, estamos dando um salto histórico de 30 anos. O tempo da chamada ‘vida oculta’ que antecede o tempo da missão de Jesus é o tempo em que o filho de Deus se encarna, aproxima e assume a vida humana comum até às últimas consequências. Esses 30 anos não apenas preparam sua missão libertadora, mas já são a libertação em curso. O batismo de Jesus no rio Jordão expressa o progresso da sua autoconsciência messiânica e o reconhecimento pós-pascal da sua filiação divina por parte dos/as discípulos/as. Como fomos capazes de acolher Jesus no despojamento da manjedoura, sejamos também seus companheiros/as nessa passagem absolutamente fundamental.
“Ele batizará vocês com o Espírito Santo.”
Bem ou mal, o batismo passou a fazer parte da tradição cultural do nosso povo. Celebrado em casa ou na igreja, é um rito quase obrigatório. O sentido original perde-se no tempo e na inconsciência, mas nele se esconde um valor antropológico nem sempre explicitado: mais que um rito de passagem, é um rito de pertença a um povo, a uma nação. É o sinal de uma dignidade que ninguém pode roubar.
Não podemos esquecer que o catolicismo foi religião oficial no Brasil, e o batismo significa a carta de cidadania brasileira. E numa sociedade que desarticulava e fragmentava a vida dos mais pobres, o batismo representava a oportunidade de estabelecer algumas alianças de sobrevivência com compadres e comadres. E passou a ser um ato de fé na força da vida sempre precária.
Há tempo tomamos consciência dessa marca cultural e social que o batismo tem em terras brasileiras. A má vontade com a qual alguns padres e diáconos ‘aceita’ celebrar muitos batizados e a multiplicação de exigências e cursos de preparação deixa isso muito claro. Partindo daqui, sem menosprezar ou negar esse significado antropológico e cultural, é preciso avançar para o seu sentido cristão fundamental.
“Jesus chegou de Nazaré, da Galiléia...”
Aquele que batizaria com o Espírito Santo e reuniria uma comunidade de discípulos/as itinerantes (representada pelo uso permanente de sandálias) deixou-se batizar por João Batista no rio Jordão. João diz que Aquele que estava por vir seria mais forte e proporia um novo batismo. Com Jesus, João terminava sua missão. Mas quem é esse personagem? De onde ele vem e o que propõe?
O evangelista registra que “naqueles dias (em que o povo da Judéia e de Jerusalém ia ao encontro de João e confessava seus pecados) Jesus chegou de Nazaré da Galiléia”. Mas não dá nenhuma outra informação sobre sua origem. Sabemos que ele vinha de um lugar desconhecido e suspeito e, depois do encontro com o Batista e do discernimento no deserto, voltaria para o lugar donde viera.
Jesus não é apresentado mediante uma sólida genealogia e não pertence a uma linhagem relevante. Suas raízes se perdem no insignificante povoado de Nazaré e sua identidade se confunde com o povo suspeito e indomável da Galiléia. Tem uma origem social duvidosa. Traz em seu corpo as marcas do trabalho e da marginalidade, e no coração a esperança de um Messias justiceiro dos pobres.
“E foi batizado por João no Rio Jordão...”
Em apenas três versículos, Marcos dá por terminada a descrição do batismo de Jesus. O tempo no qual ocorre não é propriamente especial frente ao batismo dos habitantes de Jerusalém que confessavam seus pecados. Foi exatamente “nesses dias” que ele “foi batizado por João no rio Jorndão”. Não houve tempo nem lugar especial: aquele tempo e aquele lugar reunia os pecadores, e Jesus entrou na fila.
Ao redor ninguém viu nada de especial no seu batismo, nem mesmo João Batista. Mas Jesus “viu o céu se resgando”, o Espírito descendo “como pomba” sobre ele. E ouviu uma voz que vinha do céu aberto: “Tu és meu filho amado; em ti encontro o meu agrado.” E nada mais. Aqueles que estavam com Jesus não viram nem ouviram nada de especial. Nenhuma reação de ninguém. Nenhuma aclamação ou comentário. Tanto que, logo em seguida, Jesus segue sozinho para o deserto.
“Tu és meu filho amado; em ti encontro meu agrado!”
Mas o que o batismo teria significado para aquele jovem galileu? Antes de tudo, o sentido que o próprio João dava àquilo que fazia. O batismo no rio Jordão representava o cancelamento dos débitos do povo com o judaísmo. Quem era batizado na água se desobrigava frente aos valores e estruturas do sistema judaico representado pelos sacerdotes e materializado no templo. Era um grito de liberdade.
Ao mesmo tempo, o batismo no rio Jordão expressava o desejo de endireitar as estradas e preparar os caminhos para o encontro com Deus. Exprimia a expectativa de que algo novo e transformador estava para acontecer. E o povo, com humilde consciência de suas ambiguidades, não queria ser obstáculo àquilo que estava para acontecer. Jesus se junta ao povo pecador. É um grito de solidariedade.
Nesse contexto, Jesus descobre que o céu está aberto, que Deus não dá as costas ao seu povo sofrido e fiel. Experimenta a força dinâmica e recriadora de Deus em forma de pomba. E entende que ele, esse jovem da pequena Nazaré e da suspeita Galiléia, é o filho querido que muito agrada a Deus. Jesus descobre-se filho ungido para se opor aos poderosos da terra (cf. Sl  2) e servo fiel que carrega os pecados do mundo e as dores dos oprimidos (cf. Is 42). É uma experiência de ministerialidade.
“E o Espírito, como pomba, desceu sobre Ele...”
O batismo mostra que Jesus cresce na consciência de que uma nova criação está em curso. Trata-se de um processo de alargamento da cosciência que antecede e prossegue ao batismo, mas tem nele um momento especial. Ao participar de um rito que proclamava o cancelamento dos pecados e débitos do povo frente ao templo, que o tornava livre frente aos seus valores leis discrimadores, Jesus se auto-proclama um sujeito livre, um ‘fora-de-lei’.
E é por aqui que começa a nova criação. Pois o pecado não é a ação contra ou fora da lei, mas o cumprimento das leis que hierarquizam e discriminam pessoas e povos. Os doutores da lei e os sacerdotes pecam porque cumprem os detalhes da lei e esquecem da compaixão humana. A nova sociedade e a nova criação criação começam exatamente com a renúncia a essa velha ordem corruptora e opressora das consciências e pessoas. Jesus enfrentará de novo essa velha ordem nas tentações.
O Espírito que desce “como pomba” entra na cena para recordar o Espírito que pairava sobre as águas e que presidiu a primeira criação. Ele se faz presente em Jesus e, posteriormente, nos/as discípulos/as para fazer a passagem da minoridade que limita e da escravidão que amedronta para a maioridade e a liberdade de filhos/as, nos/as quais Deus o próprio Deus se reconhece e tem prazer. O Espírito também garante aos filhos e filhas a herança do Reino, a continuidade criativa da ação de Jesus.
“Todo aquele que nasceu de Deus venceu o mundo.”
Às vezes temos a impressão de que o seguimento de Jesus Cristo é um caminho difícil e um fardo pesado. Temos a sensação de que para viver bem deveríamos renunciar ao Evangelho e entregarmo-nos à realização dos nossos belos e infalíveis interesses. Será mesmo assim? Qual é o preço que o mundo está pagando por assumir o ‘evangelho’ da competição predatória? Qual é o peso da lei do “cada um para si”? E que rio de lágrimas que brota do “quem pode mais, chora menos”?
João insiste que “os mandamentos não são pesados” e que sua observação atesta nosso amor a Deus. E mais: que “todo aquele que nasceu de Deus venceu o mundo” . Os mandamentos se resumem num único caminho: amar a Deus amando e servir ao próximo em suas necessidades. É a isso que conduz o nosso batismo. Nascer de novo ou renascer em Deus significa romper com as velhas e opressivas lealdades com os sistemas que oprimem e discriminam e assumir o amor como lei.
Observando uma menina de seis anos carregando às costas seu irmãozinho de quatro anos, um jornalista perguntou: “Ele não é muito pesado para você?” Ao que a menina respondeu: “Não, ele é meu irmão!” Assim, a vida cristã e seu caminho de amor aos irmãos e irmãs não é pesada. Pode doer como o parto, mas porta alegria indescritível, como a água fesca e abundante em estação seca ou a mesa farta em tempos de carestia (cf. Is 55). Eis o caminho para vencer o mundo!
Pe. Itacir Brassiani msf

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