domingo, 1 de fevereiro de 2015

Grécia & Brasil


A democracia contra o caos

Uma das grandes vitórias do neoliberalismo em nosso tempo foi subtrair do capitalismo o seu conteúdo político e social. A naturalização daquilo que está assentado em uma indissociável relação de poder consumou uma das mais eficazes operações ideológicas do nosso tempo.
A serviço dessa assepsia vicejam as editorias de economia e o colunismo dos vulgarizadores do capital metafísico. Cabe-lhes o diuturno trabalho de reafirmar a petulante condição de ciência a uma economia encarregada de reproduzir um sistema ordenado pelo virulento antagonismo com o bem comum da sociedade. Não se negue à economia leis próprias, circunstâncias limitadoras e incertezas a exigir gestão, equilíbrio e bom senso.
Mas dizer  ‘economia de mercado’ e não ‘capitalismo’, ou ‘intervencionismo’, em contraposição a ‘eficiência’, faz parte do serviço de entorpecimento social encarregado de preservar e engordar interesses sabidos. De quando em vez, a operação falha.
Nas crises cíclicas do sistema, quando se descarrega sobre a sociedade um fardo de sacrifícios dificilmente vendável como ciência ou fatalidade, o labor da catequese midiática é afrontado pela natureza crua do regime.
Foi o que aconteceu na Grécia, de onde faísca agora um clarão de discernimento que ameaça iluminar o imaginário social para muito além de suas fronteiras.  A vitória eleitoral da frente de esquerda, o Syriza, no último domingo, carrega essa dimensão de um simbolismo com poder epidêmico. Súbito, democracia e capitalismo se deparam em pé de igualdade na disputa pelo destino de uma nação e do seu desenvolvimento. Aos olhos do mundo, Atenas se transformou na capital da transgressão ao interdito neoliberal.
Tudo o que a derrocada do bloco comunista, e a rendição da socialdemocracia aos mercados autorreguláveis, martelou nos corações e mentes, em mais de três décadas de fastígio conservador, vacila sob a luz desse clarão. Afinal, se ‘there is no alternative’, como proclamava lady Margaret Tatcher, e assim reafirma o desesperanto de Merkel e Levy, como é que uma nação inteira aposta a própria cabeça na direção oposta? O repto histórico acontece em um momento de particular transparência do moedor de carne dos mercados. É essa singularidade que devolve à Grécia a condição de uma ‘ágora’ a escrutinar os destinos de muitos povos nos dias que correm.
Os números da tragédia imposta à população grega pelo conluio entre elites predadoras e mercados financeiros insaciáveis são conhecidos. Um tridente resume a temperatura do inferno. Para pagar bancos sem afetar a plutocracia, o estado grego reduziu o salário mínimo, cortou a merenda escolar e deixou milhares de famílias pobres sem eletricidade. Sob a chibata de Merkel, da troika do euro e do FMI, o berço da democracia vivenciou o degrau mais indigente de degeneração desse regime desde a crise de 1929 nos EUA.
O que se discute agora, portanto, não é pouca coisa. Em que medida a democracia, leia-se, o Estado orientado pela mobilização popular, poderá equacionar restrições de natureza não apenas local - mas global -  e reverter a marcha fúnebre de uma nação rumo ao abismo da história?
A revolução mundial não consta das opções disponíveis na mesa dos povos para desmontar a supremacia  das finanças desreguladas nesse momento. A Grécia terá que renascer a partir de um trabalho de parto sincronizado com a construção de antídotos à hegemonia financeira no âmbito do euro. As relações entre Estado, mercados, democracia e desenvolvimento ganham assim um laboratório de ponta alternativo à gororoba metafísica receitada pelo jornalismo de economia a serviço do dinheiro grosso. A complexidade e a nitroglicerina embutidas nessa transição não aconselham ilusões.
Arranjos alternativos terão que ser negociados, concessões ocorrerão. Mas com uma diferença não negligenciável em relação ao que se passa em outras latitudes nesse momento:  o cristal metafísico que revestia a dominação dos mercados sobre a sociedade se espatifou em Atenas. A mão invisível materializou-se atada ao esqueleto do qual nunca se separou. Dele fazem parte vértebras não estranhas à perplexidade atual dos brasileiros: elites descomprometidas da sorte da sociedade; endinheirados cuja pátria é o paraíso fiscal; burocracias públicas capturadas pelos oligopólios; políticos degenerados; sistemas partidários cevados no numerário privado; coalizões conservadoras dispostas a destruir o país e os alicerces do seu desenvolvimento para retomar o poder.
Sempre foi assim. Mas em sua versão neoliberal, potencializada pelo poder de chantagem da livre mobilidade dos capitais, a engrenagem adquiriu a ubíqua condição de um ectoplasma que até uma parte da esquerda passou a tratar como ‘o novo normal’. Ou, o estado de exceção permanente.
O nó górdio dos que tem buscado se opor a ele é a rala contrapartida de organização coletiva e discernimento histórico para levar a cabo a luta por uma outra lógica de sociedade e desenvolvimento.
A frase acima condensa boa parte da encruzilhada brasileira atual. Nela, um governo de raiz progressista debate-se entre a fidelidade aos seus compromissos e as concessões exigidas pelos mercados, sob risco de ser defenestrado por eles num arrastão de fuga de capitais, explosão de preços e greve dos investimentos. Como escapar da disjuntiva se o sujeito do processo persiste alheio às raízes do conflito que determinarão o seu destino?
Durante um período longo demais, muitos dentro do PT acharam que essa era uma ‘não-questão’. Que tudo se resolveria no piloto automático dos avanços incrementais do consumo, que se propagariam mecanicamente na correlação de forças da sociedade, fechando-se um círculo virtuoso e progressista.
A paralisia atual, que ameaça conquistas arduamente acumuladas, argui os termos dessa equação. Com os limites do jogo ainda mais estreitos, o desafio agora é romper a capa da fatalidade ortodoxa para repor os termos de uma repactuação do desenvolvimento, capaz de assegurar um novo estirão da democracia social no país
A experiência em curso na Grécia deve ser acompanhada com a respiração em suspenso pela esquerda brasileira. O que uma frente de esquerda que sempre perdeu as eleições, até se unir, ensina de antemão ao estilhaçado campo progressista brasileiro assume contornos de uma objetividade vertiginosa nos dias que correm. Para a democracia enfrentar os mercado é crucial saber onde se pretende chegar mas, sobretudo, providenciar os instrumentos organizativos necessários à sustentação do percurso.
Joaquim Ernesto Palhares

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