Viver é sair de si mesmo e tornar-se mulher ou homem novo!
Vida é caminhada,
permanente travessia. Engajamos-nos nas lutas dos homens e mulheres e
sentimo-nos atraídos a estabelecer aqui nossa morada, mas, ao mesmo tempo,
descobrimo-nos estrangeiros, cidadãos de uma sociedade que ainda está para ser
construída. Paulo expressa esse misterioso dinamismo a seu modo: o amor de
Cristo nos atrai e pressiona, convidando-nos a passar de uma vida centrada em
nós mesmos para uma vida que tem seu foco nos outros; radicados em Cristo e com
os olhos fixos nele, somos chamados a ser mulheres e homens novos.
De fato,
são muitas e diversas as nossas travessias. Há uma travessia que leva do ‘eu’
fechado e indiferente ao ‘nós’ aberto e acolhedor. Há a travessia que nos leva
da estabilidade de um conhecimento exaustivo e seguro, de uma doutrina que
pretende explicar tudo, de uma ciência que imagina desvendar todos os
mistérios, de uma ideologia que oferece programas e estratégias para todos os
desafios, à reverente consciência de que todas as coisas estão envoltas num
mistério que nos ultrapassa e abraçao por todos os lados. Há também a travessia
possível e urgente de uma sociedade injusta e desigual a uma sociedade
inclusiva e solidária... E muitas outras!
Mas as
travessias não costumam ser muito tranqüilas... Ao lado e contra o movimento de
êxodo e expansão que dá vida a todo o universo, há também uma tendência à
inércia, à estabilidade. Existem ventos contrários à mudança, forças que nos
convidam a permanecer em casa, tentações que nos pedem que não troquemos um mal
que conhecemos por um bem que é apenas desejo e promessa. É triste quando, na
própria Igreja, nascida para acompanhar a humanidade em suas necessárias
travessias, o medo paira como sombra que preenche todos os espaços e inibe
todos os passos...
Sabemos
por experiência que aquilo que é desconhecido e foge ao nosso controle nos
amedronta. Controlar as situações, ou subemeter-se ao controle, nos dá sensação
de segurança e de verdade. E o medo acaba sendo a mãe das submissões que
limitam, das dominações que esterilizam, das ideologias que matam. É este medo
que está na raiz do estado de guerra no qual vivem as sociedades, e promovê-lo
é uma estratégia que serve aos dominadores. No coração de algumas liturgias e
pregaçõres, e por trás de muitas mensagens políticas, está a intenção de criar
medo e, assim, manter a dominação.
O
evangelho de Marcos nos revela que os próprios discípulos de Jesus desconhecem
e temem a travessia. Depois de terem ouvido da boca de Jesus parábolas que
sublinham o dinamismo escondido do Reino de Deus, eles se mostram
desconcertados e temem profundamente a travessia que os levaria ao encontro com
os estrangeiros. Tudo parece escuro, tanto dentro como fora deles... E Jesus
diz claramente que na raiz deste medo está a falta de fé. É falta de fé esperar
que Deus elimine magicamente as dificuldades da travessia da vida ou nos leve
imediatamente à outra margem!
A quem
Jesus se dirige quando fala “Cale-se! Acalme-se!”? Ao mar e ao vento que, aos
olhos dos discípulos, parecem descontrolados e ameaçadores, ou aos próprios
discípulos? Mais que o mar, eles é que estão agitados e precisam ser acalmados!
O que os aterroriza é a necessidade de mudar de idéia, de ideologia, de projeto
de vida, de entrar em diálogo com quem é e pensa diferente. Mas, enquanto eles
se apavoram e desesperam, Jesus dorme despreocupadamente. Ele sabe que a vida
esta na páscoa/travessia. Quem o desperta não é o vento ameaçador, mas o grito
dos discípulos apavorados...
Apesar
das aparências em contrário, Jesus se importa com o risco que seus discípulos e
discípulas enfrentam. A travessia é necessária e desejada por Deus, e ele nos
acompanha em todas elas. É verdade que, às vezes, Jesus parece dormir e pouco
se importar com os riscos que enfrentamos, mas o que ele não quer é assumir a
responsabilidade e o lugar que nos cabem nessa passagem. Ele confia em nós, e a
única maneira de chegarmos à maturidade que liberta é assumir nossa
responsabilidade. Não há passagem automática e indolor, como não há vida na
estabilidade absoluta...
Jesus de Nazaré, peregrino e companheiro nas
travessias que a vida nos pede: permanece neste barco agitado no qual se
transformou tua Igreja. Desperta em nós a certeza consoladora de que o Pai nos
guia ao porto desejado e que teu amor nos impulsiona a avançar, a não cair na
armadilha do medo. Sustenta-nos em todas as travessias, pois se permanecermos
do lado de cá – fechados em nós mesmos, seguros em nossas ideologias,
encaracolados em nossas doutrina – acabaremos afundando. E converte nosso medo
em fé e nossa sede de segurança em vontade de caminhar. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
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