quinta-feira, 23 de outubro de 2014

30° DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO A – 26.10.2014)

O amor a Deus e ao próximo são duas faces da mesma moeda.

Quem não gosta de celebrações criativas, belas, envolventes? E quem não se encanta com a aventura de mergulhar cada vez mais profundamente no antigo e sempre novo, fascinante e terrível Mistério de Deus? Quem não se sente chamado irresistivelmente a amá-lo como é amado?... Mas essa experiência sedutora de um Deus que nos ama incondicionalmente não pode fazer-nos indeferentes à sorte dos nossos irmãos e irmãs. Jesus unifica o amor a Deus e o amor ao próximo.
No Evangelho de hoje, Mateus nos relata o esforço quase desesperado dos fariseus para fazer que Jesus tropece em algum ponto da correta doutrina do judaísmo. Eles já o haviam provocado com a questão dos impostos devidos ao império romano. Tinham notícia também de como Jesus havia enfrentado a armadilha preparada pelos saduceus, em torno da questão da ressurreição dos mortos. E agora voltam com uma questão de doutrina religiosa e de espiritualidade.
É claro que os fariseus não querem aprofundar seu conhecimento sobre Deus e seu Reino. O que eles procuram insistentemente é um motivo para rejeitar o ensino de Jesus e tirá-lo de circulação. E quando perguntam qual é o maior mandamento da lei querem dar a entender que os mandamentos são muitos, e a definição do mais importante é uma operação teológica complicada e arriscada. Os mandamentos seriam vários e não teriam um eixo que os move e em torno do qual giram.
Jesus não se intmida, e responde à pergunta provocadora com serenidade e clareza. “Ame o Senhor seu Deus com todo teu coração, com toda tua alma e com todo tua inteligência. Este é o primeiro e grande mandamento.” Com isso parece que Jesus se conforma à expectativa de todos seus interlocutores e opositores, não deixando margem para qualquer crítica ou desconfiança. Mas, mais que uma resposta estratégica, esta é uma afirmação que vai ao centro da questão religiosa.
Trata-se de amar a Deus, mas não de qualquer maneira. Jesus não propõe um amor sentimental ou voluntarista. Ele sublinha um amor lúcido, racionalmente orientado (com toda tua mente); um amor encarnado na vida e nos gestos cotidianos (com toda tua alma); e um amor decidido, sensível e humano (com todo teu coração). Este amor está a quilômetros de distância de um mero sentimento que se desfaz em lágrimas diante das catástrofes mas mergulha na indiferença diante da opressão.
O que Jesus nos propõe com este mandamento ‘primeiro e central’ é uma vida integralmente centrada em Deus e na sua vontade. E isso é mais que amar a Deus como um entre os muitos objetos ou sujeitos que podem realizar nossos desejos. Significa ter Deus e o seu Reino como a referência absolutamente central das nossas opções, práticas e projetos. Deus não pode ser simplesmente mais uma pedra na construção, mas a arquitetura que a define e o alicerce que a sustenta.
Mas Jesus não se detém na resposta aprovada pela ortodoxia e esperada pelos líderes religiosos. Ele surprende a todos dizendo que há um segundo mandamento, com o mesmo valor e inseparável do mandamento primeiro e central: “Ame o seu próximo como a si mesmo.” Esse mandamento era conhecido pelos fariseus e doutrores da lei, mas eles – como muitos de nós – jamais o colocariam no mesmo nível de importância do amor a Deus. Isso soaria como uma heresia horizontalista...
Para não deixar dúvidas, Jesus afirma lapidarmente que todas as escrituras se resumem e realizam nesses dois princípios. A vontade de Deus, aquela vontade que em cada oração do Pai-Nosso pedimos que seja realizada, se concretiza num amor terno, lúcido e firme dirigido ao mesmo tempo a Deus e aos nossos semelhantes, especialmente àqueles que se encontram socialmente e humanamente mais fragilizados. E é daqui que parte também toda profecia, missão hoje tão urgente quanto complexa.
Deus pai e mãe, amor que envia e sustenta missionários que dedicam a própria vida para recordar que o amor a ti e ao próximo vão sempre de mãos dadas: te agradecemos porque, em todos os tempos, suscitas pessoas que, reconciliadas e sustentadas por teu amor, dão o melhor de si mesmos para que teu nome seja engrandecido e os mais pobres possam viver dignamente. Que teu santo Espírito ajude a Igreja a recriar e anunciar teu Evangelho como boa notícia que aproxima e anima todos os seres humanos. E que ela não transforme este dom precioso em lei que obriga ou em doutrina que divide. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Livro do Êxodo 22,20.26 * Salmo 17 (18) * 1ª Carta aos Tessalonicenses 1,5-10 * Mateus 22,34-40)

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

O mistério de Paulo

O mistério que foi revelado

Escrevendo aos cristãos de Éfeso, Pauo fala que com entusiasmo da graça que ele e os demais santos apóstolos e profetas tiveram de conhecer o “mistério de Cristo”. E descreve o conteúdo deste mistério: os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do mesmo corpo, são associados à mesma promessa e têm a liberdade de se aproximar de Deus com toda a confiança (cf. Ef 3,2-12).
Mas o que isso significa, concretamente? Significa que o muro teológico e moral que as religiões, culturas  ideologias ergueram para separar crentes e não crentes, praticantes e não praticantes, cumpridores da lei e libertários, perdeu o sentido. Jesus não pratica a lei estritamente, e se mostra libertário, crítico e anárquico, chegando a afirmar que pessoas consideradas modelo de pecado – como as prostitutas e os publicanos – são mais apreciadas por Deus que os fariseus e doutores da lei...
O que Paulo intuiu – e mais tarde os evangelhos, que nasceram no ventre da fé das comunidades cristãs, deixarão claro – é que a humanidade de Jesus e dos seus irmãos e irmãs é o lugar do encontro com Deus, ou seja, do encontro com a liberdade solidária e emancipadora. Infelizmente a maioria de nós nem se dá conta, e muito menos se assusta, com o ensino de Jesus, que não pede que, à espera da sua volta, multipliquemos celebrações e novenas, mas que estejamos à frente – ou aos pés?! – dos nossos irmãos e irmãs para dar-lhes de comer na hora certa. Ou seja: servimos a Deus e resgatamos nossa verdadeira identidade humana no amor agradecido a Deus e no amor solidário e emapncipador aos nossos irmãos.
Nossos amigos e amigas que não chegaram à graça da fé, ou que a perderam por causa da ambiguidade do nosso testemunho, não são necessariamente piores ou mais culpáveis que nós. Se eles se posicionarem ao lado ou aos pés dos seus semelhantes e os servirem nas suas necessidades, encontraram Deus e realizaram sua vocação. Há dois mil anos esse mistério foi desvelado e, graças a Paulo e às primeiras gerações de cristãos, chegou ao nosso conhecimento. E o conhecimento gera responsabilidade. E é de novo o próprio Jesus que nos adverte: “A quem muito foi dado, muito será pedido; a quem muito foi confiado, muito mais será exigido” (Lucas 12,48).
No horizonte do mês missionário, somos convidados a anunciar isso com ênfase e clareza: as divisões caducaram; a pretensa supremacia dos crentes e religiosos perdeu a base; as hierarquias ruíram. A salvação se tornou acessível a todos os povos e culturas, e é encontrada e realizada na compaixão, na misericórdia e na solidariedade. É isso que significa a afirmação de não é pela prática da lei (que separa e hierarquiza) que alcançamos a salvação, mas pela fé em Jesus Cristo (que aproxima e solidariza).

Itacir Brassiani msf

sábado, 18 de outubro de 2014

Dia Mundial das Missões

A alegria de ser missionário


Ainda hoje há tanta gente que não conhece Jesus Cristo. Por isso, continua a revestir-se de grande urgência a missão ad gentes, na qual são chamados a participar todos os membros da Igreja, pois esta é, por sua natureza, missionária: a Igreja nasceu «em saída».
A alegria é a marca da missão
Narra o evangelista que o Senhor enviou, dois a dois, os setenta e dois discípulos a anunciar, nas cidades e aldeias, que o Reino de Deus estava próximo, preparando assim as pessoas para o encontro com Jesus. Cumprida esta missão de anúncio, os discípulos regressaram cheios de alegria: a alegria é um traço dominante desta primeira e inesquecível experiência missionária.
O divino Mestre disse-lhes: «Não vos alegreis, porque os espíritos vos obedecem; alegrai-vos, antes, por estarem os vossos nomes escritos no Céu. Nesse mesmo instante, Jesus estremeceu de alegria sob a acção do Espírito Santo e disse: “Bendigo-te, ó Pai...”. Voltando-se, depois, para os discípulos, disse-lhes em particular: “Felizes os olhos que vêem o que estais a ver”» (Lc 10, 20-21.23).
A alegria brota do amor realizado
Os discípulos estavam cheios de alegria, entusiasmados com o poder de libertar as pessoas dos demónios. Jesus, porém, recomendou-lhes que não se alegrassem tanto pelo poder recebido, como sobretudo pelo amor alcançado, ou seja, «por estarem os vossos nomes escritos no Céu» (Lc 10, 20). Com efeito, fora-lhes concedida a experiência do amor de Deus e também a possibilidade de o partilhar. E esta experiência dos discípulos é motivo de jubilosa gratidão para o coração de Jesus.
Este momento de íntimo júbilo brota do amor profundo que Jesus sente como Filho por seu Pai, Senhor do Céu e da Terra, que escondeu estas coisas aos sábios e aos inteligentes e as revelou aos pequeninos (cf. Lc 10, 21). Deus escondeu e revelou, mas, nesta oração de louvor, é sobretudo a revelação que se põe em realce.
O que foi que Deus revelou e escondeu? Os mistérios do seu Reino, a consolidação da soberania divina de Jesus e a vitória sobre satanás. Deus escondeu tudo isto àqueles que se sentem demasiado cheios de si e pretendem saber já tudo. De certo modo, estão cegos pela própria presunção e não deixam espaço a Deus.
A fonte primeira da alegria é o amor de Deus por nós
«Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado» (Lc 10, 21). Jesus exultou, porque o Pai decidiu amar os homens com o mesmo amor que tem pelo Filho. Além disso, Lucas faz-nos pensar numa exultação idêntica: a de Maria. «A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador» (Lc 1, 46-47).
Ao ver o bom êxito da missão dos seus discípulos e, consequentemente, a sua alegria, Jesus exultou no Espírito Santo e dirigiu-Se a seu Pai em oração. Em ambos os casos, trata-se de uma alegria pela salvação em ato, porque o amor com que o Pai ama o Filho chega até nós e, por obra do Espírito Santo, envolve-nos e faz-nos entrar na vida trinitária.
«A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria» (Evangelii gaudium, 1).
De tal encontro com Jesus, a Virgem Maria teve uma experiência totalmente singular e tornou-se «causa da nossa alegria». Os discípulos, por sua vez, receberam a chamada para estar com Jesus e ser enviados por Ele a evangelizar (cf. Mc 3, 14), e, feito isso, sentem-se repletos de alegria. Porque não entramos também nós nesta torrente de alegria?
Um mundo ameaçado pela tristeza individualista

«O grande risco do mundo atual, com a sua múltipla e avassaladora oferta de consumo, é uma tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada» (Evangelii gaudium, 2). Por isso, a humanidade tem grande necessidade de dessedentar-se na salvação trazida por Cristo.
Os discípulos são aqueles que se deixam conquistar mais e mais pelo amor de Jesus e marcar pelo fogo da paixão pelo Reino de Deus, para serem portadores da alegria do Evangelho. Todos os discípulos do Senhor são chamados a alimentar a alegria da evangelização.
A alegria do Evangelho brota do encontro com Cristo e da partilha com os pobres. Por isso, encorajo as comunidades paroquiais, as associações e os grupos a viverem uma intensa vida fraterna, fundada no amor a Jesus e atenta às necessidades dos mais carecidos.
Deus ama a quem dá com alegria
Onde há alegria, fervor, ânsia de levar Cristo aos outros, surgem vocações genuínas, nomeadamente as vocações laicais à missão. Na realidade, aumentou a consciência da identidade e missão dos fiéis leigos na Igreja, bem como a noção de que eles são chamados a assumir um papel cada vez mais relevante na difusão do Evangelho. Por isso, é importante uma adequada formação deles, tendo em vista uma acção apostólica eficaz.
Não nos deixemos roubar a alegria da evangelização! Convido-vos a mergulhar na alegria do Evangelho e a alimentar um amor capaz de iluminar a vossa vocação e missão. Exorto-vos a recordar, numa espécie de peregrinação interior, aquele «primeiro amor» com que o Senhor Jesus Cristo incendiou o coração de cada um; recordá-lo, não por um sentimento de nostalgia, mas para perseverar na alegria. O discípulo do Senhor persevera na alegria, quando está com Ele, quando faz a sua vontade, quando partilha a fé, a esperança e a caridade evangélica.
(Resumo da mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial das Missões de 2014)

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

29° DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO A – 19.10.2014)

A justiça e a promoção humana estão no coração da missão.

As comunidades católicas rezam hoje pelas missões, pelos missionários e missionárias. Estes homens e mulheres abrasados pela fé, fortalecidos pela esperança e seduzidos pelo desafio de ultrapassar fronteiras não são entidades de outro planeta ou de outra dimensão, nem pessoas moralmente ou espiritualmente superiores a nós. Como Jesus, os missionários são pessoas que não fazem diferenças entre as pessoas em favor dos familiares, compatriotas ou partidários. São criaturas que têm lucidez e coragem para relativizar as pretensões dos poderosos e defender os direitos dos pequenos.
Depois da parábola do banquete, na qual Jesus afirma que os principais de Israel recusam o convite gratuito de Deus, esta elite não parece interessada em responder ou discutir: retira-se para conspirar e planejar um ataque fulminante contra Jesus. Com ironia, hipocrisia e cinismo, os doutores da lei, escribas e herodianos preparam uma armadilha para enrolar e surpreender Jesus e, assim, fabricar as provas que necessitam para a condenação que já está decidida. A ironia e o cinismo ficam evidentes nos elogios dirigidos a Jesus pelos emissários das elites judaicas.
Sem querer, nos elogios irônicos e cínicos que dirigem a Jesus, os próprios adversários de Jesus apresentam seu perfil verdadeiro e inatacável. Jesus não se sente inibido na sua opção pelos pobres nem diante da pressão dos poderosos. Não abandona os caminhos de Deus, mesmo diante das alternativas que oferecem sucesso e êxito. Não foge das questões espinhosas, nem apela a uma mal dita neutralidade política, a uma indefinida vida interior ou às coisas da alma. Ele sabe distinguir o reconhecimento e a adesão humilde à sua proposta dos elogios falsos, interesseiros e enganadores...
O que está em discussão no evangelho deste domingo não é a simples questão de pagar ou não pagar impostos. O que as elites, do judaímo e de todos os tempos, querem saber é se, diante do império romano, Jesus é colaborador ou subversivo; se ele mantém sua profecia ou abaixa a cabeça e cala a boca, deixando os fracos à sua própria sorte; se o projeto de Deus mergulha na história ou se dirige apenas ao coração e a uma fé privatizada e intimista. De qualquer modo, a questão não é a autonomia dos poderes político e religioso, as a relação entre fé e política.
O tributo imposto e cobrado dos povos colonizados pelo império romano era um meio de subjugá-los, e a própria moeda servia como estratégia de propaganda do imperador e de afirmação do seu status divino. Para os judeus mais piedosos, a simples apresentação da imagem do imperador cunhada na moeda provocava indignação, pois era um sinal da sua divinização. Diante da prova da moeda, Jesus não se submete à fàcil solução de separar fé e política, poder temporal e crítica profética. Sua resposta sábia e corajosa é um caminho: “Devolvam a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.”
A conclusão de que, com esta resposta, Jesus estaria afirmando que a fé não tem nada a dizer sobre a esfera política, mesmo sobre um poder ditador e opressor, é puro preconceito e ideologia escapista, sem nenhuma base exegética. O que Jesus faz é pedir que se devolva ao imperador a moeda, instrumento de propaganda e de exploração, e que se reserve a Deus a vida e do seu povo. Partindo do valor absoluto e transcendente do Reino de Deus, ele condena as pretensões absolutistas do imperador e suas práticas de exploração dos povos por ele subjugados.
Assim, Jesus contextualiza e relativiza o poder colonialista e a lealdade às autoridades. Sem recorrer à violência e falando em nome de Deus, exercita a profecia e subverte a ordem estabelecida sobre a desordem ética. Isso nos lembra que profecia, a justiça e a promoção humana são intrínsecas à missão.  Graças a Deus, em muitas comunidades, temos discípulos missionários com coração grande para amar e forte para lutar. Com Paulo, dizemos: “Nos lembramos sempre da fé viva, do amor capaz de sacrifícios e da firme esperança de vocês... Sabemos que vocês foram escolhidos por Jesus Cristo...”
Deus pai e mãe, dá-nos coragem e sabedoria para relativizar todos os poderes, inclusive os poderes  religiosos, e subordiná-los ao serviço à vida. Ajuda tua Igreja a assumir, sem medo e sem reticências, a missão de encarnar o Evangelho do teu Filho na política, na economia e na sociedade, colaborando na edificação de um país solidário. E não permite que teus filhos se cansem de testemuhar com clareza, de servir com amor, de dialogar com humildade e de  anunciar o Evangelho com intrepidez. Assim seja!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Profeta Isaías 45,1.4-6 * Salmo 95 (96) * 1ª Carta aos Tessalonicenses 1,1-5 * Mateus 22,15-21)
Confira também: http://www.cebi.org.br/noticias.php?secaoId=1&noticiaId=5176 

sábado, 11 de outubro de 2014

Razões para não votar em Dilma?

Treze razões para não votar em Dilma
Depois do primeiro turno, acrescentei três razões à minha lista para que não se vote em Dilma. Vai mal o Brasil. Essa primeira razão fala por si. Temos o menor desemprego dos últimos 12 anos. Uma vergonhosa taxa de 5%. Culpa do PT. Só no Brasil mesmo. É mais uma jabuticaba brasileira. Qualquer país europeu civilizado tem o dobro disso. A taxa média de desemprego na Europa anda pelos 10,5%.
A segunda razão para não se votar em Dilma é que a taxa de mortalidade infantil entre nós caiu 77% entre 1990 e 2012. Como se vê, o petismo nada tem com isso. Talvez tenha até atrapalhado.
A terceira razão para não se votar em Dilma é que, entre 2001 e 2012, a pobreza extrema no país foi reduzida em 75%, segundo a ONU, e a pobreza em 65%. Como se fez tão pouco! Por que não se reduziu a zero a pobreza extrema? É muita incompetência.
A quarta razão para querer tirar Dilma do poder é o bolsa família. Esse famigerado programa assistencialista e populista mantém cerca de 16 milhões de crianças na escola, arrancou quase dois milhões de famílias da miséria e dá acesso ao mercado interno de mais 50 milhões de pessoas. É inadmissível. Os beneficiados ficam contentes e irracionalmente tendem a votar no governo que os ajuda. Um comportamento racional os levaria a recusar esse benefício ou a votar pelos que o rotulam de bolsa preguiça.
A quinta razão para se fugir de Dilma é ProUni. O ProUni é um programa devastador. Botou, em dez anos, dois milhões de jovens pobres em instituições privadas. Está acabando com uma das mais caras noções da meritocracia branca e rica: a universidade para poucos, o curso superior como uma distinção de elite. Onde vamos parar? As universidades agora têm alunos de todas as classes e cores. A educação é um dos maiores problemas do Brasil. Está cada vez mais inclusiva e multirracial.
A sexta razão vem das cotas raciais. Mais um mecanismo devastador. De repente, não tem mais só brancos nas salas de aulas de instituições antes tão homogêneas. O preservador das tradições se assusta e grita: “É um racismo às avessas”. O liberal repete seu mantra: “O importante é ter as mesmas condições no ponto de partida”. Obviamente que isso nunca existiu e, se depender de alguns, nunca existirá.
A sétima razão para não se votar em Dilma é que os governos petistas criaram 14 novas universidades públicas e centenas de extensões no interior dos país. Isso é lamentável, pois diminui a importância das grandes cidades, estimula os jovens a não migrarem mais para as metrópoles e, com o Enem, desvaloriza os vestibulares tradicionais.
A oitava razão é que, apesar do crescimento baixo, a inflação, considerada altíssima,  estourou o teto da meta uma vez. A oitava razão para se votar em qualquer um, menos em Dilma, é que a taxa Selic, que chegou a 45% num dos governos de FHC, só está em 11% atualmente.
A nona razão para não se votar em Dilma é que tudo isso não passa de uma estratégia para desviar a atenção da corrupção, a maior que já vimos, exceto pelo que aconteceu nos últimos 500 anos, mas não foi noticiado, salvo nos governos de Getúlio e Jango, por não ser do interesse dos donos da mídia ou dos discretos generais ditadores que detestavam escândalos e amavam o Maluf.
A décima razão é que Dilma ganha no nordeste. Tem o voto dos pobres. E pobre, como todo mundo sabe, especialmente FHC, vota por interesse, com o estômago e com o bolso. Só rico vota por racionalidade, desinteresse e idealismo como provam os lacerdinhas, os coxinhas e todos os que recebem bolsas como o bolsa moradia dos togados.
A décima primeira razão para não votar em Dilma é que ele pode continuar fazendo o que fez até agora. Por exemplo, aumentar o salário mínimo, essa irresponsabilidade que produz inflação e compromete os ganhos de empresários.
A décima segunda razão para não votar em Dilma é que ela é odiada pela mídia de Rio de Janeiro e de São Paulo, que, como todos sabem, é uma mídia imparcial, neutra, objetiva e tucana só quando não lhe sobra alternativa, ou seja, sempre.
Até dá para desconsiderar isso tudo e votar. O problema é a décima terceira razão: nunca se aparelhou tanto o Estado. Por exemplo, na educação. Eu não perdoo. Nem esqueço. Sei que isso é o mais importante. O resto é pura perfumaria. Anularei o meu voto. Na margem de erro, acerto um ponto fora da curva.

Postado por Juremir Machado /  Correio do Povo em 10 de outubro de 2014

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Sinodo sobre a Familia

SÍNODO: A ESPERANÇA DE UMA ABERTURA

A primeira fase do Sínodo da família iniciou-se em Roma ao mesmo tempo em que o Brasil fervilhava com o primeiro turno das eleições. O clima tenso e agressivo não permitia pensar em nada mais. Agora, uma vez apuradas as urnas e enquanto se respira para começar a peleja do segundo turno – que promete ser pior do que o primeiro – há tempo para voltar os olhos para o Vaticano, onde se realiza tão importante reunião.
A família é há muito tempo uma pedra no sapato da Igreja. Embora seja a célula mater da evangelização, a pastoral familiar encontra-se há anos, sobretudo, eu diria, desde os anos 60, lutando com obstáculos e impedimentos que dificultam à Igreja um diálogo franco e aberto com os fiéis sobre as questões da vida familiar.
Entre as mais polemicas está certamente a da volta à vida sacramental dos casais em segunda união. A norma da indissolubilidade do matrimônio tira do horizonte dos fiéis a possibilidade de um novo casamento se o primeiro fracassa. E o fato é que desde que a libertação sexual explodiu como uma bomba atômica nos anos 1960, muitos casais católicos optaram por separar-se de seus cônjuges e ingressar em uma segunda união. Mais: muitas vezes esta segunda união tem muito mais evidentes características do que deveria ser um matrimônio cristão que a primeira: amor, desprendimento, desvelo pelo outro, etc.
Mais evidente ainda fica essa questão se se considerarem as realidades cruéis e desumanas que tantas vezes a relação conjugal fracassada traz para a vida das pessoas e sobretudo dos filhos, se os há. No entanto, a moral católica tem sempre afirmado, insistentemente, a excomunhão dos recasados, proibidos de participar efetivamente do sacramento da Eucaristia. Essa atitude um tanto inflexível – que como tal tem sido denunciada inclusive por autoridades da estatura do Cardeal alemão Walter Kasper – leva o novo casal a ver-se declarado em pecado e, pior do que isso, sem perdão. Ou seja, em uma situação pior do que um assassinato, já que neste caso, se o assassino se arrepende, é perdoado e pode aproximar-se novamente da comunhão eucarística.
No Brasil, a situação do matrimônio é bem grave. O Censo do IBGE de 2010 mostra que as uniões consensuais – ou seja, não sacramentais nem legais civilmente – são da ordem de 36,4%, ou seja, mais de 1/3 do universo de casais. E todos esses casais – de acordo com as respostas – desejam participar da Eucaristia, receber a absolvição e a comunhão.
Não admira que a expectativa em relação ao Sínodo e suas conclusões seja enorme. Está em questão uma nova maneira de conceber a pastoral familiar, o trato e a relação da Igreja com as famílias católicas. Mas, pode-se esperar que seja efetivada alguma mudança real quanto a este ponto? Uma tradição tão arraigada na vida eclesial pode realmente mudar?
Pessoalmente, creio que há razão para ter esperanças. O Papa Francisco, ao abrir o Sínodo, deixou claro o que esperava dos seus membros: sinceridade para falar, respeito, humildade para escutar. E uma atitude pastoral que seja realmente dedicada e misericordiosa para com os fiéis.
Um grande bispo teólogo, Monsenhor Bruno Forte, afirmou, em entrevista, que os aspectos doutrinais não podem ser minimizados, mas que a doutrina não tem valor abstrato em si mesma nem pode ser uma arma pesada. Pelo contrário, pode e deve ser sempre uma mensagem de salvação. Pois seu centro é o amor de Deus, a misericórdia. Isso é a fé da Igreja e esta, sim, é imutável. Uma fé que deve expressar-se olhando a realidade das pessoas concretas, reais, não como juízo inclemente, mas como amor e misericórdia em ato.
Tomara que o sentir de Monsenhor Bruno Forte seja certeiro e corresponda realmente às conclusões e resultados deste Sínodo, que apenas começa e ainda tem outra etapa para o ano que vem. Certamente será de extrema importância para que os casais em segunda união e as famílias que formaram se sintam acolhidas, acompanhadas e bem-vindas, e não rejeitadas e marginalizadas como se fossem criminosas.
Para que isso aconteça, confiemos no Espírito Santo, que nunca abandona a Igreja e está certamente presidindo os trabalhos deste sínodo. Amém.

Maria Clara Lucchetti Bingemer

Outubro, mes missionario!

Dimensão missionária da Igreja
No Brasil, há algumas décadas, a Igreja Católica Romana considera outubro como mês missionário. O objetivo, certamente, é levar os católicos a tomarem cada vez mais consciência de uma das dimensões fundamentais do discipulado ou seguimento de Jesus. A Igreja é, por natureza, toda ela missionária, nos lembrava há 50 anos atrás o Concílio Vaticano II. A dimensão missionária, explica o documento conciliar Ad Gentes, brota da missão do Filho e do Espírito Santo. O Pai manda, na plenitude do tempo, o seu Filho que nasce de mulher (Gl 4,4) e envia, através de Jesus (Jo 15,26), o Espírito (Jo 14,16). O Filho, por sua vez, envia os discípulos como missionários pelo mundo inteiro (Mc 16,15), os quais são revestidos da força do Espírito (At 1,8). Portanto, uma comunidade cristã que não é missionária, não é Igreja (ekklesía), ou seja, não é comunidade de fé convocada e reunida pela Santíssima Trindade. Pode ser um clube, uma associação de pessoas religiosas, um grupo de amigos, mas não Igreja, no sentido bíblico e teológico desta palavra.
Dizer que a Igreja é, por natureza, missionária implica saber e entender qual é a sua missão. A missionariedade decorre da missão. Qual é, então, a missão da Igreja? A mais antiga definição da missão da comunidade cristã, ou seja, da Igreja encontra-se no evangelho de Marcos: “Vão pelo mundo inteiro e anunciem a Boa Nova para toda a humanidade” (Mc 16, 15).
Três aspectos importantes da missão aparecem neste mandato que Marcos atribui a Jesus. Em primeiro lugar, o núcleo central da missão. Trata-se de “anunciar a Boa Notícia”. Mas, qual “Boa Notícia”? Lucas e Mateus nos dão a resposta. Segundo Lucas, a “Boa Notícia” é dirigida aos pobres e consiste em “proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista”. O objetivo da missão da Igreja é “libertar os oprimidos” e “proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc 4,18-19). Mateus, por sua vez, afirma que, para Jesus, o sinal da sua messianidade está exatamente nisso: “aos pobres é anunciada a Boa Notícia” (Mt 11,5). Fica, pois, evidente que a essência da missão da Igreja é, pela palavra e pela ação, contribuir para a libertação dos pobres e dos oprimidos. O restante deve ser apenas consequência disso. Portanto, entre a opção preferencial pelos pobres e a missão da Igreja há um vínculo indissolúvel. Separar as duas coisas é o mesmo que diluir o essencial da missão. Não por acaso o papa Francisco voltou a nos relembrar recentemente este aspecto (EG, 197), que estava sendo sepultado por uma Igreja Católica, que tinha decididamente se voltado para um estilo direitista e ultraconservador durante o pontificado de João Paulo II e Bento XVI. Há razão, pois, a CNBB quando afirma que “o caminho da redenção está assinalado pelos pobres” (Estudos 107, nº 153).
O segundo aspecto importante da missão, assinalado pelo texto de Marcos, é o fato de que a Igreja precisa pensar a missão como ação destinada ao mundo inteiro. Isso significa que o anúncio da Boa Notícia aos pobres deve chegar a todos os cantos da terra. A missão da Igreja deve ser tão marcante e impactante, a ponto de ressoar em todos os lugares de nosso planeta. Este aspecto supõe uma Igreja ousada, corajosa, que não fique trancada dentro dos templos (Jo 20,19), com medo de ser contaminada ou perseguida. Supõe uma Igreja profética, que não aceita fazer pactos com os ricos e poderosos desse mundo, mas que se declara e assume com coragem a causa dos pobres, denunciando os ricos (Lc 6,24-25) e os exploradores dos pobres (Tg 5,1-6). Uma Igreja “frouxa”, medrosa, comprometida com os ricos e poderosos não é e nunca será missionária.
O terceiro aspecto da missão evidenciado por Marcos tem a ver com os destinatários: o anúncio da Boa Notícia deve ser dirigido a toda a humanidade. Todos os homens e todas as mulheres têm o direito de receber da Igreja este anúncio. E não é preciso que se “convertam” ao catolicismo. Em suas próprias culturas, em suas próprias religiosidades, em suas situações concretas, os povos e as pessoas têm o direito de receber da Igreja o testemunho de uma opção firme e decida em favor dos pobres. Este é um tipo de anúncio que todo mundo entenderá, independentemente de sua língua e de sua cultura. E é isso que falta à Igreja, especialmente à Igreja Católica. Ela não consegue sinalizar para a humanidade que está decididamente do lado dos pobres, combatendo toda forma de opressão e promovendo a libertação integral das pessoas e dos povos. Daí o fracasso da sua missão nas mais diversas partes do mundo, inclusive nos países do hemisfério sul, uma vez que falar aqui de cristianismo, de Igrejas, é o mesmo que falar de colonialismo. E as pessoas mais inteligentes, em número cada vez maior, que habitam o sul do planeta, sabem muito bem o que significou para seus países, para suas culturas e para seus povos o colonialismo implantado pelos países “cristãos”.
E não estou dizendo isso por acaso. Todos sabemos que a partir do momento em que a Igreja, contrariando a vontade de Jesus, começou a imitar e a copiar o estilo dos poderosos deste mundo (Mc 10,42-44), ela passou a entender a missão como “plantatio ecclesiae”, ou seja, como mero transplante do estilo europeu de Igreja para as demais regiões do mundo. Fazer missão, missionar, era o mesmo que impor às demais culturas a religião católica. A missão consistia em destruir e eliminar por completo as culturas, tidas como idolátricas, selvagens e pagãs, impondo a ferro e fogo o catolicismo. Foi o que aconteceu, por exemplo, na América Latina, ainda hoje marcada pela violência e pelos massacres praticados contra os indígenas pelos conquistadores espanhóis e portugueses, em nome da fé católica.
Lamentavelmente a maioria dos bispos e dos padres ainda entende a missionariedade da Igreja nesta perspectiva colonialista. Acreditam piamente que fazer missão é o mesmo que fazer proselitismo, ou seja, converter o maior número possível de pessoas para o catolicismo. A maioria deles não tem presente a perspectiva bíblica da missão, sobretudo no que diz respeito à questão do seu significado como anúncio de uma Boa Notícia para os pobres e oprimidos. Várias vezes, em reuniões de bispos, pude escutar alguns deles questionando o modo de evangelizar de instituições como o CIMI e a CPT, que optam pelo diálogo com as culturas e não pelo proselitismo barato. Esses bispos são do parecer que se deve chegar nesses espaços fazendo proselitismo, ou seja, convertendo de qualquer jeito ao catolicismo as pessoas que ali estão. Minha posição foi sempre a de que esse modo de “evangelizar” é de grupos fundamentalistas cristãos e não de verdadeiros discípulos de Jesus.
Talvez ainda precisamos aprender com os grandes santos em que consiste realmente a missão. Lembro-me, neste instante, de Charles de Foucauld, cuja vida foi um mergulho profundo no escondimento e no silêncio. Mas duvido que alguém tenha sido mais missionário do que ele. O irmão Carlos de Jesus entendeu, como santa Teresinha do Menino Jesus, que a missão é essencialmente amar o próximo e não fazer proselitismo. Por isso não tinha medo de dizer que ele estava ali no deserto não para converter os tuaregues, mas para compreendê-los. Tinha a convicção, dizia em 1905, que falar de Jesus para eles significaria afugentá-los. Não que o nome de Jesus, por si só, assustasse os mulçumanos, mas a associação que eles faziam de Jesus com os bárbaros e violentos europeus cristãos. De fato, naquele mesmo período a França dominava a região e praticava as maiores barbaridades contra os nativos, tratando-os como escravos e como objetos quaisquer. Para o irmão Carlos, numa situação como essa, bastava que os tuaregues sentissem que ele era apenas seu amigo e seu serviçal. Isso já era missão, já era evangelização.
“O amor é o meio mais poderoso de atrair o amor, porque amar é o meio mais poderoso de fazer-se amar” (Charles de Foucauld). Assim, continua o irmão Carlos de Jesus, a melhor forma de realizar a missão da Igreja é amando, mesmo sem dizer uma palavra: “sem nunca dizer-lhes uma palavra de Deus, nem de religião, sendo paciente como Deus é paciente, sendo bom como Deus é bom, amando, sendo um irmão cheio de ternura, e rezando”.
Faço votos de que o mês missionário nos ajude a entender tudo isso. Faça-nos perceber que a missão não é algo a mais a se fazer, uma pastoral a mais na Igreja, mas uma dimensão que deve perpassar toda a vida da Igreja. Faça-nos entender que missionar não é fazer prosélitos, mas anunciar a Boa Notícia da libertação dos pobres e oprimidos a todos os homens e mulheres da Terra. E acima de tudo nos faça entender que “a Igreja não é o centro. Cristo é o centro!” (Estudos da CNBB 107, nº 148). E por essa razão é indispensável “passar de atitudes fechadas à formação de uma nova cultura, que constrói cidadania no diálogo e que não tem medo de acolher o que o outro, o diferente, tem a oferecer” (Ibid., nº 157).
A missão, quando entendida desta forma, faz a Igreja deixar de se um amontoado de delirantes alienados, carolas e de beatos para ser uma Igreja laical, isto é, uma Igreja comprometida em testemunhar Jesus Cristo “em todas as circunstâncias, no interior da comunidade humana, tão marcada por dinâmicas excludentes, indiferenças, buscas desenfreadas de consumo e satisfação” (Ibid., nº 163). Quando se entende a missão na perspectiva bíblica a Igreja deixa de ser “um clube de eleitos” (Ibid., nº 146), uma “alfândega controladora da graça de Deus” (EG, nº 47), para ser “uma Igreja pobre, para os pobres, com os pobres e os que se encontram nas periferias existenciais” (Estudos da CNBB 107, nº 151).

José Lisboa Moreira de Oliveira

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

SOLENIDADE DE NOSSA SENHORA APARECIDA (ANO A – 12.10.2014)

O desejo de Maria é que os povos tenham vida abundante.

Nesta segunda semana do mês dedicado à animação missionária das nossas comunidades temos a significativa festa de Nossa Senhora Aparecida, a Mãe Negra de um país multicultural mas não totalmente livre da praga do racismo. Mergulhemos no acontecimento da Mãe Aparecida e deixemo-nos iluminar e orientar pela Palavra de Deus, dispostos a acolher o que ela quer nos ensinar sobre a missão nos tempos atuais. Não seria tempo de proclamar que o cumprimento cego das leis de mercado favorece apenas a festa de alguns, à custa da miséria de muitos?
O evangelista João nos lembra discretamente que houve uma festa de casamento, para a qual Jesus, sua mãe e seus discípulos estavam convidados. Ao longo da história, o povo de Deus soube captar essa presença em inúmeros momentos e numa enorme diversidade de cores. E descobriu em Maria os traços de uma mulher que se apresenta como discípula do próprio filho, como mãe da comunidade fiel, como companheira de caminhada, como consoladora dos aflitos,  como conselheira admirável, como estrela de uma manhã radiosa, como arca da aliança entre povos divididos....
Maria gosta de ser discreta, mas nunca indiferente. Mesmo quando ninguém vê que falta vida e alegria, ela vê e fala. Maria vê que nem todos têm acesso à festa da vida e compreende que a orgia dos opressores e dos indiferentes não pode durar para sempre. Somente a misericórdia de Deus deve se estender de geração em geração! Maria nos ensina que faz parte da tarefa dos missionários alertar para a falência dos sistemas que confiam cegamente na concorrência e no acúmulo, e a denunciar a carência desumana à qual grandes multidões estão acorrentadas.
Como mãe e intercessora, Maria pede a intervenção de Jesus, mas nem sempre o faz com palavras. O povo brasileiro soube entender que, ao assumir a cor escura dos negros escravizados, Maria estava gritando em alto e bom tom a dignidade que lhes era negada e denunciando a violência do sistema escravagista. Quando até os discípulos do seu Filho escravizavam os negros em seus conventos e fazendas, Maria se fez presente na dor e na cor própria deles. Este foi um grito profético que dizia que faltava vinho, que o sangue de muitos era derramado em benefício de poucos.
Como missionários, temos muito a aprender com Maria. São reais os riscos de pensar e desenvolver a missão como um projeto de tutela de povos considerados sempre menores e inferiores; ou como uma empresa colonialista ou desenvolvimentista, que confunde modernização técnica com humanização; ou ainda como um projeto doutrinal e fundamentalista, centrado na Igreja e nas suas leis e tradições, com o objetivo de expandir a Igreja e não de servir ao povo. A missão da Igreja não pode ter outra meta que não esta: lutar por abundante vida para o povo de Deus.
Maria nos ensina também que precisamos lembrar ao povo que a única alternativa às falências e carências da nossa sociedade é fazer o que Jesus pede. O caminho da liberdade pessoal e social é a palavra-ação de Jesus Cristo: a abertura à intervenção criadora de Deus; a confiança na própria dignidade e capacidade; a solidariedade e a colaboração; a convicção de que tudo aquilo que é feito em vista do bem dos outros produz seus frutos, cedo ou tarde. “Façam o que ele mandar...” É isso que os missionários precisamos lembrar e relembrar ao mundo e à Igreja.
Maria pede aos servidores que façam o que Jesus diz. E, mesmo sem compreender o sentido da ordem recebida, eles o fazem. O resultado da acolhida desta Palavra é vinho bom e abundante, fraternidade e alegria duradouras, o reino de Deus chegando antecipadamente em forma de sacramento. Isso confirma minha convicção de que a missão tem como objetivo fundamental ajudar os povos a descobrir e colocar em ação seus próprios recursos e possibilidades de gerar vida em benefício de todas as criaturas, e de fazê-la sempre mais abundante e boa.
Deus, pai e mãe, que em Maria revelaste tua ternura feminina e materna. Guia e acompanha tua Igreja na subida para a festa da Aliança e na descida para a Cafarnaum do nosso cotidiano. Abre nossos ouvidos à tua e nossa Mãe, que, atenta às dores e necessidades da humanidade,  nos pede para ir além dos terços e missas e fazer o que seu filho nos ordena. E ajuda-nos a perceber os pequenos e promissores sinais do teu reino na concretude incontornável da vida cotidiana. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Ester 5,1-2; 7,2-3 * Salmo 44 (45) * Apocalipse 12,1-16 * João 12,1-11)

sábado, 4 de outubro de 2014

Sobre vinhas e vinhateiros

A vinha é boa... Os chefes é que são ruins

Muitas comparações foram feitas para falar das atitudes e da história do povo de Israel e da sua relação amorosa (mas cheia de tempestades) com o seu Deus. A alegoria da vinha que encontramos no profeta Isaías (Is 5,1-7) era entre as mais conhecidas pelo povo. A vinha é Israel, cheia de ingratidão porque não produz os esperados frutos de justiça, e sim violência e opressão, apesar de todos os cuidados que Deus tem para com ela. Esta alegoria aparece de novo no cap. 21 do evangelho de Mateus. Em Mateus, para compreender melhor o desenvolver do drama, podemos notar a sequência das narrativas no capítulo 21: Jesus entra em Jerusalém (Mateus 21,1-17) e vai logo ao templo para expulsar os vendedores, entrando em conflito direto com os chefes do povo. Em continuidade, vem outra metáfora do povo e suas instituições, o episódio da figueira estéril (Mateus 21,18-22). Depois, segue a parábola dos dois filhos e o debate de Jesus com as autoridades sobre o batismo de João (Mateus 21,23-27), para, enfim, chegar ao texto deste domingo, onde Jesus retoma a imagem da vinha. É, portanto, um capítulo onde os conflitos vão se aguçando fortemente, tornando Jesus cada vez mais incômodo para as autoridades.
A história poderia ser diferente
Jesus retoma esta alegoria, mas mudando o acento: ele não acusa a vinha de não produzir uva, como o texto de Isaías, e sim os agricultores, os responsáveis pela produção. São os arrendatários que desviam o fruto da videira e sonegam o pagamento ao patrão. Mas aqui é bom fazer uma distinção e, para entender melhor, vou contar uma história.
Antigamente, na região do mediterrâneo, quando era a época da colheita da uva, as famílias dos agricultores se juntavam para fazer uma vindima mais rápida e fazer um trabalho de mutirão nas terras dos vizinhos. Muitas vezes participavam deste mutirão também pessoas que não tinham terra e sempre havia muitas crianças pulando, brincando e querendo ajudar a colher a uva. Ao final do dia, os arrendatários arrumavam um saco e colocavam dentro alguns cachos de uva para este povo levar para casa e as crianças poderem comer, dizendo aos amigos: "Levem, enquanto o patrão não vê". É claro que, se fosse por ele, o patrão, nem um grão desta uva seria doado, porque só ele "tem direito" ao lucro. Assim, eu acredito, Jesus tinha vivido no seu tempo de criança: participando de uma festa feita com os dons da caridade escondida, mas que vem do coração e que se preocupa com a vida do povo. A ganância do patrão se preocupa somente com o lucro e não com a vida das pessoas que trabalham na sua terra.
Por isso, Jesus não acusa a vinha (isto é, o povo) de não produzir frutos, mas acusa diretamente os que são responsáveis pela organização e pela produção deste mesmo povo. Este aspecto pode ser entendido melhor se a gente pensa no dono da vinha como sendo Deus, os arrendatários sendo os chefes do povo, enquanto a vinha é o povo que deve ser conduzido.
Continuando com a comparação feita na história, o povo simples, representado pelos agricultores que trabalham a terra e cultivam a videira, pode até errar, mas sempre tem no fundo do coração uma atitude de defesa da vida, de compreensão e partilha com o irmão sofredor. Os que estão dispostos a destruir, mentir, perseguir e até matar são justamente os que têm construído os valores de suas vidas em cima da opressão e da exploração do povo. O fruto da vinha, uva que deveria ser fonte de alegria e vida, se torna assim fonte de destruição e morte.
Jesus também veio para a colheita... mas foi jogado fora!
Compreende-se melhor agora porque os emissários do dono (os profetas ao longo da história de Israel) foram maltratados, e até o próprio filho foi morto e "jogado fora da vinha". Assim também Jesus, quando veio para reclamar os frutos da justiça e proclamar o ano de graça do Senhor (Lucas 4,16-21), foi "jogado fora dos muros de Jerusalém, no monte Calvário" e crucificado (Hebreus 13,12). Na lógica da religião do templo, assim como estava organizada, ele não podia vir para desestruturar um sistema tão bem montado, sistema que prendia a consciência das pessoas e garantia assim o lucro dos grandes e dos que manipulavam até a religião e o nome de Deus.
É por causa da dureza do coração destas pessoas que a vinha lhes foi tirada e dada a quem fosse entregando a produção. Então a vinha foi colocada sob o cuidado de outros administradores: os pagãos, que tiveram a atitude de acolher o anúncio do Reino, diferentemente das autoridades do povo. E o texto acrescenta que isso se realizou numa lógica que já estava nas escrituras: a pedra jogada fora pelos construtores tornou-se pedra angular do edifício (Salmo 118,22-23). Podemos constatar aqui a lógica diferente, a da morte e ressurreição de Jesus, sobre a qual está fundado o novo povo de Deus (Atos 2,33; 1 Pedro 2,7).
Fazer parte da vinha de Deus não é privilégio
Abrindo agora o sentido desta parábola para nós, podemos reparar que Deus esperava a justiça de Israel, mas precisou colocar outros administradores para poder colher estes frutos. Os frutos da justiça consistem antes de tudo em "escutar e pôr em prática" tudo o que Jesus ensinou (Mateus 7,21-27; 17,5) e isso produz amor sem fingimento, união fraterna, respeito e valorização da dignidade humana, partilha...
Um segundo aspecto importante: não há mal que não venha por bem. São Paulo, na carta aos Romanos (Romanos 11,11), nos diz que é justamente graças à dureza de coração destas pessoas que a Boa Nova foi aberta e anunciada aos pagãos. Deus, portanto, não rejeitou "os judeus" - pensamento que ao longo da história provocou tanta discriminação, sofrimento e perseguição, e até milhões de mortes - mas rejeita os líderes, os chefes, de ontem e de hoje, que fazem do nome de Deus uma oportunidade para dominar e se enriquecer à custa da boa fé do povo. É claro que todos têm a própria parte de responsabilidade, mas aqui estamos falando de uma estrutura social e religiosa de dominação.
Dito isto, não podemos ler esta parábola com autossuficiência porque a mesma coisa pode acontecer com a gente. Basta olhar a história do nosso continente, a América Latina. Tinha sido entregue a "administradores" para que as suas populações fossem evangelizadas e, no entanto, os seus frutos foram despojados pela violência institucionalizada. Como cristãos, não temos nada para nos sentirmos melhores do que os outros. Ainda hoje, o Brasil é considerado o país mais cristão do mundo... e onde estão os frutos de justiça?
Até dentro de nossas igrejas existe o perigo de querer guardar os frutos para si. Deve ficar bem claro que fazer parte da vinha de Deus não é um privilégio, mas uma missão que requer compromisso para produzir "frutos de justiça".

Pe. Luís Sartorel (CEBI)

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

27° DOMINGO DO TEMPO COMUM (ANO A – 05.10.2014)


Não dixemos que nos roubem a alegria da missão!

A Igreja católica tomou consciência de que a missão faz parte do seu código genético, e proclama que esta não é apenas mais uma das suas múltiplas tarefas, nem uma responsabilidade de apenas algumas pessoas. Em 2007, na Conferência de Aparecida, os bispos da América Latina e do Caribe colocaram esta questão no centro das preocupações da Igreja na América Latina e convocaram todos os seus membros a serem discípulos e missionários de Jesus Cristo. Na sua mensagem para a jornada mundial das missões, o papa Francisco insiste mais uma vez: “a Igreja nasceu em saída.”
Na perspectiva do evangelho de hoje, a missão não consiste propriamente em semear a mensagem do Reino de Deus onde o cristianismo ainda não lançou raízes, mas em ir aos arrendatários da “vinha do Senhor” para recolher os frutos esperados. Como missionários, somos enviados àqueles que foram investidos de autoridade ou ocupam posições de liderança política e religiosa para verificar se realmente se dedicam ao povo. A missão é ir àqueles que se apropriaram da vinha do Senhor. Uma missão que tem uma clara dimensão crítica e profética.
Esta missão é tão urgente quanto difícil e conflituosa. A parábola de Jesus menciona as agressões e espancamentos sofridos pelas pessoas enviadas. Quando os missionários não se contentam em propor doutrinas e celebrar ritos, correm o risco de serem pesssoas indesejáveis e sofrerem violências nas mãos dos ‘malvadamente maus’ ou ‘canalhas’, como diz Mateus. A história remota e recente também registra as calúnias e torturas, as prisões e o martírio sofridos pelos profetas e testemunhas. Em alguns países da África e do Oriente Médio, mas não só, isso continua terrivelmente atual.
Digamos uma vez mais, para que fique claro: a missão como a entendemos hoje não consiste em colher frutos para a instituição eclesial ou multiplicar suas agências, mas em cobrar o estabelecimento do direito de Deus no mundo: a implantação da justiça para os pobres, o reconhecimento da dignidade dos desprezados, a primazia dos últimos, o cuidado e a bondade gratuita a todas as criaturas. Se estes frutos não forem encontrados, o Reino de Deus deve ser subtraído às elites e autoridades constituídas e entregue a pessoas que produzam esses frutos.
Jesus é o missionário enviado pelo Pai, modelo e o caminho a ser seguido por todos os missionários. Ele não se negou a pagar o preço que a missão lhe exigiu: foi caluniado, desprezado, descartado e crucificado. Foi tratado como uma pedra que os pedreiros descartam porque consideram sem valor, inadequada e problemática no seu projeto de sociedade e de mundo. Mas, para ele, isso não se configurou numa tragédia. Pelo contrário, a rejeição acabou nos revelando sua opção pessoal e o princípio norteador da sua vida.
O princípio cardeal da missão de Jesus e dos seus discípulos é ir solidariamente ao encontro dos rejeitados e excluídos para estabelecer, em nome do Pai que os envia, uma primazia e uma dignidade que jamais prescreve. Os grupos humanos e sociais aparentemente problemáticos e disfuncionais são a pedra-de-toque do Reino de Deus. Sem o anúncio de uma Boa Notícia aos pobres e sem a reversão social que coloca os últimos em primeiro lugar, não há Igreja nem missão fiel a Jesus. É daqui que brota a alegria cristã, alegria inerente ao Evangelho, como vem sublinhando o papa Francisco.
E esta é a perspectiva do trabalho missionário: subverter os esquemas, inverter as prioridades, afirmar os excluídos como indispensáveis no projeto de um mundo que se queira humano. É nisso que a Igreja precisa empenhar de forma contínua todos os seus membros, todos os seus esforços e os melhores meios de que dispõe. A missão segue seu caminho de baixo para cima, da periferia para o centro, dos últimos para os primeiros. A parábola da pedra rejeitada, mas recolocada por Deus no centro, é a parábola da missão. Não deixemos que nos roubem essa alegria!
Deus pai e mãe, cuidador e amante apaixonado da tua vinha: continua a suscitar homens e mulheres conscientes da própria fragilidade e da força do teu amor e envia-os para cuidar do teu povo. Que eles não desanimem quando forem tratados como pedras inúteis na construção dos muros. Que eles sintam a companhia inspiradora de Teresinha, André, Ambrósio, Mateus, Francisco e tantos outros. E que esta comunidade que nasce do lado aberto do teu filho empenhe seus melhores membros e meios na missão de testemunhar a comunhão fraterna e de anunciar a boa notícia aos pobres. Assim seja! Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf
(Profeta Isaías 5,1-7 * Salmo 79 (80) * Carta aos Filipenses 4,6-9 * Mateus 21,33-43)