quarta-feira, 14 de março de 2012

Quarto Domingo da Quaresma

Que o SUS garanta saúde e vida ao povo brasileiro!
(2Cr 36,14-16.19-23; Sl 136/137; Ef 2,4-10; Jo 3,14-21)

Um juíz implacável, impassível, sem coração, sempre pronto a defender a universalidade da lei e a pronunciar sentenças irreversíveis: essa é a imagem de Deus que muitos cristãos têm e divulgam. Mas, no Evangelho, Jesus diz claramente que Deus enviou seu Filho ao mundo para salvá-lo, para conduzi-lo à vida, e não para condená-lo. A gratuidade do amor de Deus é que nos salva. Como experimentar e testemunhar a Boa Notícia da gratuidade e da benevolência de Deus no contexto da luta por uma saúde pública e de qualidade a serviço de todo o povo brasileiro? Um dos objetivos da Campanha da Fraternidade é exatamente este: despertar nas comunidades cristãs a reflexão sobre a realidade da saúde pública em vista da defesa do SUS e da reinvindicação do seu adequado funcionamento...
“Deus enviou seu Filho não para condenar o mundo...”
Pessoas doentes e dobradas pelo sofrimento as vemos por toda a parte. Umas condenadas à miséria presente e a um futuro incerto; outras condenadas a um presente vazio e a um futuro que assusta. Umas forçadas a viver em casa como se estivessem numa prisão e outras condenadas à prisão por qualquer coisa. Umas condenadas por sua cor ou orientação sexual e outras pela falta de chances de estudo, por pensar diferente ou por querer desmascarar a hipocrisia.
A tentação é grande, e se não formos eternamente vigilantes acabamos dividindo o mundo entre culpados e inocentes, merecedores e indignos. E é fácil encontrar na Bíblia versículos isolados que se prestam a fundamentar nossas sentenças inapeláveis. E, via de regra, culpadas são as pessoas diferentes, as que tentam caminhos novos, as que questionam nossos interesses e privilégios, as que amargam derrotas e se curvam sob dores as mais diversas, as pessoas disfuncionais de toda sorte.
Como nos custa entender que Deus se rege por uma gramática diferente! É incrível a facilidade com que os homens (sim, no masculino!) que dirigem as igrejas e se apresentam como procuradores de Deus sentam na cadeira de juiz, cadeira que o próprio Jesus recusou. Com que frequência nos escondemos por trás de máscaras de benfeitores e imparciais e estamos prontos a denunciar o cisco no olho dos outros sem darmo-nos conta do nosso próprio lixo. Não, esse não é o jeito de Jesus Cristo!
“É preciso que o Filho do Homem seja levantado...”
O rosto do Messias é outro, a prática de Jesus é diversa. Ele recusa a cadeira de juiz e senta-se ao lado dos acusados, como aliado e defensor. Isso é evidente desde a estrebaria, onde os proscritos o visitaram, até a cruz, quando foi moeda de troca por condenado e compartilhou o calvário com outros dois. O Filho de Deus desceu todos os degraus para alcançar o ser humano no nível mais baixo, no lugar de culpado e de devedor. E não o fez insensível ou com o dedo em riste, mas de braços abertos.
O que deve nos impressionar não é o fato de que Jesus tenha subido ao céu, mas de que Deus tenha descido definitivamente à terra. E ele desceu tanto que, mais que assumir a frágil e contraditória condição humana, assumiu a carne dos/as condenados/as para declará-los/as justificados/as. Deus desceu tanto, que adentrou solidariamente no inferno vivido pelos/as condenados/as à morte ou a uma vida que tem mais a ver com um lento processo de morte. Desceu tanto que o levantaram numa cruz!
É para esse homem levantado na cruz dos malditos e entre dois condenados que somos chamados/as a voltar nosso olhar. Eis aqui o Messias, aquele que sola a língua aos mudos, abre o ouvido aos surdos, resgata a vida dos condenados à morte, anuncia boas notícias aos pobres, cura os doentes, proclama o ano da graça de Deus! Mudo, ela pronuncia palavras incomparáveis. Imóvel, abraça e acolhe os/as condenados/as de todos os tempos e rincões. Eis o ser humano! Eis o corpo de Deus!
“Deus amou de tal forma o mundo que entregou o seu Filho único...”
Não desperdicemos esta quarta e insuperável lição na escola da caminhada pascal. Começamos acompanhando Jesus no deserto para aprender a vencer as tentações. Subimos com ele no Tabor para apreder a lição da humildade e do serviço. Fomos com ele ao templo para que ele tirasse da nossa vida toda superficialidade, falsidade e autoritarismo. Neste domingo ele nos ensina que lamentar débitos ou exigir créditos não faz o menor sentido. “Vocês foram salvos pela graça”, insiste São Paulo, e isso para que ninguém se encha de orgulho. Deus é misericórdia e nos ama sem medida.
É Jesus quem diz que “Deus amou de tal forma o mundo que entregou seu Filho único...” Trata-se do mundo em sua globalidade, sem distinções entre culpados ou inocentes, homens ou mulheres, devedores ou merecedores. Em Jesus Cristo se manifesta de forma clara a glória de Deus, e essa glória não é outra coisa que o amor que se faz dom e acolhida sem nenhum tipo de condição ou exigência. Ele nos deu a vida “quando estávamos mortos por causa de nossas faltas”, sublinha Paulo.
“Todo aquele que nele acreditar, nele terá a vida eterna”
Em Jesus Cristo a salvação é gratuita, mas é também geradora gratuidade. Na fé cristã não há espaço para a passividade irresponsável. Acreditarnessa relação libertadora de Deus conosco implica na adesão a este dinamismo de gratuidade, no empenho pessoal e profundo para transformar esse princípio em pedra angular do comportamento pessoal e da organização eclesial e social. E isso é indispensável para que não sejamos tragados pela morte e não sejamos geradores de morte.
Este rio de graça, este sol de justiça que nos vem de Deus em Jesus Cristo começa por desmascarar nossos pretensos merecimentos, avança revelando nossa verdade mais profunda e termina capacitando-nos a agir como homens e mulheres novos. “Fomos criados para as boas obras” diz São Paulo, e precisamos nos ocupar delas. Crer é aderir à proposta de Jesus, e aderir é agir. Quem não decide somar sua ação à ação libertadora de Deus acaba desperdiçando a própria vida.
O amor de Deus feito carne no alto da cruz não tolhe a liberdade do ser humano. Ele apenas toma o lugar ocupado pela lei e se torna luz que orienta as nossas ações e opções. Nada está definido de ante-mão e tudo deve ser discernido. Nossas ações são guiadas e julgadas por essa  luz, a única capaz de revelar a bondade ou a maldade das nossas ações. Aderir a Jesus Cristo significa crer na dignidade inerente a cada pessoa humana e nas suas possibilidades positivas, e esse é o caminho da vida.
“A luz veio ao mundo mas os homens preferiram as trevas à luz”
Temos sempre a tentação de identificar a lei com a luz. “A lei é clara”, repetimos com frequência. Todas as leis são frutos dos consensos políticos e do equilíbrio de forças num determinado momento. Em última instância, são regras impostas pelo grupo mais forte, aquele que tem mais recursos para convencer os demais. Mais que luz, a lei é fogo, ela queima. A luz verdadeira, aquela da qual precisamos nos aproximar para que nossa bondade radical seja confirmada, é aquela afirmada na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ou melhor, é a prática amorosa de Jesus Cristo.
Não temos outra lei que possa ser caminho seguro de vida e de liberdade. Não há outra norma que possa conduzir à nova sociedade. Mas há aqueles/as que, para disfarçar a malícia dos seus projetos e a estreiteza dos seus interesses, fecham os ouvidos a essa Palavra e odeiam essa luz, mesmo que queiram demonstrar o contrário. Estas pessoas acabam produzindo frutos amargos que enchem a mesa dos outros: dominação, desigualdade, exclusão, violência, insegurança.
O Messias que acolhemos como caminho é aquele que desceu do céu aos infernos e, permanecendo fiel ao seu amor pelo mundo, foi elevado entre os condenados. Esse dinamismo de descida e esvaziamento solidário é nossa única lei, uma lei que não vem imposta de fora pois está no próprio coração da vida. Essa é a luz a partir da qual a verdade dos nossos projetos e práticas vêm à tona. Outros caminhos são máscaras, trevas e disfarces que escondem nossa verdade, violentam as pessoas e conduzem à morte.
“Tinha compaixão do seu povo e da sua morada...”
Deus pai e mãe, rico em misericórdia: é imenso o amor com que nos amas! Enviaste teu filho amado para nele todos/as tenhamos vida e saúde sem limites! Dá-nos um amor assim intenso e lúcido, a fim de que sejamos capazes de dar continuidade a este dinamismo que salva e renova mundo, lutando por um sistema de saúde público e de qualidade. Não permitas que sentemos e choremos passivamente nosso desterro, mas coloca-nos a caminho para reconstruir o mundo na força do teu amor. Amém! Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf

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