A loucura de Deus é mais sábia que os homens...
À primeira vista, parece mau gosto exaltar a cruz: ela
lembra sofrimento, peso, morte, violência. Não dá pra esquecer que a cruz era o
instrumento mediante o qual o império romano torturava e aplicava a pena de
morte aos rebeldes políticos e aos escravos fugitivos, e que, na cruz, foi
torturado e executado Jesus de Nazaré, a quem chamamos Cristo. Mas, desde esse
fato, ocorrido mais ou menos no ano 30 da era cristã, sem perder suas marcas
violentas, a cruz adquiriu um sentido novo: nela o próprio Deus padeceu
solidariamente e selou uma nova e eterna aliança com a humanidade; nela o amor
de Deus alcançou o inalcançável e se tornou irreversível.
Do ponto de vista da liturgia católica, a semana que
vai de 13 a 20 de setembro é interessante: celebramos a exaltação da cruz no
dia 14; fazemos memória de Nossa Senhora e suas dores ao pé da cruz no dia 15;
recordamos Nossa Senhora da Salette e suas lágrimas no dia 19. Começamos com a
glória da cruz, passamos pelas dores assumidas de forma humana e solidária e
termimanos com as luminosas lágrimas da compaixão. Estas celebrações adquirem
seu sentido cristão e libertador somente quando são relacionadas com a vida,
morte e ressurreição de Jesus Cristo.
Para o império romano, a cruz era um sinal inequívoco
de condenação de quem era considerado rebelde e perigoso. Para os judeus, era o
sinal trágico da maldição e do abandono por parte de Deus, um escândalo para a
fé. Mas, para os cristãos de todas as denominações, é a memória de Jesus, a
prova irrefutável do amor de Deus. “Deus amou de tal forma o mundo que entregou
seu filho único para que todo o que nele acredita não morra, mas tenha a vida
eterna.” No amor do Filho está o amor do Pai. A cruz imposta ao Filho é carregada
também pelo Pai, que chega à forma extrema do amor.
À luz do que aconteceu com Jesus Cristo, o sentido da
cruz não pode jamais ser a afirmação de um poder nem um apelo à submissão.
Antes, é memória acusatória da violência dos poderes instituídos e convite à
resistência profética frente às instituições que oprimem. Exaltamos a cruz
porque nela o amor de Deus pela humanidade superou todas as possibilidades.
Recordamos Nossa Senhora das Dores para ressaltar sua solidariedade e presença
junto às pessoas que sofrem. Celebramos Nossa Senhora da Salette para não
esquecer que a verdadeira beleza está na compaixão.
No hino da carta de Paulo aos Filipenses, a comunidade
cristã sublinha que Jesus Cristo não se apegou a privilégios nem hierarquias:
apresentou-se como simples pessoa humana, sem nenhum título; assumiu o lugar
dos últimos, dos escravos; não fugiu diante da ameaça da morte violenta e
desceu ao inferno mais profundo, escuro e degradante. E ele não percorreu esse
caminho por razões filosóficas ou ascéticas, mas por causa do amor compassivo e
soliário pelos mais frágeis e desprezados dos filhos de Deus. O amor esvazia,
aproxima, trata o outro como igual, suscita e sustenta o serviço.
Na cruz contemplamos a glória de Deus, a expressão
máxima de sua pró-existência, do seu amor. A glorificação não é uma subida
posterior à descida, uma plenitude posterior ao esvaziamento, mas a própria
descida e o próprio vazio solidários. A exaltação de Jesus é sua crucifixão.
Sem isso, a ressurreição teria sido indigna de Deus, pois seria a afirmação de
poderes e privilégios. Na cruz, Deus que grita silenciosamente: “Eu não condeno
ninguém! Eu amo cada uma das minhas criaturas, e meu amor não tem limites.
Todos são meus filhos e filhas, e jamais perderão essa dignidade!”
É por isso que, diante de um dinamismo e de um evento
tão maravilhoso e emancipador, caímos de joelhos. E não porque nos sintamos
humanamente anulados, mas porque intuímos que estamos diante do que há de mais
belo, profundo e verdadeiro a respeito de nós mesmos. Jesus é a realização
plena daquilo que somos chamados a ser. Nele, não existe pobre e proscrito que
não possua dignidade. Esse homem semelhante a nós, esvaziado e solidário, servo
e crucificado, é Senhor porque nenhum outro merece nossa adesão, nenhum outro
pode dar-nos lições que libertam e constroem.
Jesus de
Nazaré, Deus despojado de todo poder e privilégio, homem elevado à cruz por
compaixão solidária! Que o sinal da cruz que fazemos frequentemente,
relacionando a cruz com o nome de Deus tri-uno, seja sempre carregado do seu
sentido cristão: o propósito de pautar nossa vida e nossas decisões pela
compaixão e pelo serviço, marcas registradas da tua existência e glória dos
homens e mulheres livres. Que o sinal da cruz diga a nós mesmos e a quem quiser
entender que é por esse caminho que a humanidade garantirá liberdade e vida
para todos. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
(Livro dos Números 21,4-9 * Salmo 77 (78) * Carta
aos Filipenses 2,6-11 * Evangelho de São João 3,13-17)
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