quarta-feira, 23 de março de 2016

ANO B – TRÍDUO PASCAL: VIGÍLIA DA RESSURREIÇÃO – 26.03.2016

A pedra rejeitada tornou-se princípio e fundamento da casa.

Como quando falece uma pessoa querida, reunimo-nos hoje em vigília, marcados pela dor da perda, recapitulando a história da salvação, regando as frágeis sementes de esperança que nos restam. Acompanham-nos muitas testemunhas que nos antecederam nessa travessia. Mas a vigília sempre nos possibilita também assumir a herança humana e espiritual de quem partiu, levantar o olhar, contemplar o horizonte e encontrar forças para continuar a caminhada. Aqui estamos, acariciando o pequeno fio de esperança: “Eu sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente...”
É uma ilusão inocente ou maldosa imaginar que nossa vida individual e social muda num golpe de mágica. A ação criadora de Deus é sempre lenta, e avança numa luta sem tréguas contra o vazio, o caos e o abismo. Como os hebreus fugindo do Egito, quem luta se vê frequentemente encurralado, com o mar intransponível à frente e as tropas ameaçadoras atrás. Nossa experiência ainda hoje é de que existem pessoas lutadoras e iniciativas promissoras, mas são frágeis e estão muito dispersas, como o povo de Israel no cativeiro da Babilônia. E sem falar nas perseguições e linchamentos judiciais e midiáticos, que querem abortar mesmo os mais frágeis projetos de mudança. Onde estão os sinais da páscoa?
O vazio da sepultura não é prova da ressurreição, mas convida a perceber que as marcas dos pregos e o corpo torturado não são a última palavra de Deus sobre a história. Na tumba vazia, anjos e mulheres estão anunciando que o caos do lixo pode dar lugar a uma criação harmoniosa, que o mar ameaçador pode ser atravessado a pé enxuto, que os grupos dispersos podem ser reunidos, que os crucificados caminham à nossa frente e vislumbram novidades em gestação. Precisamos abrir-nos às novas possibilidades escondidas no segredo do átomo, no íntimo das pessoas, nos caminhos da história...
Aquelas mulheres madrugadoras, as poucas conhecidas e as muitas anônimas, estão a nos dizer que, para entender o mistério da vida e da morte, precisamos retomar a Palavra de Jesus, do dinamismo da sua compaixão e doação. Como discípulos seus, não podemos insistir em buscar entre os mortos aquele que está vivo, em enclausurar no passado aquele que é presente e futuro. A admiração diante do túmulo vazio é apenas o começo, e não pode ser um convite a ‘voltar para casa’, ignorando solenemente nossa responsabilidade com a ‘casa comum’. É preciso morrer para o pecado e renascer para o cuidado!
Como cristãos, completamos em nossos corpos os sofrimentos de Jesus Cristo, ostentamos as marcas de quem vive a misericórdia e cuida da casa comum. A ressurreição se multiplica como semente no testemunho e nas iniciativas de discípulos e discípulas, comunidades e Igrejas, grupos e movimentos. Como na ressurreição de Jesus, os sinais pequenos e desprezíveis passam a ser reais e promissores. O batismo, recordado e celebrado comunitariamente na vigília pascal, expressa este dinamismo na vida de cada um de nós e da comunidade eclesial. Morreu o velho homem, nasceu uma nova criatura!
Já vivemos e sofremos o bastante para saber que esta passagem não é nem automática, nem evidente. Trata-se de um projeto de vida que, para ser realizado, exige disciplina e empenho sem tréguas. Porque a luta não é apenas contra inimigos externos, mas pede vigilância sobre nós mesmos e sobre a permanente tentação de sermos sempre os primeiros e os merecedores, deixando a ninguém o cuidado do que é de todos. Mas esta não é uma luta inglória, pois Jesus de Nazaré, nosso irmão maior, já venceu a batalha, removeu muitas pedras, derramou sobre nós seu Espírito e nos fez capazes de compaixão.
Os primeiros cristãos resgataram uma imagem preciosa para falar da ressurreição de Jesus: Ele é como uma pedra que os construtores jogaram no lixo e que Deus transformou em pedra de ângulo, pedra que sustenta todo o teto em forma de abóbada. Por isso, a páscoa pede que abramos os olhos e as portas às pessoas e grupos sociais descartados como desnecessários ou eliminados como incômodos. Se não os tivermos no coração das nossas preocupações, celebrações e projetos eclesiais, nossa fé poderá ser como casa construída sobre a areia, e nossa utopia pode se deteriorar em simples ideologia.
Senhoras da madrugada, mulheres-coragem: humildemente pedimos vossa ajuda para caminhar na noite que nos envolve, para ver com nossos próprios olhos que o mestre de vocês e nosso nos precede na periferia e no deserto. Segurem nossas mãos cansadas e acompanhem nossos passos inseguros. Emprestem-nos um pouco do perfume que vocês souberam conservar, a fim de não chegarmos de mãos vazias ao encontro com Aquele que vive para sempre. E então anunciaremos de mil modos que a carne amada e amante de Jesus vivifica todos os sonhos e esperanças que habitam nossa humanidade. Assim seja! Amém!

Itacir Brassiani msf
(Gênesis 1,1-2,2 * Salmo 103 * Êxodo 14,15-15,1 * Romanos 6,3-11 * Evangelho de Lucas 24,1-12)

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