A permanente tentação do bezerro de ouro
Entre
as diversas e preciosas narrativas que a tradição bíblica nos oferece temos a
eloquente e pedagógica história do bezerro de ouro (cf. Êxodo 32,1-24). O
contexto histórico é o do êxodo das tribos hebreias que fugiam da opressão do
Egito guiadas pela esperança de chegar à sonhada terra. Moisés, que liderava a aventura
desde a saída, havia subido à montanha para discernir os passos e rumos da
luta, e tardava a voltar.
Diante da demora do
líder, o povo protestou, mostrando-se cansado de um Deus “visível” apenas numa
nuvem, às vezes tenebrosa, outras vezes luminosa (cf. Ex 33,7-11). E pediu um
Deus mais concreto, palpável e controlável. Desejou uma caminhada menos
tortuosa, com meta mais determinada e chegada mais definida. Por isso, pediu a
Aarão, colaborador de Moisés: “Faça
para nós um deus que caminhe à nossa frente, porque não sabemos o que aconteceu
com esse Moisés que nos tirou do Egito” (Ex 32,1).
A transcendência de um
Deus que interdita imagens reducionistas deixa o povo confuso e deprimido. O
Deus de Abraão e de Moisés não se deixa prender e limitar por nada. Insiste em
apontar um caminho sempre aberto, mas sem um ponto de chegada. Teima em manter
seu povo a caminho. Não aceita instituições fechadas e cristalizadas. Mostra a
sua glória, mas não permite que Moisés e seu povo o vejam de frente (cf. Ex
33,18-23). Permanece mistério imanipulável, transcendente e inapreensível.
Também hoje multiplicam-se
os cânticos de sereia que insistem na necessidade de submeter-nos às taxas e
vociferações dos que se imaginam imperadores do mundo, em finalizar a caminhada
e refugiar-se atrás dos muros das cidades, mesmo que se saiba que foram
construídos para segregar. Insistem que é hora de imaginar um deus que fique à
nossa disposição, que considere as nossas preferências e satisfaça a nossa
irracional sede de desforra. Dizem que a modernidade acabou, e que a democracia
é uma quimera.
Também nós somos
tentados a fundir o nosso bezerro de ouro. Desejamos mais estabilidade e segurança
às custas de menos liberdade e menos solidariedade. Queremos uma sociedade e
uma Igreja com figura e instituições bem definidas, com metas mensuráveis. A consolidação
da democracia, a busca de uma de "outro mundo possível" e de “uma
Igreja mais sinodal” parecem-nos um caminho cansativo e sem fim. Preferimos as
velhas definições e imposições, mesmo que sejam terrivelmente castradoras.
O problema é que, seguindo
esse bezerro e os mitos que o representam, acabamos comportando-nos como
“gado”: rotulamos como ideologia aquilo que é ciência; taxamos de interesseiras
e sonhadoras as lideranças que sugerem um olhar mais amplo; acusamos de
ditadura o que é apenas aplicação de justais leis; tratamos como inimigos todos
aqueles que ousam divergir; atribuímos ao demônio as iniciativas e organizações
voltadas à construção de uma sociedade menos desigual e mais justa.
E somos atraídos
pelos oportunistas que nos chamam a levantar, oferecer holocaustos e
sacrifícios, sentar-nos para comer e beber e levantar-nos de novo para nos
divertir (cf. Ex 33,6). Seria inteligente estender uma lona de circo que
encubra as tragédias e transforme tudo em espetáculo? Seria sábio defender o
poder dos opressores e negar a sede de justiça que nos move? Seria aceitável
encher nossas praças com estátuas de guerreiros e exterminadores em vez de
profetas e sonhadores? Se a resposta for positiva, o que fazer do Evangelho e
da memória incômoda da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo?
Dom
Itacir Brassiani msf
Bispo Diocesano de Santa Cruz do Sul
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