O papa entre
nós: testemunho de um evangélico
Francisco I já está em Roma, depois de uma
semana histórica no Brasil com a Jornada
Mundial da Juventude (JMJ). Sua presença aqui se liga ao seu primeiro
gesto político civilizador, a ida ao porto italiano de Lampeduza, Itália, por
onde tentam chegar, e ficam confinados, fugitivos de guerras e de fomes
africanas. Lá como cá Francisco I condenou a indiferença global para com os
pobres, sempre humilhados, e lhes deu acolhida fraterna, pastoral, prometendo-lhes
o engajamento da igreja. Ai começou a dar forma concreta o que era a promessa
de seu nome papal, Francisco, que nos remete ao santo reformador do séc XIII,
herói dos pobres e enfermos e defensor dos animais, elos frágeis da
criação.
Surpreendeu-nos a presença marcante e
transparente de autenticidade humana, plena de novidades benignas do
evangelho eterno que Bergoglio encarna com ternura. A Jornada da juventude
transcendeu idades e alcançou igualmente pessoas de todas gerações. O foco das mensagens foi centrado nos
mais pobres, nos deficientes e nos sem-poder e nos afastados da igreja.
Com o poder penetrante da poética falou da esperança que chega através da
juventude; juventude que deve valorizar e receber algo da sabedoria dos idosos.
Foi cuidadoso no contato com políticos, cumprindo com eles compromissos
protocolares indispensáveis. Bem humorado, capaz de gestos espontâneos,
vivamente pessoal, tão diferente dos
pomposos, distantes, narcisistas e frios personagens religiosos, acadêmicos ou
políticos amantes de si mesmos. Moradores de favelas, enfermos,
deficientes, crianças, dependentes químicos receberam seu carinho, orações,
bênçãos e encorajamento pastoral. Quando falou da vocação da igreja em levar as
Boas Novas para as periferias existenciais, não negou a dimensão
geográfica, sociológica e econômica da organização social que precisa
incluir a todos e todas, mas incluiu e valorizou igualmente a dimensão
subjetiva, a interioridade, a vida anímica. Pois o evangelho de Cristo é doador
de sentido e esperança à vida.
Veio no espírito de Elias e de João
Batista, contestando podres poderes políticos e religiosos, falando com
autoridade espiritual. Seus gestos e falas animam-nos a memória das firmes
palavras proféticas de Maria em seu cântico do anuncio do Salvador. Tem
algo do carisma do papa que veio da sofrida Polônia, João Paulo II, e parece que mais determinado ou bem
posicionado que aquele para promover as indispensáveis reformas na
bicentenária igreja, o que incomoda os corruptos burocratas da Cúria
Romana. Na sua primeira entrevista a um jornalista, o brasileiro Camarotti,
não se esquivou de responder, sem nenhum scrip, sobre assuntos incômodos
e que causaram perplexidade e condenação de todo o mundo e vergonha à Igreja,
admitindo que a Igreja pecou, que sacerdotes pecaram gravemente e que já estão
sendo disciplinados. A Igreja romana se arrepende e irá encarar a santidade, a
justiça e a ética à sério. E em pleno voo, conversou com diversos jornalistas surpreendendo a todos pela clareza, franqueza
e amorosidade ao ser confrontado com perguntas espinhosas. "Quem sou
eu para julgar alguém"? Na mais polêmica questão, aclarou de
pronto a diferença entre a pessoa gay, que deve ser acolhida e integrada
na igreja, sem julgamento condenatório e o lobby. Tal postura do papa é um convite, agora indesculpável , para que
outras confissões cristãs também reconheçam o quanto de nefasto, corruptível,
antibíblico e diabólico mesmo, ocorre em seu próprio meio, deixando a
postura farisaica de só ver defeito nos campos alheios.

Os peregrinos deram uma impressionante
demonstração de civilidade, autodomínio e protagonismo construtivo. Nada
quebraram em suas caminhadas, mesmo sofrendo um deslocamento imprevisto
de 50 kms devido ao lamaçal no Campo da Fé na zona oeste da cidade.
Conquistaram o respeito da população, foram solidários, limpos de drogas
e palavrões. Não revidaram dezenas de provocadores que num ponto da praia
pisaram, quebraram e profanaram crucifixos enquanto outros os agrediam
moralmente com simulação sexual. Afetuosos,
em várias línguas desconstruíram o mito de que religião e juventude são
coisas antagônicas ou que espiritualidade seja fruto de repressão religiosa,
inimiga da alegria e da consciência política. Quando poderia ser conseguido
quatro, cinco minutos de profundo silêncio de quatro milhões de pessoas
aglomeradas numa praia, para introspecção, confissão e oração? Multidão que
acampou por mais de 24 hs em dias gelados e chuvosos, com disciplina, sem
vandalismos? Um milagre? Acaso? Lavagem cerebral? Basta imaginar se outro fosse
o motivo do ajuntamento! Foi uma
amostra do fruto do Espírito de Cristo e de que, de fato, outro mundo é
possível, o Reino de Amor segundo Cristo.
O papa foi embora. Que se mantenha
disponível para abraçar a gente das ruas, praias, favelas,
universidades e fábricas de outros continentes. Com certeza milhões de jovens em todo o mundo, não apenas os católicos,
retomarão a fé cristã com renovado entusiasmo. É sempre previsível que
pessoas de outras confissões cristãs reajam com reserva, alguns com ceticismo,
desdém e até feroz criticismo ao que correu nestes dias. Levantando antigas
disputas hermenêuticas, apontando a super ênfase católica em Maria que quase
ofusca Jesus. A oração de Jesus
pela unidade dos que creem é mandamento permanente, como também é constante a
tendência sectária na religião, como na política e na academia. Fico feliz
por constatar muitas manifestações de interesse e simpatia de evangélicos
comuns e de pastores às palavras do papa. O mundo tão carente de lideranças
confiáveis, éticas, visionárias e mobilizadoras as agradece. Não é
cooptação religiosa ou fascínio por figura carismática. É que aprendemos que podemos ser cobeligerantes em muitas causas e
identificados no amor de Cristo que integrou zelotes, essênios, fariseus e
gente de fora destes grupos em seu círculo. Lembro-me do salmo
"Companheiro sou dos que amam ao Senhor e à sua Palavra".
Que a JMJ não fique apenas como memorável
evento magnífico, espetáculo de fraternidade e terapia coletiva. Oro para que
os corações lá despertados continuem animados, santificados e
fortalecidos através da intimidade com os textos bíblicos. Como o poeta
Wolô registrou numa canção, “Cristo chama, não apague!”
Ageu Heringer Lisboa
(Campinas, 29.07.2013)
Nenhum comentário:
Postar um comentário