terça-feira, 5 de junho de 2012

Solenidade de Corpus Christi

A Eucaristia nos chama à liberdade e à fraternidade.
(Ex 24,3-8; Sl 115/116; Hb 9,11-15;  Mc 14,12-16.22-26)
Quem é católico não duvida: a Eucaristia faz a Igreja e é um mistério que ocupa um lugar central na sua prática de fé e na sua espiritualidade. Mas nunca é demais lembrar também que quem faz a Eucaristia é a Igreja: é ela que, partindo do evento Jesus Cristo, definiu seu sentido teológico, estabeleceu regras e barreiras, colocou-a sob o controle dos ministros ordenados. Ao celebrarmos a festa popular do Corpus Christi não podemos esquecer que a Eucaristia é um sacramento, e como tal, remete a Jesus Cristo, mediador da Aliança entre Deus e a Humanidade, horizonte no qual se realiza totalmente nossa vocação à liberdade e a um mundo sem exclusões. Portanto, nada de triunfalismos e espiritualismos.
“Este é o sangue da Aliança que o Senhor fez conosco.”
Depois de séculos de teologização e de um perigoso processo de distanciamento do Reino de Deus, é difícil libertar a Eucaristia da terrível noção de sacrifício da qual se tornou refém. Com o passar do tempo e com o desenvolvimento da ideologia sacrificial, a noção de Aliança, anterior e mais fundamental que a de Sacrifício, foi sendo diminuída e quase eliminada. Hoje nos parece quase impossível ver a bela pintura do sacramento da Eucaristia fora do pesado quadro do sacrifício.
Mas é preciso colocar as coisas no seu devido lugar. Na tradição judaica, mesmo o sangue dos animais sacrificados espargido sobre o povo, como nos lembra hoje o livro do Deuteronômio, era uma espécie de sacramento da Aliança estabelecida entre Javé e o povo de Israel. O centro do rito não é o sacrifício de animais para aplacar uma suposta ira divina, mas a Aliança selada por um Deus que elege um grupo humano escravizado e o conduz pelos exigentes caminhos que levam à sonhada liberdade.
“Faremos tudo o que o Senhor nos disse.”
A Aliança compromete duas partes e as faz parceiras, mesmo quando seu peso histórico e sua relevância é desigual. E sempre tem em vista uma causa, um projeto. No caso das tribos de Israel, o objetivo da Aliança que compromete reciprocamente Deus e as tribos de Israel é a superação da escravidão e a perseverança num projeto relacional baseado na liberdade e na solidariedade. Evidentemente, o focus da Aliança não é o passado – mesmo quando o tem presente – mas o futuro.
Javé já demonstrara seu apreço e fidelidade às tribos de Israel escutando seus clamores, enviando Moisés como líder e conduzindo o povo através do deserto. Faltava apenas a explicitação dos termos da Aliança e o compromisso público e solene do povo às cláusulas essenciais que garantiriam a liberdade como base e dinamismo das relações interpessoais e institucionais. E o povo responde, em uníssono: “Faremos tudo o que o Senhor falou e eobedeceremos!” Esta era a parte do povo, é a nossa parte.
“Onde queres que façamos os preparativos para comer a páscoa?”
Damos por descontado que a última ceia de Jesus, base narrativa e simbólica sobre a qual se construirá a Eucaristia, foi uma celebração pascal no horizonte da tradição judaica, memória do êxodo e da Aliança que constituiu um povo. Como filha do judaísmo, a comunidade dos discípulos, Jesus à frente, teria seguido o costume judaico e teria repetido o memorial de um evento fundador, de uma aventura histórica e religiosa de caráter libertário e revolucionário. Mas sempre um evento passado.
Um olhar atento aos relatos do evangelista Marcos nos revelará que Jesus e seus discípulos não celebraram a páscoa conforme as prescrições do judaísmo. Em primeiro lugar, não aparece o cordeiro, símbolo absolutamente central na ceia pascal judaica, nem se diz que ele fora sacrificado no templo. E ao invés de descrever os pormenores da ceia pascal, Marcos descreve (nos versículos 17-21, omitidos na leitura oferecida pela Igreja) o clima de tristeza e apreensão frente às traições que se insinuavam.
É verdade que Jesus cumpre o tradicional gesto doméstico e amistoso de tomar o alimento e a bebida, proferir a oração de bênção e agradecimento e servi-los aos comensais. Mas ele introduz duas novidades que divergem das prescrições rituais: não faz serve o cordeiro (que, ao que parece, não está presente na ceia) e não relaciona o pão e o vinho com o evento do êxodo. Antes, vincula o gesto de repartir o pão e o vinho com sua história pessoal, com os passos que estava para dar.
“Não beberei mais do fruto da vinha até o dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deus.”
Sabemos de cor as palavras e gestos que Jesus realizou durante sua ceia derradeira. Mas quero ressaltar que, repartindo o pão, ele diz “isto é o meu corpo”, e, passando o cálice de vinho, anuncia “este é o meu sangue da nova Aliança”. Fica muito claro que Jesus não vincula a ceia pascal com Moisés e com o uma Aliança feita no passado, mas consigo mesmo e com uma Aliança nova. E resta ainda o surpreendente silêncio em relação ao indispensável cordeiro. Marcos insinua que este cordeiro é o próprio Jesus!
Há ainda três outros detalhes, talvez mais que simples detalhes. O primeiro é que a comunidade dos discípulos se move discretamente, escondendo-se para evitar riscos. O segundo é a senha que Jesus dá para que os discípulos encontrem um lugar seguro para celebrar a páscoa: um homem carregando uma bilha de água. Ora, quem habitualmente carregava água eram as mulheres, o que pode estar acenando para uma comunidade na qual a presença de mulheres era determinante.
O terceiro detalhe ou indício me parece mais importante e fundamental para a compreensão da Eucaristia: a ceia de Jesus com os discípulos não termina em festa, mas em jejum! Jesus diz que não beberá mais vinho até que chegue o vinho novo do reino de Deus. Encontro aqui o vínculo indissociável e essencial entre Eucaristia e futuro, entre a ceia presente e o advento do reino de Deus. Mais que memorial ligado ao passado, a Eucaristia é profecia e antecipação simbólica do futuro, do Reino.
“Tomai, isto é o meu corpo!”
A liberdade efetiva não é memória de um passado glorioso, mas vocação, tarefa empenhativa que engendra o futuro. É Aliança nova e irreversível mediante a qual Deus avalisa nossos mais profundos anelos de liberdade e de vida plena. E disso que a Eucaristia é sacramento. Jesus liberta a ceia pascal do seu belo mas insuficiente vínculo com o que foi e, mediante sua ceia, nos engaja na construção daquilo que será. Mesmo que isso exija que renunciemos ao aparente gozo e às atrações dos velhos vinhos.
Este futuro que nos é dado como tarefa é sonho que passa pelo corpo e o habita, o corpo de Cristo e o corpo dos irmãos e irmãs de Jesus Cristo. Uma alma que despreza e submete os corpos não engendra novidades. Um corpo que não vê outra coisa que sua forma estética se torna estéril. Mas um corpo que tece e sustenta teias de comunhão, que se faz dom sem reservas e se arrisca nas lutas mais ousadas, torna-se eucarístico, cheio de graça e gerador de graça. Como foi E é o corpo de Jesus Cristo.
“Enquanto estavam comendo...”
A festa de hoje recorda este corpo de Cristo, o corpo de Deus. Lembra e afirma que Deus não se guarda, cioso de sua superioridade e nobreza, mas se dá como comida e bebida. E nos põe nas ruas e estradas, pedindo que não esqueçamos que a liberdade está na frente e no futuro, e não atrás, num passado idealizado. Pede que levemos a sério o fato de que a Ceia não é mera memória, mas também antecipação simbólica do Reino de Deus, que construiremos jejuando de mancomunações e saciedades.
Por mais nobre que seja o ostensório que protege o Pão e por mais belos que senjam os desenhos e ornamentos que enfeitam as ruas, é preciso lembrar também que a Eucaristia não é para ser adorada e incensada, mas para ser tomada como comida e bebida. O pão e o vinho transformados pelo Espírito são elo da nossa comunhão com Deus e das mil relações de comunhão com as criaturas de Deus. Eles estão aí para serem comidos e se tornarem corpo no nosso corpo, sangue no nosso sangue.
“Vou cumprir minhas promessas ao Senhor diante de todo o seu povo.”
Jesus de Nazaré, filho de Deus e filho da Humanidade, corpo dinamizado pelo Espírito e Espírito feito carne, pão que se oferece como alimento e vinho que se doa como gozo: transforma nossa vida em Eucaristia e dá-nos uma insaciável fome de comunhão. Na festa de hoje, tanto no acolhedor ambiente dos nossos templos como no espaço aberto das ruas e avenidas, dá-nos um coração grande para amar e forte para lutar. Não permite que reduzamos tua ceia a uma simples memória e tranformemos o pão em amuleto. E não nos deixes cair na tentação de fugir da eucarístico compromisso de celebrar a ceia com os pés prontos caminhar e os olhos fixos no Reino que ainda está vindo. Assem seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf

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