OSCAR ROMERO: MÁRTIR DA AMÉRICA LATINA
Nessa terça-feira, 03 de fevereiro, o
Papa Francisco declarou que Mons. Oscar Romero, arcebispo de El Salvador,
sofreu martírio por “ódio contra a fé” e que não foi assassinado simplesmente
por razões políticas.
A palavra do Papa, quase 35 anos depois
que o arcebispo foi baleado e morto, a 24 de março de 1980, enquanto celebrava
a missa na capela do Hospital da Divina Providência em São Salvador, abre o
caminho para sua rápida beatificação e canonização.
O processo encontrava-se bloqueado em
Roma por aqueles que classificavam sua morte como resultado de suas opções
políticas e não por causa do seu profético e evangélico testemunho em favor dos
pobres e pequenos. O papa já dera um primeiro passo nessa direção quando logo
após sua eleição, a 21 de abril de 2013, ordenara a reabertura de seu processo
na Congregação das Causas dos Santos.
Para centenas de milhares de
comunidades cristãs do continente, Oscar Romero foi desde o dia do seu martírio
considerado santo e invocado como São Romero da América Latina, num profundo e
certeiro reconhecimento do “sensus fidelium”de sua santidade e do sentido de
sua morte: seu empenho em favor da paz, sua luta contra a pobreza e a injustiça
e sobretudo a declarada oposição à infame guerra de “baixa intensidade”. A
guerra, no pequeno El Salvador, na época, com pouco mais de 5 milhões de
habitantes deixou mais de 70.000 mortos e 1,5 milhão de refugiados, a maior
parte exilados nos Estados Unidos.
Mercedes Sosa, na
conhecida canção latino-americana, “Solo le pido a Dios”, canta com paixão: “Sólo le pido a Dios / Que la guerra no me
sea indiferente / Es un monstruo grande y pisa fuerte / Toda la pobre inocencia
de la gente”. E prossegue nas outras estrofes: “Sólo le pido a Dios / Que el dolor no me sea indiferente / … Sólo le
pido a Dios / Que lo injusto no me sea indiferente / Sólo le pido a Dios / Que
el futuro no me sea indiferente...” Romero não foi indiferente nem à dor da pobre gente, nem à
guerra, nem à injustiça, nem à falta de futuro e esperança que se abatia sobre
seu povo.
O bispo poeta de São Felix do Araguaia,
Dom Pedro Casaldaliga, no dia seguinte ao assassinato de Oscar Romero, associou
prontamente sua morte ao martírio e ao sangue derramado pelo próprio Cristo na
cruz, para terminar invocando-o, sem nenhuma hesitação: “San Romero de América, pastor y
mártir nuestro”. Reproduzo na sequência a significativa página do seu
diário, “En Rebelde Fidelidad” do mês de março de 1980:
Día 25: Ayer murió,
matado, Monseñor Oscar Romero, el buen pastor de El Salvador. Mientras
celebraba la eucaristía. Su sangre se ha mezclado para siempre con la sangre
gloriosa de Jesús y con la sangre, todavía profanada, de tantos salvadoreños,
de tantos latinoamericanos. Romero,
flor de una paz que parece imposible en esa Centroamérica sufrida. La impresión que se tiene, sin posible duda,
es que lo ha matado el Imperio. Su muerte es una muerte a sueldo, a divisa, a
dólar. Era demasiado poderosa y libre su voz y había que apagarla. El lo sabía
y estaba preparado para este sacrificio. Ha sido en la víspera de la Anunciación. El ángel del Señor se ha
anticipado para anunciar, con esta muerte, la llegada de un tiempo de vida para
El Salvador, para América Central, para todo el Continente. San
Romero de América, pastor y mártir nuestro. Clara lección para todos
los pastores... No es posible que el
Dios de los pobres no recoja esta oblación.”
Outras Igrejas não esperaram este tardio
reconhecimento romano para incluir Oscar Romero no seu próprio calendário
litúrgico, como mártir, exemplo de vida e santidade e inspiração para seus
fieis. Assim, a Igreja Anglicana da Inglaterra arrolou Romero como mártir, no
calendário do seu “Common Worship”. O mesmo aconteceu com a Igreja Luterana da
Alemanha.
Quando Bento XVI a 17 de setembro de
2010, adentrou, como primeiro papa a fazê-lo, o imponente portal oeste da
Abadia de Westminster de Londres, teve que passar por sob a estátua de Oscar Romero
perfilada ao lado do pastor batista Martin Luther King, de Ghandi e de outros
mártires do século XX, ali representados.
Artistas renomados e artesões populares
não tardaram a retratar Romero como santo. Adolfo Perez Esquivel, o prêmio
Nobel da Paz (1980), ao pintar a Via Sacra latino-americana e o grande painel
do “novo céu e a nova terra” para a Campanha quaresmal da Igreja da Alemanha,
retratou o Cristo Ressuscitado caminhando à frente da multidão daqueles que
lavaram suas vestes no sangue do cordeiro, capitaneados por Oscar Romero e por Enrique
Angelleli, o bispo mártir de La Rioja na Argentina seguidos pelo cortejo de
leigos e leigas, sacerdotes e religiosas, que derramaram seu sangue pela fé e
pela justiça na América Latina, nos anos de chumbo das ditaduras militares.
O artista da libertação Cerezo Barredo
ao pintar em 1986, o painel por detrás do altar da Igreja dos Mártires da
Caminhada em Ribeirão Cascalheira, local do martírio do Pe. Penido Burnier, SJ,
o coloca ao lado de Romero e do Ressuscitado e junto com os lavradores assassinados
pelo latifúndio, de suas mulheres torturadas pela polícia e de tantos outros
mártires anônimos da Igreja latino-americana. Noutro painel de Romero, Cerezo reproduz
as palavras proféticas do arcebispo, pouco antes do seu assassinato: “Se me matam, ressuscitarei no povo
salvadorenho”.
Cláudio Pastro, que vem ilustrando a
Basílica de Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil e sede da V
Conferência do Episcopado Latino-americano, em 2007, incluiu no painel de
azulejo azul e branco que cobre o coro da entrada principal do templo, ao lado
dos mártires dos tempos passados, os de hoje, entre os quais o índio Márçal
Guarani, o arcebispo Romero e a Ir. Dorothy Stang, missionária norte-americana
assassinada 12 de fevereiro de 2005 na Amazônia brasileira. Irmã Dorothy foi
morta por pistoleiros, por defender pequenos lavradores de um projeto de
agricultura sustentável, contra a devastação das grandes madeireiras. Estas,
sob o olhar complacente quando não conivente das autoridades, abatem as árvores
para alimentar o lucrativo comércio da exportação ilegal de madeira para a
Europa.
Os artistas e o sentimento e piedade
popular se antecipam no reconhecimento de novas formas de santidade que vão da
luta em favor da vida dos pequenos e injustiçados, da denúncia da ganância do
capital e dos impérios, até a defesa intransigente da água, da terra, das
florestas, como bens comuns necessários à vida e não apenas “mercadorias” a
mais, a serviço do lucro.
Quando o jovem bispo de Ivrea, Betazzi,
então bispo auxiliar de Bologna, interveio no Vaticano II, sob nutrido aplauso
da Aula conciliar, para pedir a canonização imediata de João XXIII pelos padres
conciliares, estava querendo consagrar todo um programa, um projeto e um sonho
de nova Igreja e nova humanidade. Nesse sentido, comentou o Cardeal Lercaro, que
essa proposta da imediata canonização de João XXIII pelo Concílio representava
a acolhida das decisões conciliares na vida da Igreja. A proclamação da
santidade de João XXIII não era apenas a de “uma santidade exemplar (igual a de
outros santos), e sim de uma santidade programática de uma nova época da
Igreja, individualizada no santo pastor, doutor e profeta reconhecido como seu
antecipador”.
A santidade de Romero é também uma
santidade programática que remete à evangélica opção preferencial pelos pobres,
a uma fé atuante no mundo e à profecia como inarredável tarefa dos pastores e
de todos os batizados, num continente nominalmente cristão, que convive em
aparente indiferença, com as seculares desigualdades e injustiças que marcam nossas
sociedades dos tempos coloniais até hoje.
Pe. José Oscar Beozzo
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