ANTE O MISTÉRIO DO MENINO
Os homens acabam por se habituar a quase tudo. Frequentemente, o
hábito e a rotina vão esvaziando de vida a nossa existência. Peguy dizia que “há algo pior do que ter uma alma perversa,
é ter uma alma habituada a quase tudo”. É por isso que não podemos nos
surpreender que a celebração do Natal, envolta em superficialidade e consumismo
louco, dificilmente diga algo novo ou alegre para tantos homens e mulheres de
“alma acostumada”.
Estamos acostumados a ouvir que “Deus nasceu num estábulo de
Belém”. Já não nos surpreende nem comove um Deus que se oferece como uma
criança. Saint-Exupéry diz no prólogo de seu delicioso O
Pequeno príncipe: “Todas as
pessoas crescidas foram crianças antes. Mas poucos se recordam disso”.
Esquecemos o que é ser criança. E esquecemos que o primeiro olhar de Deus ao se
aproximar do mundo foi o olhar de uma criança.
Mas essa é precisamente a grande novidade do Natal. Deus é e continua sendo Mistério. Mas agora
sabemos que não é um ser tenebroso, inquietante e temível, mas alguém que nos é
próximo, indefeso, afetuoso, a partir da ternura e da transparência de uma
criança.
E esta é a mensagem do Natal. Precisamos sair ao encontro desse Deus, devemos mudar o coração,
tornar-nos crianças, nascer de novo, recuperar a transparência do coração,
abrir-nos com confiança à graça e ao perdão.
Apesar da nossa terrível superficialidade, do nosso ceticismo e
desencanto, e acima de tudo, o nosso inconfessável egoísmo e mesquinhez de
adultos, sempre há nos nossos corações um recanto íntimo onde ainda não
deixamos de ser crianças.
Atrevamo-nos por um momento a olhar-nos com simplicidade e sem
reservas. Façamos um pouco de silêncio ao nosso redor. Desliguemos a televisão.
Esqueçamos a nossa pressa, os nervosismos, as compras e os compromissos.
Escutemos dentro de nós esse coração de criança que ainda não se
fechou à possibilidade de uma vida mais sincera, bondosa e confiante em Deus. É
possível que comecemos a ver a nossa vida de outra forma. “Não se vê bem senão
com o coração. O essencial é invisível aos olhos” (Saint-Exupéry).
E, acima de tudo, é possível que escutemos um chamado para
renascer para uma nova fé. Uma fé que não seja estagnada, mas rejuvenesça; que
não nos encerre em nós mesmos, mas nos abra; que não separe mas una; que não
tem medo, mas que confia; que não entristeça, mas que ilumine; que não tema mas
que ame.
José Antônio
Pagola
Tradução de
Antônio Manuel Álvarez Perez
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