“Pedro, tu me amas?”
Declarei
o ano 1986 Ano da Espiritualidade, após demoradas reflexões e análises.
Perguntava-me: neste momento histórico, qual é o aspecto mais importante, qual
é a grande necessidade pessoal e comunitária sobre a qual devemos centrar as
nossas atenções e buscar um cultivo peculiar? Escolhido o tema do ano,
selecionamos subsídios bibliográficos. Por fim, nos decidimos pelo livro “Os
caminhos da espiritualidade na América Latina”. Concomitantemente, a entidade
máxima dos religiosos do Brasil – a CRB – fazia de 1986 o Ano do Profetismo. Muito
se pensou e se falou no país inteiro sobre o tema “Os profetas bíblicos
interpelam a Vida Religiosa”, condensado em opúsculo pela Comissão Teológica da
CRB nacional.
Anteriormente
a tudo isto, vinha percebendo que meu discurso e principalmente o de muitos
outros já não era mais o mesmo. Em todo lado se ouviam hinos e cânticos cuja
letra e melodia estufavam o peito de alguns e cerravam a garganta de outros.
Viam-se pessoas cada vez mais envolvidas com sindicatos e com os Sem-Terra,
atuando contra as barragens, clamando ostensivamente por eleições diretas e por
reforma agrária, apoiando acampamentos, pichando muros e calçadas... Não
tardaram os confrontos, as acusações e incriminações: “Você é pelego!” E o
outro devolvia o troco: “E você é uma criançola, um agitador, um esvaziador de
igrejas...” Esta ladainha de epítetos foi crescendo, e hoje é maior que a
ladainha de todos os santos...
É
inegável a necessidade de profetismo na Igreja. A Vida Religiosa é sem dúvida
de natureza carismática e profética. Isso nem se discute. A questão que isso suscitava
em mim mesmo era: Tudo o que se vem fazendo e dizendo em nome do profetismo é
profetismo mesmo? Como se deve exercer acertadamente o profetismo hoje? Posso
arvorar-me sem mais nem menos em profeta? O profetismo em voga é segundo os
moldes dos profetas bíblicos, mormente do profeta do Pai, Jesus de Nazaré? O
que move atualmente as pessoas a denunciar, a enfrentar os poderosos? Que
espírito os compele? De que espírito estão possuídos? Posso eu calar-me diante
da realidade anti-humana e anti-cristã que me cerca? Não estou sendo covarde e traidor
da missão a mim confiada por Cristo? Pode ser tido como profeta quem pouco reza
e medita?
Enquanto
em minha mente bailava todo este questionamento resolvi declarar 1986 como Ano
da Espiritualidade. Espiritualidade não como fuga e alienação, nem como
retorno ao pietismo e às sacristias. Espiritualidade não como ensimesmação nem
afrouxamento da evangelização libertadora. Mas uma espiritualidade cristã e
bíblica, missionária, capaz de provocar conversão profunda, de tornar-nos
religiosos autênticos, profetas de verdade. Profetas cuja
vida seja permanente anúncio dos valores do Reino e denúncia verbal e
não-verbal convincente. Profetas que tratam primeiro de arrancar a trave de seu
próprio olho, em processo de cultivo assumido perseverantemente.
À medida
que estudava, refletia e meditava sobre o opúsculo da CRB “Os profetas bíblicos
interpelam a Vida Religiosa”, fui obtendo respostas ao farto questionamento que
me fazia e me faziam outros. Já na introdução, dei de cara com a definição de
profeta bíblico (é este tipo que eu estava interessado em definir e entender): crítico
religioso da realidade. Três palavras apenas, mas que constituem um
todo, que trataremos de desdobrar a seguir.
O profeta é especialmente um crítico
É alguém
que anuncia e denuncia. É uma pessoa cheia de paixão (combatividade). É alguém
que enfrenta os poderosos e defende os pequenos. É alguém que é perseguido.
Portanto, quem não contesta, não questiona, não admoesta, é profeta? Quem evita
criticar e desmascarar as causas e os causantes do pecado, das
idolatrias hodiernas, das injustiças; os dominadores e exploradores que usam o
poder, o ter e o saber em proveito próprio ou de uma minoria; quem não os
enfrenta, é fiel à sua missão profética? Basta denunciar para estar sendo
profeta?
O profeta
é alguém que propõe mudanças de comportamentos, a conversão do povo. Anuncia um
mundo novo, homens novos, uma nova sociedade. Propõe como devem ser as
atitudes novas. Diz como mudar o coração e o espírito.
Orienta como devem ser usados o poder, o ter e o saber, segundo os
desígnios do criador e de Cristo. Então, isso é ser profeta? Basta isso? A
muita gente parece que basta denunciar para se considerarem enviados de Javé e
estarem falando as palavras de Jesus e de Deus, para se arvorarem em
porta-vozes do Senhor... Do lado de quem mesmo estou eu? Dos pequenos ou dos
poderosos? Já assumi e encarnei as opções da Igreja e da Vida Religiosa da
América Latina? Ou minha voz se soma ao coro infernal dos matadores de
profetas?

O profeta é um crítico religioso
A segunda
parte do referido opúsculo da CRB veio clarear e responder alguns dos
questionamentos anteriormente explicitados. O profeta é um homem de Deus. O
profeta é uma pessoa possuída e compelida pelo Espírito.
Profetas
há e houve não só entre os israelitas e na Igreja católica. Determinadas
pessoas carismáticas talvez nem tenham religiosidade alguma. Não é porém a
estes que estamos interessados em definir. O profetismo que desejamos entender
e viver melhor é diferente, é específico: profetas bíblicos, profetas do Reino,
religiosos profetas é o que nos cabe ser. Esta é a tipologia de profeta que
condiz e se adequa à nossa realidade de cristãos consagrados.
Na primeira
parte ficou dito que o profeta é um crítico. Críticos da sociedade há muitos:
economistas, políticos, filósofos, sociólogos e outros. O crítico religioso
usa a ótica de Deus, é porta-voz de Deus, “fala o que ouve”,
pronuncia “oráculos do Senhor”, é um confidente de Deus. Para melhor
inteirar-se disso, basta ler na bíblia as passagens “vocação do profeta”.
“Na
raiz da missão profética há uma profunda experiência de Deus”, afirma o
documento da CRB aqui já mais vezes mencionado. Diante disso, instituir na
Província um ano acentuadamente dedicado à espiritualidade, em meio aos
candentes debates acerca do profetismo, não teria sido
providencial? Afinal, o que nos toca fazer para ser “homens de Deus, pessoas possuídas
e compelidas pelo Espírito”? Denúncia acirrada sem uma sólida
espiritualidade, sem uma experiência de Deus, ao menos em andamento, não seria
uma ousadia, uma pretensão? Que é mesmo ser profeta do Reino? Todo mundo
que vive falando alto por aí é mesmo profeta?
É
sintomático o episódio narrado por Lucas (4,14-22), quando Jesus comparece à
sinagoga de Nazaré e declara: “O Espírito do Senhor está sobre mim. Ele me
consagrou e me enviou para anunciar a boa nova aos pobres, sarar os
contritos de coração, anunciar aos cativos a redenção, aos cegos a restauração
da vista, pôr em liberdade os cativos e publicar o Ano da Graça do Senhor.”
Em João
21,15-17 encontramos outro episódio que nos faz pensar: “Pedro, tu me
amas mais do que estes?... Sim, Mestre, tu sabes que eu te amo!...
Apascenta os meus cordeiros... Apascenta minhas ovelhas...” Isto soa aos meus ouvidos mais ou menos
assim: “O amor apaixonado pelo Cristo, pelo Reino, pelo seu Projeto, é a base,
o ponto de partida, a exigência e a necessidade primordiais para abraçar e
exercer a missão profética e pastoral.”
Concluindo,
aproveito-me do slogan do próximo Encontro Latino-Americano dos Missionários
da Sagrada Família (“Eu formo? Tu formas? Nós formamos? Somos Província
formadora?”): “Eu sou profeta? Tu és profeta? Nossa comunidade é profética? Nossa
Província é profética? Como vir a ser? Você já tem resposta? Então, não
espere mais, e que o Senhor lhe dê forças e combatividade para suscitar MSF
novos, comunidades renovadas, uma Província de Deus e arrojada na construção da
nova sociedade.
Pe. Rodolpho Ceolin msf
(Reflexão
publicada em O Bertheriano, Ano VIII, N° 24, setembro/1986, p. 1-2)
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