quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

ANO C | TEMPO COMUM | QUARTO DOMINGO | 03.02.2019


Se calarem a voz dos profetas, a lama e os cadáveres falarão!
A profecia nasce da intimidade com a Palavra de Deus. Quem acolhe e escuta a Palavra sente a voz de Deus queimar como brasa e não consegue ficar indiferente diante das mentiras e disfarces que encobrem tragédias previsíveis e culpáveis, nem das práticas de exploração, opressão e discriminação. O próprio Jesus confirma isso: depois de ler e acolher a palavra do profeta Isaías, se propõe a cumpri-la fielmente, esquecendo-se dos próprios parentes e compatriotas e priorizando as pessoas mais pobres necessitadas. Rompendo com as expectativas do seu povo e da sua família, Jesus terá que enfrentar a oposição e a perseguição.
A profecia é essencial na vida cristã. A Igreja é uma comunidade profética, sacerdotal e de serviço à vida. Mas ninguém é instituído profeta, nem aprende este ofício num seminário ou numa escola de teologia. A profecia é dom do Espírito, dom que recebemos com temor e tremor. Ela nasce e se desenvolve no ventre de uma comunidade que se coloca à escuta da Palavra de Deus, pungente no clamor de todas as vítimas. Quem não se fecha à voz de um Deus que fala e interpela, sente a Palavra queimar suas entranhas e não consegue viver indiferente à causa de Deus, que é a causa dos pobres, das vítimas, dos excluídos.
Uma comunidade que ouve e medita a Palavra acaba também avançando e amadurecendo no serviço à Boa Notícia de Deus. Vemos isto na experiência de Jeremias. Ele tem a sensação de que a Palavra que o chama é anterior ao seu próprio nascimento. “Antes de formar-te no seio de tua mãe, eu já contava contigo. Antes de saíres do ventre, eu te consagrei e fiz de ti profeta para as nações.” É isto que percebemos também no próprio itinerário de Jesus: depois de ler e acolher a palavra do profeta Isaías na sinagoga de Nazaré, ele conecta irreversivelmente a sua vida com a causa dos oprimidos. E propõe este caminho aos seus discípulos.
Um olhar atento aos evangelhos nos leva a perceber como, por causa de seu radicalismo profético, Jesus foi experimentando uma progressiva marginalização. Houve um momento em que sua fama se espalhava por toda a região e todos o elogiavam (Lc 4,14-15). Enquanto lia as escrituras, todos tinham os olhos fixos nele e testemunhavam a seu favor, maravilhados com as palavras cheias de graça que saíam da sua boca (Lc 4,22). Mas o entusiasmo logo se transformou em fúria e desejo de eliminá-lo (Lc 4,28-30), quando ousou questionar a ideologia do privilégio dos judeus em relação aos pagãos.  E nisso Elias e Eliseu lhe serviram de paradigma.
Elias privilegiou uma viúva menosprezada porque era estrangeira. Eliseu curou um pagão, que os judeus situavam abaixo dos cães. E Jesus defendeu ardorosamente a dignidade das mulheres, dos pecadores, dos pobres, dos doentes, dos migrantes estrangeiros. Esse é o caminho da profecia, que no Brasil de hoje passa pela defesa do território dos indígenas e quilombolas, pela reivindicação de políticas públicas em favor dos pobres, pela defesa da integridade dos encarcerados, pela denúncia da ação criminosa das mineradoras que privilegiam o lucro, devastam o ambiente e eliminam vidas. Escutemos o grito da lama e dos cadáveres!
Mas a profecia tem seu preço, e tanto a pessoa como a instituição que a assumem devem estar dispostas a pagá-lo. Jesus recorre a um provérbio que diz que nenhum profeta bem recebido em sua própria terra, pois a expectativa sempre é que ele atue em benefício dos seus pares. Mas este é apenas um lado da medalha. O outro lado é o seguinte: nenhum profeta que sente a compaixão de Deus queimar suas entranhas consegue permanecer preso aos estreitos muros da raça, da nação, da religião ou de qualquer instituição. O profeta é um incansável transgressor de fronteiras, um incurável abridor de brechas nos muros da hipocrisia.
É na fragilidade que somos fortes, diz Paulo. Escrevendo aos cristãos de Corinto, ele chama a atenção para a centralidade do amor e a relatividade de todas as funções e instituições. Se a profecia deslizar para o discurso enraivecido, incoerente e acusatório, será pouco mais que nada. O que dá consistência e verdade à profecia é o amor, este dinamismo que reconhece a dignidade do outro como outro e o serve em suas necessidades. A profecia que brota do amor, orienta-se pelo amor e conduz a um amor que não reconhece fronteiras nem méritos. E o amor está acima de todo conhecimento e até acima da fé. E, mais ainda, das instituições!
Jesus de Nazaré, profeta de um mundo sem fronteiras, amigo dos pequenos, dos oprimidos e das vítimas! Abre nossos ouvidos à tua Palavra. Suscita em nós a resposta breve e envolvente: “Eis-me aqui, Senhor!” Ajuda-nos a acolher e a continuar a missão profética que nos confiaste ainda no seio materno, apesar das nossas fraquezas. Abre nossos olhos e nossas mãos ao amplo e criativo trabalho de construir outro mundo, um mundo que desconhece e os estreitos muros das culturas, nações e religiões. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Profecia de Jeremias 1,4-19 | Salmo 70 (71) 1ª. Carta de Paulo aos Coríntios 12,31-13,13 | Evangelho de São Lucas 4,21-30

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