Jesus é elo da aliança
que articula pessoas, povos e lutas!
O batismo faz
parte da tradição cultural do nosso povo. Seu sentido original perde-se no
tempo e na inconsciência, mas no batismo se esconde um valor antropológico muito
precioso, embora nem sempre seja explicitado. Mais que um rito de passagem, o
batismo é um rito de pertença a um povo, a uma causa. Numa sociedade que
desarticula os vínculos e fragmenta a vida dos mais pobres, o batismo ainda
representa a oportunidade de estabelecer algumas alianças de sobrevivência com
vizinhos, compadres e comadres. E não deixa de ser um ato de fé na força da
vida, sempre frágil e sujeita a reviravoltas.
No evangelho
de hoje, Lucas registra que ‘todo povo foi batizado’, mas não oferece nenhuma
descrição ou detalhe de um batismo especial de Jesus, nem informações sobre sua
origem e identidade. Em apenas uma frase e dois versículos, dá por terminada a
descrição do batismo de Jesus! O tempo no qual ocorre não é propriamente
especial em relação ao batismo dos demais habitantes da região da Judéia que
confessam seus pecados: o tempo e o lugar são os mesmos que reúnem os
pecadores, e Jesus entra na fila, anonimamente. Ninguém vê nada de especial
durante seu batismo, nem mesmo João Batista.
Mas, depois do
batismo, estando Jesus recolhido em oração, o céu se abre e o Espírito Santo
desce sobre ele em forma de pomba. No céu aberto ressoa uma voz: “Tu és meu
filho amado; em ti encontro o meu agrado.” E nada mais. Nenhuma reação. Nenhuma
aclamação ou comentário. Tudo transcorre como se fosse um fato absolutamente
normal. Tanto que logo Jesus segue sozinho para o deserto, anônimo, firme na
busca de luzes para entender mais profundamente sua identidade e sua missão.
Tanto que sentimos a necessidade de continuar perguntando: o que o batismo
praticado por João significava mesmo, e como Jesus o teria vivido?
O batismo de
João assinalava o cancelamento dos débitos do povo frente ao judaísmo,
desobrigava o fiel frente às estruturas do sistema judaico, representado pelos
sacerdotes e encarnado no templo. Expressava essa liberdade, e também o desejo
de endireitar as estradas, de preparar os caminhos para o encontro com Deus, e
a expectativa de que algo novo estava por acontecer, estava batendo à porta. No
batismo, Jesus entende que é o filho querido e ungido que se opõe aos poderosos
da terra (cf. Sl 2), o agrado do Pai, o servo fiel que tira o pecado do mundo
(cf. Is 42,1-7), o broto promissor na terra ressequida (cf. Is 11,1-2).
No batismo,
Jesus também cresce na consciência de que uma nova criação está em gestação.
Trata-se de um processo de alargamento da consciência, que antecede o próprio
momento do batismo e prossegue depois dele. Ao participar de um rito que
proclama o cancelamento dos pecados cobrados pelo templo, que torna o povo
livre frente aos seus valores e leis discriminadoras, Jesus se descobre uma
pessoa livre, uma espécie de ‘fora da lei’ do sistema judaico. Sua lealdade não
é mais com o sistema religioso judaico, com nenhum ‘capitão’ prepotente, mas
com Deus Pai. Não há mais judeu ou grego, homem ou mulher, escravo ou livre.
E é por aqui
que começa a nova criação, simbolizada pelo céu aberto e pela descida da pomba,
pois o pecado não é algo feito contra ou fora da lei, mas o cumprimento das
leis que hierarquizam, discriminam e penalizam pessoas, movimentos e povos. Os
doutores da lei e os sacerdotes pecavam porque cumpriam a lei nas suas minúcias
e esqueciam a compaixão e a misericórdia. A nova sociedade e a nova criação
começam exatamente com a renúncia a esta ordem velha, opressora e corruptora.
Jesus enfrentará este sistema nas tentações que virão em seguida e durante toda
a sua vida, e pagará um alto preço por tamanha ousadia.
No batismo de
Jesus, o Espírito que desce ‘em forma corpórea, como pomba’ entra em cena para
recordar o Espírito que pairava sobre as águas e presidia a primeira criação.
Ele se faz presente em Jesus e, posteriormente, na comunidade, para que façam a
passagem da imaturidade que limita e da escravidão que amedronta para a
maioridade e a liberdade de filhos e filhas, nos quais o próprio Deus se
reconhece e se compraz. Ele suscita testemunhas e sustenta a prática do bem e
da justiça, tanto em Jesus como nos discípulos. Da força do Espírito emerge um
povo livre e maduro, que vive no mundo para fazer o bem.
Jesus de
Nazaré, filho amado do Pai, visita peregrina e benfazeja, irmão querido da
humanidade! No dia em que recordamos teu batismo, te pedimos por tua Igreja:
que ela não seja leal senão a ti e não procure agradar senão ao teu e nosso
Pai. Sendo uma comunhão articulada de batizados, que ela se revele um ensaio
geral da nova ordem, na qual as desigualdades são eliminadas e a dignidade de
cada criatura é afirmada sem mas nem porém. E que seus filhos e filhas vivamos
para fazer o bem, sem medo de capitães! Assim seja! Amém!
Itacir
Brassiani msf
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