quarta-feira, 29 de julho de 2020

ANO A | TEMPO COMUM | DÉCIMO-OITAVO DOMINGO | 02.08.2020


"Quando as cercas caírem no chão e as mesas se encherem de pão..."
Há um preceito que não está escrito na Constituição nem na Bíblia, mas é ensinado em lições, do berço à sepultura. Esta lei diz que “cada um deve viver pra si e Deus se ocupará de todos”. Uma variante afirma que quem “pode mais sempre chora menos”. Estes princípios são assimilados tranquilamente na arena política, no sistema econômico, e até no âmbito da religião. Deus acaba sendo uma espécie de avalista da ambição individual, tanto na dimensão social como econômica. Poucos se dão conta que isso contraria o Evangelho.
O Evangelho assinala que, depois de ter provocado escândalo na sua própria terra e de ter tomado conhecimento da prisão e do martírio de João Batista, Jesus parte para uma região deserta e afastada. Ele toma distância dos lugares onde o poder mostra mais sua ferocidade. Não quer entrar num jogo de cartas marcadas e assume conscientemente a margem. Sente necessidade de outros ares e de buscar inspiração em utopias mais divinamente enraizadas e mais humanamente concretizadas.
Sabendo disso, as multidões cansadas e abatidas deixam as cidades e seguem Jesus à pé. Têm a intuição de que é da periferia que pode nascer uma alternativa. Sabem que os centros de poder são como uma figueira estéril e estão pavimentados com o trabalho dos pobres e tintos de sangue inocente. Jesus vê a multidão e, movido pela compaixão, cura, emancipa e reinsere na sociedade muitas pessoas doentes e marginalizadas. Para ele, socorrer e libertar seu povo não é um apêndice da missão, mas sua própria razão de ser!
No fim da longa jornada, no entardecer das possibilidades de ajuda, os discípulos percebem a fome do povo, mas não conseguem vislumbrar solução para este drama a não ser dentro da lógica do império. Sem um plano alternativo, pedem que Jesus despeça a multidão para que cada se vire. Querem entregar os famintos às frias leis do mercado, bem ao estilo do “cada um pra si e Deus por todos”. A resposta de Jesus é direta, e sua proposta abate mortalmente tanto o espiritualismo escapista como o elitismo corrosivo dos discípulos.
“Eles não precisam ir embora. Vocês é que têm de lhes dar de comer.” Os discípulos reagem e tentam disfarçar o egoísmo elitista que os move sublinhando os exíguos recursos disponíveis frente a tão grande necessidade. O que representariam cinco pães e dois peixes para uma multidão de dez mil famintos? Mas está longe do pensamento de Jesus uma Igreja feita apenas de doutrina e de ritos religiosos! Nada tem a ver com ele uma comunidade que se compraz em lavar as mãos diante das tragédias que se abatem sobre o povo. Ele não tolera instituições que entregam seus membros à implacável lógica dos impérios! Ele sonha com o dia bonito em que “as cercas caírem do chão e as mesas se encherem de pão”, como diz a canção.
“Tragam isso aqui”, determina o Mestre. Ele sabe, e quer deixar bem claro a quem o segue, que a saída não é nem cada um pensar em pra si, nem considerar o povo faminto um simples objeto de caridade. Do ponto de vista de Jesus e do seu Evangelho, o povo é soberano e as autoridades religiosas e políticas devem estar a seu serviço. E é claro que não se trata de povos nacionais, mas do único povo de Deus, pois, para os cristãos, as nações modernas são realidades fictícias e, às vezes, violentas, cujos confins foram traçados com lanças e baionetas. Não é cristão um amor que se preocupa apenas com a vida dos compatriotas!
O alimento suficiente para saciar a multidão faminta aparece quando Jesus assume o protagonismo e os discípulos colaboram com ele. Se ele deixasse a solução às leis do mercado teríamos assistido à catástrofe de um povo, ao cinismo da religião e ao enriquecimento dos aproveitadores. Hoje, o cumprimento da ordem “deem vocês mesmos de comer” começa com a adoção de um estilo de vida sóbria pelos setores sociais e povos ricos e com a erradicação da exploração comercial dos países ricos sobre os pobres. Mas deve prosseguir na conquista da soberania alimentar dos povos e na denúncia dos sistemas econômicos injustos, que sempre encontram defensores e servidores, inclusive em nome do combate à corrupção.
Deus, pai justo e mãe compassiva! Tu queres que ninguém fique fora da festa da vida, e que nossa felicidade não seja o aumento da posse e do consumo de bens mas a redução dos desejos e necessidades. Suscita e sustenta em nós a mesma compaixão que moveu Jesus no cuidado aos doentes, na acolhida aos marginalizados, na libertação dos oprimidos e no socorro aos famintos. Ensina aos nossos ministros ordenados e às nossas comunidades a responsabilidade de ensaiar formas de vida mais sóbrias e solidárias, sem medo de, diante da fome que não pode esperar, repartir o pão com quem tem fome. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
Profecia de Isaías 55,1-3 | Salmo 144 (145)
Carta de Paulo aos Romanos 8,35-39 | Evangelho de São Mateus 14,13-21

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