quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

5° Domingo do Tempo Comum

Jesus nos toma pela mão e nos faz livres e servidores/as.
(Jó 7,1-7; Sl 146/147; 1Cor 9,16-23; Mc 1,29-39)
Há 256 anos, no dia 07 de fevereiro de 1756, como desfecho de um confronto desigual e sanguinário, o índio guarani Sepé Tiarajú misturava seu sangue ao sangue do seu povo martirizado. Seu grito ressoa ainda hoje nas coxilhas do Rio Grande do Sul e desperta os ouvidos dos/as discípulos/as de Jesus Cristo e daqueles/as que crêem que outro mundo é possível: “Deixem-me viver!” Nesse grito ressoa o lamento e o clamor da humanidade oprimida, desde a sogra de Pedro e a multidão de estropiados que buscavam em Jesus uma centelha de liberdade até os povos indígenas do Brasil de hoje, os palestinos divididos por um muro iníquo e os sírios reprimidos ferozmente por um regime sustentado pelos interesses ocidentais. Deus não é indiferente ao clamor dos seus filhos e filhas. Ele assume e recapitula esse clamor no grito do seu próprio Filho no alto da cruz. Em cada eucaristia nos encontramos com seu corpo crucificado e somos revigorados para prosseguir seu ministério de compaixão.
“Foram, com Tiago e João, para a casa de Simão e André...”
No domingo passado acompanhamos Jesus em sua primeira ação pública, na sinagoga de Cafarnaum, quando calou a voz dos escribas e foi reconhecido pelo povo como um pregador com mais autoridade que eles. Aquela foi uma ação pública, no sentido pleno da palavra: ocorreu num espaço público e sagrado do judaísmo, no domínio próprio das autoridades religiosas.
O movimento seguinte é sua saída da arena pública para um âmbito considerado privado: a casa de Simão e André, um espaço marcadamente íntimo, doméstico e cotidiano. Mas a casa se torna espaço de acolhida e recuperação de doentes de todos os tipos, superando uma separação rígida entre espaço público e espaço privado. O terceiro movimento de Jesus é a retirada para um tempo e um espaço de oração pessoal, no qual confirma seu objetivo de andar por todas as aldeias e lugares da redondeza.
A ação libertadora de Jesus não conhece fronteiras: supera a oposição entre religião e política; desconhece a divisão entre espaço público e espaço privado; une oração e ação; não reconhece a prioridade aos homens em detrimento das mulheres; vai além do moralismo que impõe o respeito às autoridades e faz pouco caso do povo simples; une de forma indissolúvel o amor a Deus ao amor ao próximo.
“Tive por ganho meses de decepção...”
Na casa de Simão e de André Jesus toma conhecimento de que a sogra de Simão estava acamada. Aquela mulher anônima é o símbolo da humanidade oprimida por doenças, dominações  e doutrinas que discriminam e condenam. Constritas ao mundo privado, quando adoeciam as mulheres eram ainda mais segregadas, inclusive no próprio espaço doméstico. Ao machismo araigado na mente e no coração dos homens vinha se somar a ideologia da impureza.
A condição humana simbolizada na sogra de Pedro é descrita com traços vivos por Jó: os homens e mulheres vivem como bóias-frias que esperam ansiosamente pelo miserável pagamento do dia; têm como herança dias e meses de ilusão e noites de insônia; é como se tivessem o corpo coberto de feridas e se a vida não tivesse mais força que um sopro, desassistida de qualquer possibilidade de felicidade.
Essa não é a simples descrição da vida de um pecador castigado por Deus, nem um discurso que despreza a fugacidade das coisas do mundo. É uma triste e dolorida metáfora daquilo que milhões de homens e mulheres experimentam um pouco a cada dia. É a realidade diante da qual Jesus sente suas entranhas se remoer de compaixão e que o impele a falar e agir. Não há a mínima possibilidade de ficar indiferente!
“Ele aproximou-se e, tomando-a pela mão, levantou-a.”
Jesus foi informado de que a sogra de Pedro estava acamada, com febre. É interessante notar que Jesus não faz pouco caso daquilo que seria uma simples febre, não faz de menos por ser a doente uma mulher, nem espera que a conduzam a ele. “Jesus foi onde ela estava, segurou a sua mão e ajudou-a a se levantar.” É uma espécie de parábola que evidencia um Deus que se aproxima da humanidade oprimida, toma-a pela mão e firma-a sobre os próprios pés.
Num mundo no qual predominava a figura masculina, Jesus se importa com a febre de uma mulher... Numa cultura que considerava toda doença um sinal de impureza, Jesus rompe as barreiras e toca no corpo de uma pessoa doente. Numa sociedade que sujeitava os mais fracos e  mantinha multidões na dependência frente aos que detinham o poder, Jesus ajuda o povo caminhar sobre os próprios pés.
Aquela que antes estava segregada e dependente por causa da doença se descobre livre e capaz de servir. “Então a febre deixou a mulher e ela começou a servi-los.” E não se trata de um simples serviço subalterno ao qual são submetidas as mulheres. Ao servir Jesus e os presentes a sogra de Pedro exerce a diaconia emancipada, característica dos discípulos e discípulas de Jesus, e ainda hoje recusada pelas autoridades eclesiásticas eivadas de patriarcalismo.
“Ele curou muitos que sofriam de diversas enfermidades.”
A compaixão de Jesus não conhece fronteiras nem privilégios, a não ser a prioridade das pessoas mais necessitadas. Jesus parece até desrespeita a casa dos seus amigos, e a transforma em lugar de resgate da dignidade e da autonomia de um povo cansado e abatido, doente e oprimido. “À tarde, depois do pôr-do-sol, levavam a Jesus todos os doentes e os que estavam possuídos pelo demônio. A cidade inteira se reuniu na frente da casa...”
Como diz o salmista, Deus “cura os corações despedaçados e cuida dos seus ferimentos”. As ciências não deixam dúvidas: há uma estreita relação entre doença, pobreza, desemprego e insegurança; são todas causas e consequências ligadas uma à outra. São ingênuos/as ou mal-intencionados/as aqueles/as que ainda hoje pretendem isolar uma coisa da outra, tratando da doença como questão estritamente biológica, separada da pobreza e de outros fatores.
Jesus atende às necessidades das pessoas desamparadas e lhes devolve a possibilidade de cidadania e de vida plena, de um bom viver. Ele não receita um simples tratamento para as doenças, pois não é enfermeiro nem médico. Ele cura as pessoas, ou seja, reintegra plenamente as pessoas no convívio social, mesmo que isso signifique negar radicalmente as leis que separam e excluem os doentes, considerados impuros e culpados do próprio mal-estar.
“Jesus se levantou e saiu rumo a um lugar deserto. Lá, ele orava.”
A missão de devolver ao povo a dignidade e autonomia que lhe pertence éum trabalho exigente e, por vezes, absorvente. Corremos o risco de imaginar-nos capazes e auto-suficientes, ou então, de reduzir as pessoas às suas necessidades e carências. Daí a importância de tomar distância para inserirmo-nos de modo coerente e profundo na missão. E é aqui que entra a oração.
Jesus não se deixou envolver pela fama, nem ser dominado pelo que parecia mais urgente. “Todos estão te procurando...” Ele sabia distinguir aquilo que éra urgente e aquilo que era essencial. “Quando ainda estava escuro, Jesus se levantou e foi rezar num lugar deserto.” Para ele, a oração nunca foi álibi para não se importar com o povo necessitado, mas seu jeito de manter abertura a todos, sem excluir ninguém. A oração foi também a pedagogia que o ajudou a centrar a vida na vontade do Pai e não em si mesmo.
“Vamos a outros lugares, nas aldeias da redondeza...”
O resultado da oração vivida como encontro sem reservas e sem máscaras com o Pai é a perseverança e a ampliação do campo da missão: “Vamos para outros lugares, às aldeias da redondeza. Devo pregar também ali, pois foi para isso que eu vim.” Na oração Jesus compreende que seu mundo não se resume a Cafarnaum e que sua missão não se restringe à cura dos doentes, apesar da urgência e da fama que isso lhe dava. Ele sabe que deve também se dedicar ao anúncio da Boa Notícia de Deus, e em todo lugar.
E essa é uma lição que todos/as precisamos assimilar. Não podemos buscar em Jesus apenas a cura das nossas enfermidades, nem pensar que é suficiente ocuparmo-nos com os cristãos da nossa comunidade. Como discípulo e apóstolo, Paulo entendeu muito bem essa lição. “Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho!” E assim fez-se servidor de todos, deu-se inteiro a todos, consciente de que a missão não é algo que escolhemos, mas uma decorrência da própria fé.
Querido Jesus, amigo que vem à nossa casa, libertador que não conhece fronteiras, pregador incansável da Boa Notícia aos pobres: contemplamos tua ação, escutamos tua Palavra e logo mais faremos um só corpo contigo. Dá-nos a coragem de seguir teu exemplo e, como Sepé Tiaraju, fazer do serviço aos nossos povos nosso tesouro e destino, e “tudo isso... por causa do Evangelho”, como nos ensina Paulo. Amém! Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf

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