quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Segundo Domingo da Quaresma

Não tenhamos medo de acolher e servir os doentes!
(Gn 22,1-18; Sl 115/116; Rm 8,31-34; Mc 9,2-10)

A vida é uma travessia, e são muitas as armadilhas que nos ameaçam a cada passo. E então o medo nos visita frequentemente, sugerindo construir tendas que nos protejam, ou mesmo voltar à segurança escravizadora do ponto de partida. Milton Nascimento nos desafia: “Nada a temer senão o correr da luta! Nada a fazer senão esquecer o medo! Abrir o peito numa procura, fugir às armadilhas da mata escura...” Façamos essa travessia esquecendo o medo, tendo a Palavra do Senhor como bússola, convictos de que, se o próprio Deus está a nosso favor e nos acompanha na caminhada, nada nos poderá impedir de seguir lutando pela realização dos sonhos que partilhamos com a humanidade. Essa travessia será feita em parceria, homens e mulheres abraçados. E não esqueçamos que a mulher, cujo dia internacional celebraremos na próxima quinta-feira, tem uma magia e uma força que nos alerta, “é a dose mais forte e lenta que ri quando deve chorar, e não vive, apenas aguenta”. E não esqueçamos que a Campanha da Fraternidade tem como objetivo despertar nossa sensibilidade para o serviço aos enfermos, integrando-os em nossas comunidades e atendendo suas necessidades.
“Mestre, é bom estarmos aqui...”
No último domingo escutamos Jesus aunciando que o Reino de Deus está próximo e que, para que se torne realidade, precisamos mudar o modo de pensar e acreditar nessa boa notícia. Esse anúncio despertou um certo entusiasmo, mas, algum tempo depois, Jesus teve que advertir seus discípulos/as: que não se iludissem, pois esse processo de mudança atrairia a rejeição, o sofrimento e a morte. E mais: aqueles/as que quisessem segui-lo deveriam estar prontos/as a renunciar a si mesmos/as, tomar a própria cruz e arriscar a vida (cf. Mc 8,27-38).
Em nome do grupo de discípulos Pedro quis afastar Jesus desse rumo e propôs o caminho do poder e do sucesso, sem rejeição nem sofrimento. Por isso ele se alegrou quando viu Jesus transfigurado e envolvido em luz. Essa atitude de Pedro espelha nossas próprias ambições e mitos: alcançar o sucesso a qualquer custo; chegar antes e sem se importar com quem fica para trás; ocultar ou eliminar o sofrimento; conquistar o poder e agir a partir dele; viver uma fé tranquila e sem sobressaltos; substituir o evangelho do serviço solidário e transformador pela ideologia da prosperidade.
“Eles estavam com muito medo...”
Ao dizer que era bom estar na montanha, envolvidos pelo brilho de Jesus, Pedro disfarça o medo e a confusão de todos. A presença de Moisés e Elias junto a Jesus, longe de trazer tranquilidade, fala da presença de Deus nos momentos difíceis e desanimadores da história. Esta presensa confirma e dá credibilidade ao caminho e ao ensino de Jesus. O evangelho da cruz, a proposta do amor que se faz humano dom de si mesmo, continua valendo. Eis a razão do medo de Pedro, Tiago e João. E de todos.
Atualmente, o medo difuso que nos envolve se evidencia, entre outros, no medo frente à doença e à morte. De tafo, vida, saúde e doença são realidades profundas, envoltas em mistério. Diante delas, as ciências não conseguem dizer uma palavra definitiva, mesmo dispondo de complexos aparatos tecnológicos. Não conseguimos realizar nosso desejo de controlar as condições da vida e de eliminar a morte, e isso provoca um medo difuso e insistente, uma insatisfação difícil de esconder.
Mas há um outro medo, socialmente fatal: é o medo de se aproximar do outro, de se tornar próximo de quem é diferente, de se envolver com quem vive uma situação de visível vulnerabilidade. Amar o próximo supõe a disposição de tornar-se frágil nas mãos dele, e isso nos amedronta. Não seria esse o medo que Pedro e os discípulos tentam desesperadamente esconder? Não seria o medo de, encarnando-se no mundo como servos, experimentar a fragilidade e o desprezo?
“Este é o meu filho amado. Escutem o que ele diz!”
Naquela experiência densa e profunda, os discípulos são envolvidos pela luz e, sucessivamente, tragados pela escuridão nebulosa. E é de dentro da nuvem –  símbolo da presença de Deus na difícil e quase interminável travessia da escravidão para a liberdade – que eles ouvem a voz de Deus: “Este é o meu Filho amado. Escutem o que ele diz.” Pedro, Tiago e João – e com eles todos/as os/as que fomos batizados/as em Jesus Cristo – devem levar a sério o que Jesus Cristo diz e faz.
Escutar o que Jesus Cristo diz significa, negativamente: não fugir diante do chamado a encontrar a vida gastando-a pelos outros; não crer nos mitos que nos dizem que somos superiores aos outros; não imaginar que o Reino de Deus cairá puro e perfeito do céu¸ não fingir que amamos quando nossas ações traduzem desprezo. Positivamente, significa: renunciar aos interesses egoístas e dedicar-se totalmente à missão de levar todas as pessoas formarem uma só família, seguindo Jesus no caminho da cruz.
A Campanha da Fraternidade nos lembra que precisamos assimilar a sabedoria e a ética do samaritano, ou seja: cuidar das pessoas que se aproximam do final da vida, proporcionando-lhes conforto e dignidade. Não podemos aceitar passivamente as mortes causadas pelos acidentes, pela pobreza, pela violência e pela falta de um adequado serviço público à saúde. Mas precisamos também de maturidade para ajudar as pessoas no difícil momento de dizer adeus a esta fase da vida.
“Vamos fazer três tendas...”
É intrigante o desejo expresso por Pedro: “Mestre, é bom estarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias.” Menos mal que as tendas eram para Jesus, Moisés e Elias, e não para aqueles três discípulos medrosos e aferrados às suas idéias. Pedro fala sem saber o que diz, somente para ‘quebrar o gelo’ e espantar o medo. As roupas brancas de Jesus falam muito claramente de martírio, e Pedro quer evitar a todo custo esse caminho.
A tenda lembra a habitação da divindade, o templo. Para a transformação e a humanização do mundo, Pedro prefere o caminho do culto e da adoração e descarta a proposta do amor que se faz dom e enfrenta o próprio martírio. Pedro se sente mais atraído pelo caminho do culto e do memorial que pela proposta da doação da vida. Chamando Jesus de mestre, e não de Filho do Homem, Pedro demonstra que sua compreensão sobre Jesus é muito semelhante à de Judas (cf. Mc 14,45).
A cena da transfiguração é muito usada para amenizar as exigências do discipulado, para substituir o sangue pelas flores e a coroa de espinhos pela coroa do sucesso. Sabendo que os discípulos tinham entendido mal ou pouco o que haviam visto, Jesus os proíbe severamente de falar da transfiguração. Esta mesma proibição aparece depois da reabilitação da filha de Jairo (cf. Mc 5,43) e da libertação do surdo-mudo (cf. Mc 7,36). Para Jesus, cultos espetaculares e publicidade escancarada não são caminhos adequados para resgatar a humanidade perdida e garantir a saúde que todos almejamos.
“Deus pôs Abraão à prova...”
Facilmente identificamos a saúde com a ausência de doenças ou o bem-estar individual. A busca do bem-estar ou da boa forma física pessoal acaba justificando muitos excessos. Precisamos vigiar para que as nossas relações interpessoais não se orientem unicamente à conquista da própria saúde, como se “saúde é o que interessa, o resto não tem pressa”. A própria prática religiosa corre o risco de se tornar uma estratégia para colocar os outros e o próprio Deus a serviço dessa finalidade.
Isaac representava a segurança que Abraão necessitava na velhice. Mas é somente quando ele renuncia a tratar o filho como tábua de salvação e o entrega a Deus que o velho Abraão recupera a segurança essencial, aquela que tem base na certeza da bênção de Deus. Abrindo mão de ser proprietário do próprio filho, Abraão se torna bênção para todas as famílias da terra. Quando pensava estar perdendo o filho para sempre , estava resgatando-o definitivamente.
Jesus Cristo, Mestre e Senhor nosso: sustenta-nos enquanto dura a travessia desta vida e acompanha-nos na caminhada rumo à terra livre, ao pleno bem-estar, nosso e de todos os povos. Ajuda-nos a sacrificar nossas frágeis seguranças, impotentes para garantir a verdadeira saúde/salvação. Abre nossos ouvidos, para que escutemos tua boa e exigente notícia e a traduzamos em ações que resgatam a dignididade tantas vezes pisoteada dos doentes, até mesmo em nossas famílias e comunidades.Não permitas que transformemos nossa Igreja numa tenda ou ilha de bem-estar egoísta e, se for o caso, reduz a pó as estruturas que nos dispensam ou impedem de amar e de servir. Amém! Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf

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