quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

1° Domingo da Quaresma

Simplifiquemos nossos hábitos em vista do bem viver.
(Gn 9,8-15; Sl 24/25; 1Pd 3,18-22; Mc 1,12-15)
Na última quarta-feira, enquando recebíamos um punhado de cinza sobre a cabeça, escutávamos contritos e atentos a interpelação: “Convertam-se e acreditem no Evangelho!” Exatamente nessa ordem: primeiro, converter-se; depois, acreditar no Evangelho. A proposta apresentada e o caminho aberto por Jesus Cristo são portadores de uma novidade tão radical que, para acolhê-la, precisamos mudar nossos esquemas mentais. O período de cinco semanas que hoje iniciamos é um percurso que realiza passo a passo a necessária conversão que nos possibilita acreditar na Boa Notícia da humanidade de Jesus. Calcemos as sandálias, preparemos a mochila e aventuremo-nos nessa peregrinação, recordando que a Campanha da Fraternidade nos convida a desenvolver hábitos de uma vida saudável, na perspectiva do sonho nativo do bem viver.
“O Espírito impeliu Jesus para o deserto.”
O evangelista nos diz que, logo depois do batismo no rio Jordão, quando se descobre filho amado do Pai e servo enviado aos irmãos e irmãs, Jesus é conduzido pelo Espírito ao deserto. Seu batismo assinala claramente um novo começo, mas com seu retiro no deserto esse início parece ser adiado. Na verdade, Jesus se retira do palco e se subtrai aos refletores para aprofundar o sentido da missão que descobriu no batismo. E o faz sem temer a ameaça dos animais selvagens.
Jesus é levado ao confronto consigo mesmo e com as diversas possibilidades e tentativas de viver sua condição de filho amado do Pai. Ele faz a experiência das tentações que acompanham aqueles/as que se empenham no serviço a Deus e ao seu povo. A tentação das soluções fáceis, miraculosas e espetaculares (cf. Mc 8,11). A tentação do legalismo e do casuísmo para beneficiar apenas algumas pessoas (cf. Mc 10,2). A tentação de disputar o poder (cf. Mc 12,15). A tentação de identificar a vontade de Deus com seus próprios medos e vontades (cf. Mc 14,32-38).
“E Jesus ficou no deserto durante 40 dias...”
Os 40 dias de deserto recordam simbolicamente que Jesus foi frequentemente tentado e venceu as tentações guiando-se pelo Espírito. Ele teve que clarear o núcleo do Boa Notícia que deveria anunciar aos pobres. Por isso, o deserto foi um tempo forte de purificação, discernimento e amadurecimento que, de alguma forma, se estendeu por toda a sua vida. O amadurecimento costuma se oferecer na discrição, no silêncio e na margem, longe dos holofotes e da publicidade.
Assim é o tempo quaresmal que hoje iniciamos: um tempo para sair do centro das atenções, para deixar de lado os papéis decorados que encenamos, para vencer a comodidade de ficar na superfície e na periferia de nós mesmos, para penetrar no núcleo mais secreto e vivo do nosso ser. E ali dar nome e enfrentar cada uma das tentações e tentativas que nos levam fugir de nós mesmos e da missão irrenunciável que nos cabe nesse momento irrepetível da nossa história.
“Estabeleço minha aliança com vocês.”
Nesse percurso de 40 dias, sem a ajuda das muitas muletas e subterfúgios aos quais costumamos recorrer, olhando de frente o pó ou o pouco que somos, descobriremos a nossa verdadeira grandeza. Ouviremos então o próprio Deus falando-nos ao coração: “Eu estabeleço minha aliança com você e seus descendentes... E nunca mais haverá dilúvio para devastar a terra...” Deus não se compraz em provocar uma adesão motivada pelo medo. Ele não gosta de conjugar os verbos punir e destruir.
Nesse deserto descobrimos que Deus conjuga os verbos criar, amar e salvar em todos os tempos e pessoas. E sua aliança não se restringe às pessoas consideradas justas e corretas, e nem mesmo aos seres hummanos. “Eu me lembrarei da minha aliança com você e todos os seres vivos...” Os quarenta dias de deserto e quaresma ativam o dinamismo de aliança de tudo com todos e a superação das divisões, hierarquizações e fragmentações que só geram dominação. A beleza do arco-íris não nos deixará esquecer esta promessa de Deus.
“O tempo já se cumpriu e o Reino de Deus está próximo.”
Quem, como Jesus, é capaz de entrar no próprio deserto e vencer as tentações, não teme a doença nem a morte. Assim, ao saber da morte de João Batista, Jesus deixa o deserto, volta à sua terra e veste o manto do profeta perseguido. A mensagem profética que Herodes procurara controlar e calar ecoa na voz inconfundível de Jesus. O evangelho vivo que tentam calar assassinando Luther King, Romero ou Dorothy ressuscitam em mil outras vozes serenas e indomáveis.
O anúncio que Jesus acolheu, aprofundou e  reformulou no seu deserto não comporta ameaças ou imposturas. É pura Boa Notícia. “O tempo de espera se cumpriu e o Reino de Deus está próximo.” Aquilo que era esperança faz-se realidade, aquilo que estava distante agora está inexoravelmente próximo. É o tempo de graça do Senhor, da assinatura de um novo pacto com seus filhos e filhas e com toda sua criação, da justiça vindo como chuva e da paz correndo como rio...
É para isso que vivemos a quaresma, que jejuamos, rezamos e fazemos penitência: para não passarmos ao largo ou relativizarmos a única coisa que vale a pena, o único bem que vale o nosso empenho, a única luta que merece nossa vida: o novo céu, a nova terra, um país sem miséria, uma cultura que enfatiza a relações harmoniosas entre as gerações, entre os grupos sociais, com a natureza e até com a morte, parte insuprimível da vida.
“Convertam-se e acreditem nessa Boa Notícia.”
Em tempos de crises globais – crise alimentar, crise energética e crise financeira – desconfia-se de quem anuncia boas notícias. Ou melhor: duvida-se de que ainda haja boas notícias. Depois de nos ensinarem que seria impossível construir um mundo diferente do atual, regido pela competição predatória, os formadores de opinião e defensores da mercantilização da vida querem agora nos convencer de que a crise não tem saída, ou se resolverá por si mesma e mediante uma operação de salvamento dos bancos.
Quantas são hoje as pessoas, inclusive católicas e lideranças religiosas, que não acreditam em nenhuma mudança ou melhoria nas relações humanas e sociais? Jesus Cristo teria nos enganado? Ou somos nós que esvaziamos sua mensagem, amordaçamos sua Palavra, esterilizamos sua força transformadora, privatizamos sua esperança utópica e convertemos a comunidade cristã num  sistema repressivo?
O tempo quaresmal serve para converter a mente, para acordar a fé adormecida. E aqui trata-se de fé na possibilidade de mudanças possíveis e no realismo evangélico, como nos lembra o octogenário e lúcido Dom Pedro Casaldáliga: “Milhões de pessoas na Igreja sonham com a ‘outra Igreja possível’, a serviço do ‘outro Mundo possível’... Na convulsa conjuntura atual, professamos a vigência de muitos sonhos, sociais, políticos, eclesiais, aos quais de nenhum modo podemos renunciar.”
“Mostra-me, Senhor, os teus caminhos!”
Jesus percorre caminhos que o levam do rio Jordão ao deserto e do deserto à Galiléia. Caminhos que o afastam dos palcos e aproximam da margem. Estradas que levam ao encontro do povo cansado e abatido para anunciar-lhe a Boa Notícia da chegada do Reino de Deus, da renovação da sua aliança no amor e na compaixão. “O Senhor é bondade e retidão. Ele encaminha os pobres conforme o direito, ensina aos pobres seu caminho.”
Eis o rumo que seus discípulos e discípulas precisamos seguir. É apenas um rumo, e não uma estrada bem sinalizada. Os caminhos concretos somos nós que devemos inventar. A partir da conversão de uma mente incapaz de aceitar mudanças e novidades, fechada à esperança de que um outro mundo possa ser engendrado, somos convidados a traçar e percorrer as sendas de uma travessia inadiável: do eu para o nós, da nação para o mundo; de Deus para o ser humano; do ser humano para as demais criaturas...
Senhor! Que a oração seja o ar que oxigena nossa fé. Que ela nos mantenha abertos/as  às tuas promessas. Que o jejum nos ajude a perceber nossos limites e potencialize nossa fome e sede de paz e de justiça. Que a partilha com os mais pobres seja semeadura de novas relações, fecundadas pelo amor e novos estilos de vida. E que nossas celebrações comunitárias nos mantenham numa atitude vigilante e nos sustentem na necessária conversão. Não permitas que o cansaço ou a pressa nos prendam aos velhos hábitos e nos impeçam de caminhar rumo ao bem viver solidário e global. Amém! Assim seja!
Pe. Itacir Brassiani msf

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