terça-feira, 4 de junho de 2013

Peregrinando na cidade de Jerusalém

Será que nós entendemos o que Jesus fez?

Este foi praticamente nosso último dia de peregrinação na terra santa, já que reservamos umas horas do dia de amanhã para um momento mais prolongado de oração na gruta do nascimento de Jesus. Em seguida, ao meio-dia, partiremos para o aeroporto. Hoje nosso dia foi todo dedicado a Jerusalém. Retomamos alguns dos últimos passos de Jesus, visitamos alguns outros lugares caros ao judaísmo e reservamos uma hora inteira para rezar junto à sepultura de Jesus.
“Não sei nem compreendo o que você diz...”
A igreja do Canto do Galo
Nossa primeira parada, logo de manhã, foi na igreja construída sobre o lugar onde habitava o sumo-sacerdote Anás. Ali Jesus foi julgado, condenado e jogado numa cela, que ainda hoje se conserva e pode ser visitada nas escavações sob o templo. A igreja é conhecida como Canto do Galo, pois teria sido ali que, depois de Pedro ter negado seus vínculos com Jesus três vezes, o galo cantou.
A cena narrada pelos evangelhos é paradoxal. Aquele que se reúne ali não é um tribunal que avalia as acusações contra o reformador galileu, mas um tribunal de exceção, cuja tarefa é dar um verniz de legalidade a uma condenação já decretada. As provas são apenas detalhes de menor importância. Marcos registra que os testemunhos eram falsos e contraditórios entre si (cf. Mc 14,53-59).
Mas este lugar quer recordar as contradições que marcam a vida de todo discípulo/a de Jesus, a começar por Pedro. Fazia pouco tempo que, desafiado por Jesus, ele havia declarado: “Ainda que eu tenha que morrer contigo, mesmo assim não te negarei.” (Mc 14,31). Misturado com os soldados reunidos no pátio e interrogado por eles e outras pessoas sobre Jesus, tomado de medo, Pedro negou: “Nem conheço esse homem de quem vocês estão falando.” (Mc 14,71). Então o galo fez ouvir seu canto, Pedro se lembrou do que Jesus lhe havia dito, e chorou...
Pobre Pedro... Tão generoso, a ponto de fazer pouco caso das próprias contradições. Tão parecido conosco, com as lideranças da Igreja, mais nas contradições e incoerências que no arrependimento e nas lágrimas. É triste quando, diante de alguém que aponta nossos pequenos e grandes pecados, nós desconversamos como Pedro: “Não sei nem compreendo o que você diz...”
Cela onde Jesus ficou preso
Inclina os teus ouvidos ao meu clamor...”
Depois de meditar sobre essa passagem do Evangelho, cantamos: “Um certo dia, ao tribunal, alguém levou o jovem galileu. Ninguém sabia qual foi o mal e o crime que ele fez, quais foram seus pecados. Seu jeito honesto de denunciar mexeu na posição de alguns privilegiados.” Mas é sempre importante lembrar que a vida de Jesus não lhe foi simplesmente roubada: ele a doou livremente e com plena consciência ao povo que amava.
Descemos à cela, que estava sob a casa do sumo-sacerdote (que dispunha também de uma guarda policial) onde Jesus possivelmente tenha ficado preso. Ali, no ventre da rocha fria e envolvidos por um silêncio gritante, recitamos o Salmo 88/87. Possivelmente Jesus o tenha recitado naquela noite, misturando o sentimento de terror de quem vê a morte de frente e a confiança própria de um homem de fé profunda e inabalável. Depois desta experiência, ao recitarmos este salmo, nossos sentimentos serão muito mais concretos.
“Senhor Deus da minha salvação, diante de ti tenho clamado de dia e de noite.
Chegue a minha oração perante a tua face, inclina os teus ouvidos ao meu clamor;
Porque a minha alma está cheia de angústia, e a minha vida se aproxima da sepultura.
Estou contado com aqueles que descem ao abismo; estou como homem sem forças,
Estou entre os mortos, como os feridos de morte que jazem na sepultura, dos quais te não lembras mais, e estão cortados da tua mão...
Eu, porém, Senhor, tenho clamado a ti, e de madrugada te esperará a minha oração.
Senhor, porque rejeitas a minha alma? Por que escondes de mim a tua face?
Estou aflito, fui infeliz e moribundo desde a minha mocidade...
Eles me rodeiam todo o dia como água; eles juntos me sitiam.
Desviaste para longe de mim amigos e companheiros, e os meus conhecidos estão em trevas.”
“Tomem, isto é o meu corpo...”
A caminho do Cenaculo
Depois, seguimos para o lugar em que transcorreu um fato cronologicamente anterior: o lugar da última ceia de Jesus, que está a menos de um quilômetro acima da igreja do Canto do Galo. O Cenáculo estava muito tumultuado, não pelas orações em diversas línguas mas pelos diversos grupos de turistas, especialmente as caravanas de estudantes.
Recordamos que ali, repartindo pão e vinho como sacramento da doação de si mesmo e lavando os pés dos discípulos, Jesus deixou-nos seu testamento. A pergunta dele ressoa ainda hoje nos ouvidos de quem repetimos o rito eucarístico numa perspectiva habitual e quase mágica: “Vocês compreenderam o que eu acabei de fazer?” (Jo 13,12)
Além do memorial eucarístico, celebrado num clima de ternura, amizade e apreensão, esse lugar testemunhou o ressurgimento e o arranque missionário da comunidade dos discípulos/as com o recebimento do Espírito Santo. É importante lembrar que naquela ‘sala de cima’ não estavam apenas os doze apóstolos, acompanhados por Maria, mas toda uma comunidade de mais de cem discípulos/as de Jesus (cf. At 1,15; 2,1).
Afastamo-nos um pouco do tumulto e, mesmo no corredor, meditamos sobre a última ceia de Jesus (Mc 14,12-25). E  lembramos que dali os apóstolos partiriam renovados pelo Espírito Santo para anunciar o Reino de Deus em Jerusalém, na Judéia, na Samaria e até os confins do mundo. Por isso, invocamos o santo Sopro de Deus cantando: “Espírito de Deus, desce sobre nós! Guia-nos, Espírito, salva-nos, forma-nos! Rende-nos dóceis, humildes, simples! Suscita virgens, dá-nos apóstolos! Liberta os pobres, dá a paz aos povos!”
Mosaico de N.S.Guadaupe,
no interior da igreja da dormiçao
“Porque não me abandonarás no túmulo...”
Nas imediações está também o lugar onde Maria teria falecido, a ‘igreja da dormição’. Na verdade, é nesta colina, nas imediações do Cenáculo, que habitaram os apóstolos, e também Maria. Segundo a teologia católica, Maria foi assunta no céu em corpo e alma, mas isso não significa que não tenha morrido. Nossa fé diz que seu corpo foi glorificado, e isso não exclui a morte.
A propósito, ontem visitamos o lugar que onde teria sido sepultado o corpo de Maria, aos pés do Monte das Oliveiras, nas margens da torrente de Cedron. Estas palavras do Salmo 16/17 poderiam ter saído da boca de Maria: “Tenho Javé à minha frente sem cessar. Com ele à minha direita, jamais vacilarei. Por isso, meu coração se alegra, minhas entranhas exultam, e minha carne repousa em segurança; porque não me abandonarás no túmulo, nem deixarás o teu fiel ver a sepultura.”
A igreja que faz memória da passagem de Maria para a glória é muito linda. Contém vários mosaicos de inspiração bizantina, que representam passagens da vida de Nossa Senhora e algumas de suas manifestações, como aquela de Guadalupe. Ali invocamos o nome da Mãe e cantamos, ante os olhares surpresos de muitos turistas: “Pelas estradas da vida, nunca sozinho estás. Contigo pelo caminho, Santa Maria vai.”
O muro de todos os lamentos...
“Junto aos rios da Babilônia nós choramos com saudade de Sião.”
Depois dessas três visitas, atravessamos os muros da cidade, percorremos um trecho daquele que era o principal eixo viário da Jerusalém do tempo de Jesus e paramos para um rápido almoço. Com as pernas mais em dia e as energias refeitas, descemos ao Muro das Lamentações, ponto de encontro e de oração dos judeus dispersos no mundo e lugar de peregrinação de quem lhes é próximo.
Começamos lembrando do alegre cântico dos peregrinos quando avistavam a cidade querida:  “Alegrei-me com os que me disseram: "Vamos à casa do Senhor!" Nossos pés já se encontram dentro de suas portas, ó Jerusalém!... Para lá sobem as tribos do Senhor, para dar graças ao Senhor... Lá estão os tribunais de justiça... Vivam em segurança aqueles que te amam! Haja paz dentro dos teus muros e segurança nas tuas cidadelas! Em favor de meus irmãos e amigos, direi: Paz seja com você! Em favor da casa do Senhor, nosso Deus, buscarei o seu bem.” (Salmo 122/121)
Com a destruição do templo, obra do império romano, com a progressiva dispersão dos judeus e substituição da população local, e, mais tarde, com a conquista dos árabes, os hebreus perderam o templo, referência fundamental da sua fé. Impedidos de acessar à antiga esplanada do templo, aquele resto de muro era o que lhes restava de mais próximo ao antigo lugar sagrado. E desde então é ali que os hebreus acorrem para apresentar a Deus seus lamentos.
Imagem panoramica do muro das lamentaçoes
Juntamos nosso lamento àquele dos hebreus, mas também à dor dos palestinos, dos índios brasileiros e de todas as pessoas e povos que perderam ou tiveram roubadas suas referências religiosas e culturais. E rezamos com o Salmo 137/138, composto num outro contexto histórico, mas enraizado em semelhante dor: “Junto aos rios da Babilônia nós nos sentamos e choramos com saudade de Sião. Ali, nos salgueiros, penduramos as nossas harpas; ali os nossos captores pediam-nos canções, os nossos opressores exigiam canções alegres... Como poderíamos cantar as canções do Senhor numa terra estrangeira? Que a minha mão direita definhe, ó Jerusalém, se eu me esquecer de ti! Que me grude a língua ao céu da boca, se eu não me lembrar de ti e não considerar Jerusalém a minha maior alegria!
“Ele ressuscitou! Não está aqui”
Às mulheres que foram de madrugada à sepultura para ungir o corpo sem vida de Jesus e se assustaram ao ver que a pedra fora rolada, os mensageiros divinos esclareceram: “Não fiquem assustadas! Vocês estão procurando Jesus de Nazaré, que foi crucificado? Ele ressuscitou! Não está aqui! Vejam o lugar onde o puseram...” (Mc 16,6). Esse é o fundamento da fé cristã, mas desde cedo aqueles que aderiram a Jesus começaram a peregrinar ao seu sepulcro.

Assim também nós hoje: mesmo sabendo que Jesus não está lá, e mesmo tendo já visitado sua sepultura ontem, voltamos lá hoje. Ontem queríamos ver, chegar perto, observar, fotografar. Hoje voltamos para rezar, indiferentes ao tumulto de sempre. E lá permanecemos em silêncio por mais de uma hora. Não tem magia nenhuma, mas estar próximo do lugar de onde Jesus assumiu e recapitulou os clamores de todas as criaturas nos convida a alargar os braços da nossa oração e assumir nelas todos os clamores, conhecidos ou ignorados, expressos ou inarticulados.
Na tentativa de perceber as fibras e nervuras que unem todas as pessoas e povos, que criam e sustentam a comunhão de todas as coisas, pedimos o dom de compreender que a ressureição de Jesus significa, entre outras coisas, que no seu corpo despedaçado e na sua vida doada incondicionalemente se esconde a força de uma semente que germinará em todas as estações e terras. Entrar no dinamismo da ressurreição significa entrar no caminho do dom, conseguir ver grandeza e glória no amor que se compadece e sofre, onde os poderes só identificam nulidade e derrota.

Itacir Brassiani msf

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