quarta-feira, 20 de julho de 2016

Curso de missiologia (8)

Uma Igreja Nazarena

O Pe. Victor Codina nos desafiou a pensar numa Igreja inspirada em Nazaré. De Nazaré, vila da Galileia, não se fala nada no AT. Nazaré era uma aldeia rural, sem edifícios públicos, artigos sofisticados, atividades muito desenvolvidas, que destinava 90% da produção para pagar os tributos a Jerusalém e Roma. A Galileia era uma região desprezada, com fama de ser habitada por um povo sincrético, mestiço, inculto, rude, suspeito, primário, avesso às leis e bons costumes. Ali Jesus viveu como artesão, viveu do trabalho das próprias mãos. Ali ele é iniciado na experiência de fé do povo judeu, através de Maria e José. Aprendeu a espiritualidade dos pobres de Javé, a frequência à sinagoga. É deste contexto que Jesus extrai as imagens mais vivas que usa na sua pregação.
Se não partimos de Nazaré, não compreenderemos Jesus. Nazaré é um lugar geográfico que deu a Jesus seu sobrenome, mas é também um lugar teológico. Jesus nasceu em Nazaré não por acaso, mas por livre decisão e desejo divino. Ali ele passou 30 anos de sua vida trabalhando, como a maioria dos seus conterrâneos, e dedica-se apenas três anos ao apostolado. Mais que um enigma, Nazaré é um mistério ligado ao mistério da encarnação: proximidade, solidariedade, partilha, simplicidade, em contato com a natureza. Ali Jesus conheceu as festas e a opressão do seu povo, conviveu com estrangeiros, doentes, pobres. Ali ele foi compreendendo o mistério do reino em suas linhas fundamentais e portadoras de novidade.
Jesus sai de Nazaré e vai ao rio Jordão, para ser batizado, e segue ao deserto. Aquilo que conhecemos como tentações é, na verdade, um processo de discernimento entre o caminho de um messias davidico ou de um messias profético, na linha de Isaias. No deserto, Jesus decide pela profecia em moldes nazaretanos, e não pelo messianismo davidico. Na sinagoga de Nazaré, ele explicita o discernimento que fizera em seu retiro no deserto. E desde cedo sua proposta provoca reações adversas, insinuando o INRI da cruz! Ressuscitado, Jesus volta à Galileia e lá espera os discípulos, propondo o resgate do seu messianismo nazaretano. Em Pentecostes, Pedro anuncia que o crucificado Jesus de Nazaré fora ressuscitado por Deus. No caminho de Damasco, Paulo se encontra com Jesus de Nazaré. Os primeiros seguidores de Jesus são chamados nazarenos, e somente em Antioquia passam a ser chamados de cristãos, com o risco de que o novo nome obscureça sua origem nazarena.
A tentação do messianismo davídico ronda a Igreja. Apesar do inegável vínculo de Jesus com Nazaré, e da triste história da dinastia davidica, a permanente tentação da Igreja é configurar-se com a monarquia davidica: ligar-se ao poder político de turno; identificar-se com o poder sagrado; apresentar-se como mãe, mestra e senhora; entender-se como sociedade perfeita; usar da violência contra seus inimigos; competir com a sociedade civil; considerar a monarquia como o melhor modelo de governo. Nessa visão ou projeto de Igreja, o Papa não é apenas o vigário de Pedro, mas também o vigário de Cristo e de Deus. É neste contexto que são concebidas e fazem sentido as cruzadas, a inquisição, as concordatas, os núncios que agem como diplomatas, a busca e a aceitação de ajuda econômica dos Estados, etc. Esse modelo, concebido no início do segundo milênio, cresce com a contrarreforma e com a revolução francesa, e se consolida no Concilio Vaticano I.
Uma Igreja Nazarena é aquela que supera a tentação davidica, a Igreja que Joao XXIII propôs ao Concilio e que submergiu no inverno eclesial. Uma Igreja samaritana seria uma Igreja:
·      Que antes de evangelizar e atuar, se insere e convive com o povo;
·      Mais testemunhal e com menos poderosa e com menos prestigio social e econômico;
·      Mais dialogal e menos impostora;
·      Que escuta o povo e supera a tendência a dogmatizar ou afirmar verdades que não ajudam o povo a viver melhor;
·      Mais laical e popular e menos clerical;
·      Mais comunitária e menos hierárquica;
·      Que fala a língua e a cultura do povo, de um modo simples e compreensível;
·      Livre das alianças com os poderes, confiada no Espirito;
·      Que não impõe dogmas e moral a todos os cidadãos;
·      Lenta e sem pressa, que não acelere processos e ritmos;
·      Que busque mais o bem do povo que seus próprios bens e privilégios;
·      Que não se interessa apenas pela vida intrauterina e pela vida eterna;
·      Que está mais ligada às casas que ao templo, e atua mais desde baixo que de suas instituições;
·      Que não se converte em uma seita, mas mantenha as portas abertas;
·      Que oferece a boa noticia de Jesus crucificado e ressuscitado, como uma fonte na praça;
·      Que anuncia os valores alternativos do Reino;
·      Que coloca o ser humano acima de tudo, inclusive da religião, e que se afasta de toda violência;
·      Que é sensível ao Espirito, que sopra desde baixo e das margens, dos pobres, e que atua também nos artistas, cientistas, regiões, movimentos sociais; 
·      Menos ativista e mais mística e profética, mais contemplativa e menos agitada;
·      Mais ícone que empresa;
·      Mais viva, e não morta e sepultada em edifícios históricos convertidos em museus;
·      Em crescimento, como a pequena semente, que cresce lentamente;
·      Profética, na qual os leigos assumem sua missão na sociedade;
·      Na qual os ministros ordenados sejam servidores do povo, sobretudo dos pobres;
·      Na qual a vida religiosa seja uma instancia crítica e alternativa, mística e profética, aberta aos pobres.

Itacir Brassiani msf

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