Esta
é a conclusão do ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod,
professor aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e
tradutor. Agradeço imensamento ao amigo e professor por nos acompanhado,
ao longo de três meses, com estas belas, oportunas e profundas reflexões
mariológicas. Itacir msf
4. Conclusões
Não é difícil extrair um leque de
conclusões do presente ensaio, primeiramente, das considerações expendidas
sobre Miriam de Nazaré como mulher-ícone do feminino. Sua exemplaridade e
simbologia decorrem de um novo olhar sobre a mariologia que tome em consideração
tanto os avanços das pesquisas exegéticas e teológicas como a permanente busca
de concretude diante das abstrações totalizantes da racionalidade moderna. A
redescoberta do símbolo coincide com a emergência do feminino e do feminismo,
ligados aos processos de emancipação e libertação da modernidade e
pós-modernidade. A exigência do retorno ao concreto ocorre paralelamente à
redescoberta do símbolo. Miriam de Nazaré não deve ser vista como ser celeste,
acima das vicissitudes históricas e das imanências humanas, mas na
ordinariedade da sua situação histórica, social e religiosa. Esta mesma
situação histórica, social e religiosa precisa ser considerada em seu valor
evocativo e simbólico. No símbolo se percebe maior densidade de significados do
que num logocentrismo racional e estéril. O símbolo nos remete ao mistério da
vida e das experiências vividas. “Não é o conhecimento que ilumina o mistério,
é o mistério que ilumina o conhecimento. Podemos conhecer somente graças às
coisas que jamais conheceremos” (Evdokimov, apud FORTE, op. cit., p.
16).
Miriam de Nazaré é, neste sentido , a mulher-ícone
do mistério , mas ,
ao mesmo tempo ,
a mulher-ícone do feminino .
Como tal ,
coloca desafios tanto
à filosofia como
à teologia feministas .
Enquanto teoria
filosófica da libertação feminina , o feminismo
se apresenta como valorização e integração das diferenças
de gênero , na reciprocidade
homem-mulher, que não
mortifica e nem expropria nenhum polo da relação ,
mas que ,
amparado precisamente numa ontologia relacional, dá conta
da origem metafísica
da reciprocidade e do caráter relacional do masculino
e feminino humanos .
A reciprocidade ontológica
entre varão
e mulher afirma a absoluta
dignidade de ambos ,
expressa sua
abertura mútua
e sublinha a exigência constitutiva e constituinte da interlocução
e dialogicidade libertadora do homem que traz em si a mulher (anima)
e da mulher que
traz em si
o homem (animus). A usurpação do masculino pelo feminino ou do feminino pelo masculino desumaniza o que
é radicalmente humano :
ser varão ou mulher .
Enquanto teoria teológica do feminino, o
feminismo se interroga sobre os fundamentos teológicos da imagem masculina de
Deus, em prejuízo do “rosto materno de Deus” e de como a religião, a Igreja e a
teologia, vistas como representantes do poder patriarcal e desconhecedoras da
experiência feminina de metade da raça humana, colaboraram historicamente na
opressão psíquica e sexual e na desqualificação
dos dons e carismas tipicamente femininos, em relação à dignidade do
corpo da mulher e no que se refere à sua participação igualitária na estrutura
eclesial e eclesiástica, em vista da construção do Reino de Deus.
A teologia feminista identifica na
mariologia profética do Magnificat a mulher
humana ousada que pronuncia o “sim” do assentimento ativo — e não meramente
passivo —ao projeto redentor de Deus. Identifica, outrossim, a escolha corajosa
da parceira na libertação antecipatória e escatológica da comunidade
messiânica, mas também a mulher que não
duvidou em proclamar que os poderosos seriam depostos dos tronos, que os
orgulhosos seriam dispersos nos pensamentos dos seus corações, que os ricos
seriam despedidos de mãos vazias e que os humildes seriam exaltados e os pobres repletos de bens. No horizonte
de uma antropologia do feminino brota uma teologia miriana que eterniza o
feminino em Miriam, conferindo-lhe caráter soteriológico e escatológico, ao
dizer seu “fiat” e ao propiciar, na plenitude dos tempos, a encarnação
do Filho de Deus. Miriam de Nazaré se abriu à plenitude da feminilidade ao
consentir ser mãe de Jesus “na história da salvação que é a história da
progressiva assimilação do homem por Deus e de Deus pelo homem” (BOFF, op.
cit., p. 267).
Além de mulher
e mãe na plenitude de sua
feminilidade, Miriam de Nazaré é a mestra
por excelência e a pedagoga original
que conduz à escola da vida, da sabedoria e da salvação libertadora[i].
Em vários momentos da reconstrução do perfil bíblico da mãe de Jesus, acenamos
para a dimensão pedagógica e educativa
das atitudes e das palavras de Miriam de Nazaré. Relembremos os momentos
nucleares e mais cruciais e significativos. No início do ministério público do
seu filho, ao ensejo de uma festa de núpcias em Caná da Galiléia, Miriam
constata que o vinho terminara, motivo de constrangimento para os noivos e de
decepção para os convidados: “Não têm mais vinho” (Jo 2,3). Juntamente com o
trigo e o azeite, o vinho representava para os judeus um dos elementos
essenciais da vida humana. No Antigo Testamento, o vinho, além da sua
finalidade de alegrar a existência e as festas humanas, simboliza a felicidade
dos tempos escatológico-messiânicos. No Novo Testamento, o vinho simboliza a
novidade radical do Reino de Deus em Jesus de Nazaré.
Apesar da resposta enigmática dada por
Jesus à observação da sua mãe, esta recomenda aos “serventes”: “Fazei tudo o
que ele vos disser” (Jo 2,5). A exortação de Miriam, vista na teologia
tradicional como uma postura de mediação e intercessão — “mãe de todas as
graças” —, na verdade, dentro do propósito teológico joanino, nos ensina que,
como discípula exemplar, ela também sabe aceitar o distanciamento e autonomia
do filho. Ao mesmo tempo, porém, suas palavras demonstram confiança radical em
Jesus, atitude básica que define a verdadeira fé. O ensinamento pedagógico de Miriam, no episódio deste “primeiro sinal”
de Jesus expressa a radicalidade da confiança que devemos ter nos desígnios
divinos, por mais enigmáticos que pareçam.
Outro momento-chave da atitude
pedagógico-educativo de Miriam de Nazaré encontramos no relato lucano do
reencontro de Jesus, aos doze anos, no Templo. Após três dias de procura, José
e Miriam encontram Jesus no Templo, “sentado em meio aos doutores, ouvindo-os e
interrogando-os” (Lc 2,46). Tomando a dianteira, Miriam, de maneira delicada,
mas firme, reprova o comportamento de Jesus. Fica explícito o direito dos pais
de recriminar uma postura do filho tida como censurável. A resposta de Jesus,
novamente incompreensível para seus pais, revela a ruptura de Jesus dos laços
familiares e sua total dedicação à causa do Pai.
É nesta atitude polivalente dos
procedimentos pedagógicos e educativos de Miriam de Nazaré que ela se torna a
mulher forte e sábia, a mestra e “sede da sabedoria”. A sabedoria de Miriam de
Nazaré não significa visão beatífica antecipada ou vivência infusa, como se
conhecesse tudo a respeito do seu filho, desde o seio materno. Se tivesse plena
posse da natureza e do alcance da missão messiânica do seu filho e da sua
própria participação no projeto de libertação da humanidade, por que o
evangelista teria afirmado que “seu pai e sua mãe estavam admirados” (Lc 2,33)
ou “Eles, porém, não compreenderam a palavra que ele lhes dissera” (Lc 2,50)?
Ao invés, ela se encontrou no centro dos “desígnios insondáveis e dos caminhos
imperscrutáveis” de Deus, como lemos na epístola aos Romanos (cf. Rm 11,33).
Ainda concernente à sabedoria da mãe de
Jesus, é interessante transcrever a opinião do Doctor Angelicus, Tomás
de Aquino: “Não podemos duvidar que recebesse a Santa Virgem, e excelentemente,
o dom da sabedoria”[ii].
Contudo, examinando mais atentamente a opinião do Aquinate, descobre-se que
essa sabedoria era restrita, porque “teve o uso da sabedoria, na contemplação
(...). Mas, não teve o uso da sabedoria para que ensinasse, pois isso não
convinha ao sexo feminino” (Id., ibid.), amparando-se numa afirmação
extremamente infeliz de são Paulo: “Eu não permito que a mulher ensine...” (1Tm
2,12).
Em suma, a mestra de Nazaré, a “sede da
sabedoria” e a pedagoga “cheia de graça” da libertação nos deixou alguns
ensinamentos como verdadeiras “lições de casa”:
· a
tarefa de estudar e ensinar a mariologia à luz da antropologia feminina e da
teologia feminista, para descobrirmos o verdadeiro “rosto materno de Deus”;
· a
tarefa de identificar
na Miriam de Nazaré a mulher-ícone do Mistério , cuja interpretação
simbólica deve superar o viés
cognitivo dos dados bíblicos, pela estrutura
do conhecimento , para
atingir a via afetiva da “sede
da sabedoria ”;
· aprender
que, em Miriam de Nazaré, a transcendência (o lado de lá) de Deus se fez
condescendência (proximidade no lado de cá), pela encarnação de Deus no seio da
mãe de Jesus;
· aprender
a lição da necessidade de um contínuo e crescente peregrinar na fé, de um “crer
no incrível”, expresso no “fiat” cotidiano diante dos mistérios
insondáveis da vida;
· e,
principalmente , cantar ,
viver e pregar
profeticamente o hino do Magnificat como o grande ensinamento educativo
e pedagógico de libertação
dos “pobres de Deus ”,
destinatários privilegiados do envio do Filho de Deus ,
“nascido de mulher ”, para
que todos
alcançassem a filiação divina [iii].
Bertilo Brod
[i] Seria assaz
sugestivo e pedagógico
resgatar , neste contexto ,
o significado profundo
da invocação “Sedes
sapientiae” (“sede da sabedoria ”) da ladainha de Nossa Senhora .
[ii] “Dicendum quod non est dubitandum
quin Beata Virgo acceperit excellenter
donum sapientiae”. Tomás de Aquino. Suma
Teológica . Vol. VIII, III Parte , questão 27, art. 5,
ad 3. 2. ed. Porto Alegre :
EST/Sulina /UCS, 1980, p. 3738.
[iii] O presente
ensaio já
estava ultimado quando apareceu a
publicação do livro de Augusto Cury, Maria,
a maior educadora da história , na qual
ao autor examina dez
princípios que
Maria utilizou para educar
o Meino Jesus. Não se instrumentaliza de
uma visão teologia
ou religiosa
da Mariologia, e sim de alguma percepção proveniente de alguns
ângulos da psiquiatria ,
psicologia , filosofia
e pedagogia . A 2.ed. desta obra apareceu em
2010, pela Editora
Planeta do Brasil, de São Paulo.
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