Qual é a palavra que pode sustentar
nossa sede de viver?
(Js
24,1-2.15-18; Sl 33/34: Ef 5,21-32; Jo 6,60-69)
Os milagres
extasiam, as canções embalam e as belas palavras encantam, mas o risco da
superficialidade continua sempre ameaçando os/as discípulos/as de Jesus Cristo.
Nem sempre estamos dispostos/as a pagar o preço embutido no bastismo. É muito
tentador adocicar a mensagem de Jesus Cristo e colorir romanticamente o caminho
do discipulado. Alguém escreveu: “Em nossa cultura moderna é difícil alguém vir
a ser cristão. Dentro das premissas dessa cultura é difícil alguém viver e agir
como cristão. Quando alguém tenta fazer valer efetivamente seu ser-cristão, ele
próprio passa a constituir uma dificuldade para o mundo que o cerca” (F. X.
Kaufmann). O diálogo entre Jesus e seus discípulos relatado por São João
explicita esta dificuldade e nos chama a superar uma adesão exterior e ingênua
à proposta de Jesus.
“Esta palavra é dura. Quem pode escutá-la?”
Lembremos que
estamos ainda no capítulo 6 do Evangelho segundo João. Tudo começou com a
partilha dos pães e dos peixes a cuja propriedade exclusiva um jovem discípulo
havia renunciado. Entusiasmada com a abundância de alimento, a multidão quis
estabelecer Jesus como rei, mas ele fugiu de fininho. Diante da recusa de
Jesus, os discípulos começaram a ficar desorientados e tentaram fugir. Mas
Jesus veio ao encontro deles no meio do mar agitado.
Depois disso, temos
a longa catequese de Jesus sobre o pão verdadeiro que alimenta de fato e merece
ser buscado – sua carne e seu sangue, seu percurso de humanização – e da ação
que caracteriza os cristãos – crer em Jesus e fazer-se dom para a vida de
todos. Com isso Jesus confirma que o
caminho da vida em abundância não passa pelo assalto ao poder mas pela
aceitação da própria vulnerabilidade e pelos meios considerados frágeis, como o
dom de si e a compaixão.
“Isso
vos escandaliza?”
A chamada
catequese de Jesus sobre o pão da vida não tem nada de inocente, espiritualista
ou inofensivo, e os discípulos entenderam isso perfeitamente. Por isso disseram a Jesus
que “este modo de falar era duro demais” e que era difícil continuar ouvindo
seu ensino. De fato, tantos cristãos ainda hoje acham dificil, quando não
impossível, construir a paz e garantir a vida para todos sem o recurso aos
meios oferecidos pelo poder estabelecido.
Esta é a razão
da crise dos discípulos: seguir alguém que não aceita ser rei, renunciar à
ambição individual de estar à sua direita ou à sua esquerda, assimilar a
entrega de si mesmos como caminho de realização, assumir a condição de servo/a
como a mais nobre e digna do ser humano. Dominados pela expectativa do triunfo
e do sucesso, muitos/as se frustram, rebelam e abandonam Jesus. Um Messias
encarnado, humano e soliário lhes parece um escândalo, uma pedra de tropeço.
Mas Jesus
provoca ainda mais os discípulos já escandalizados, enfatizando que é próprio do ser humano descer, que quem
desce ou é rebaixado é visto por Deus como o mais nobre e perfeito. Dizendo que
é o Espírito que dá vida, Jesus está apontando para o dinamismo que leva à
entrega de si, para o amor, e não para algo exterior à história ou à vida
humana. Mas, conhecendo-nos muito bem, Jesus adverte: “Entre vocês há alguns
que não acreditam.”
“Vós também quereis ir embora?”
João observa
que “a partir desse momento, muitos
discípulos voltaram atrás, e não andavam mais com Jesus.” Eles acreditavam
num outro Jesus, num messias feito à medida da ideologia e dos interesses
individuais e da própria classe. Aqueles/as que acreditam num Deus feito à
própria imagem e semelhança, cedo ou tarde acabam chegando a esta mesma encruzilhada
e têm que decidir entre seguir a própria fantazia ou aderir a Deus assim como
ele se revela.
Longe de ser
uma simples adesão intelectual a verdades teóricas e morais inofensivas ou opressoras,
a fé em Deus implica numa determinada
postura ética: tratar o outro como irmão e próximo, acolhendo e respeitando
sua sacralidade; representar o próprio Deus no cuidado com as criaturas;
submeter-se unicamente a Deus e sua vontade e dessacralizar todos os poderes e
autoridades; etc. Esta é, em outras palavras, a provocação de Josué. “Se vocês
acham que não é bom servir a Javé, escolham hoje a quem vocês querem servir.”
Nunca é demais
lembrar que a pergunta de Jesus se dirige a todos/as nós neste exato momento da
nossa caminhada, na posição social, econômica ou eclesiástica na qual estamos:
“Vocês também querem ir embora?” E a resposta não pode ser da boca pra fora, da
cabeça para cima, mas consciente, engajada e consequente. Ou não é verdade que muitos
de nós, inclusive religiosos/as e padres, vivemos uma fé que não passa de um
verniz que nos cobre de superficialidade?
“A quem iremos, Senhor?”
“Eu e minha
família serviremos a Javé”, diz Josué, provocando a resposta de todo o povo
prestes entrar na terra desejada e prometida, na inauguração de uma nova ordem
social, altwernativa ao ‘sistema Egito’: “Nós também serviremos a Javé, pois
ele é nosso Deus. Longe de nós abandonar a Javé para servir outros deuses...”
Por sua parte, Pedro, em nome de um bom grupo de discípulos e de forma um pouco
resignada, responde a Jesus perguntando: “A quem iremos, Senhor?”
Hoje talvez a
questão central não seja propriamente decidir entre o Deus cristão e outras
imagens e experiências de Deus, entre Jesus Cristo e outros mediadores da
salvação. A questão é mais de ordem prática, e se trata de decidir a que e a quem serviremos. Qual é o caminho que
nos levará à vida abundante para todos: a estrada do ‘cada um para si’ ou a do
‘todos por um’? Não faltam aqueles/as que pensam que ‘quem pode mais chora
menos’ e decidiram servir a si mesmos.
“A quem iremos,
Senhor?” A resposta não vem da boca de Jesus, não é ditada por um suposto
Espírito sempre pronto a sugerir respostas prontas. Trata-se de um
discernimento que nós mesmos/as devemos fazer. De minha parte, apesar de minhas
infinitas contradições, fico com Jesus Cristo e sua humanidade, com o Evangelho
e sua liberdade, com o dom de mim e sua fecundidade, com o serviço aos irmãos e
à sua dignidade. Não me reconheceria mais fora desse horizonte.
“Tu tens palavras de vida eterna!”
Jesus é a Palavra
de Deus feita carne solidária, e suas palavras são portadoras de vida. Pedro
entendeu bem: “Tu tens palavras de vida eterna.” Apesar de tudo, Pedro havia percebido que,
diante de Jesus, todos se descobrem pessoas dignas e capazes, chamadas a uma
liberdade sempre mais plena e exigente, portadores de uma vida cada vez mais
plenificada, peregrinos de um caminho que liberta porque jamais termina.
Crer em Jesus é
experimentar uma liberdade radical, promotora da liberdade de todas as
criaturas. Só quem foi libertado/a de tudo está em condições de servir. “Sejam
submissos uns aos outros no amor de Cristo”, pede Paulo aos esposos e a todos
os cristãos. Sub-missio, missão
subalterna, estar à disposição do outro. É isso que nos leva a assumir o fardo
do outro, a ser sub-stituto, a suportá-lo
nas penas e sofrimentos, nos sonhos e buscas.
Longe de
afirmar a suprepacia do homem sobre a mulher, do patrão sobre o empregado, do
clero sobre os leigos (e assim por diante), Paulo insiste na reciprocidade da
submissão dos cristãos, e afirma que ela radica no amor manifestado em Jesus Cristo. Os
outros, por mais diferentes que sejam, condividem conosco a mesma humanidade,
de modo que submeter-se a eles para servi-los no amor equivale a amar a si
mesmo. Este é o caminho e a Palavra de vida que sai da boca de Jesus.
“Nós cremos firmemente e reconhecemos que
tu és o Santo de Deus.”
Jesus amado,
profeta temido por tua intrepidez, pão que alimenta nossa fome mais profunda,
Palavra que nos mantém no belo e difícil caminho da vida! Ensina-nos a
encontrar a simplicidade profunda do teu Evangelho e a vivê-lo com inocente e
desarmada alegria, como o fez Dom Helder Camara (+27.08.1999). Ilumina e
fortalece nossos/as catequistas: que eles experimentem gozosamente a glória de
descer ao encontro dos mais pobres para ser tua Boa Notícia para eles e
conduzam ao teu encontro as pessoas a eles/as confiadas. Assim seja. Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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