Este
é um ensaio de mariologia escrito pelo nosso amigo Bertilo Brod, professor
aposentado da URI/Erexim, pai e vovô, pedagogo, ensaísta, teólogo e tradutor.
Este fragmento faz parte do terceiro capítulo do ensaio, que apresenta uma
reflexão mariológica no horizonte da pedagogia feminista e libertadora.
3.3 O ensinamento libertador
do Magnificat (3)
Da centralidade do discurso
teológico do Magnificat sobre Deus , em seus três campos semânticos assinalados , brota um discurso teológico sobre
Miriam de Nazaré, a serva humilde e pobre
de Deus , proclamada bem-aventurada
por todas as gerações
e em
quem Deus
fez grandes coisas
(cf. Lc 1,48-49). Deste autorretrato, colocado pelo evangelista nos
lábios da mãe
de Jesus, destaca-se uma característica central que
estabelece o elo de transição
para o tema
da pedagogia da libertação .
Referimo-nos ao conceito de “humilhação ” (em
grego : tapeínôsis) do versículo 48 — uma inserção
lucana no poema preexistente — e ao termo “humildes ”
(em grego :
tapeinós) do versículo 52.
O vocábulo grego tapeínôsis, de difícil
tradução nas línguas
modernas, a partir da raiz
tapeín, oferece correspondência com o adjetivo hebraico anawim
e com o tema
dos pobres . Corresponde, portanto , ao conceito
de pobreza , inicialmente
no sentido de carência
de bens materiais ,
mas também
no sentido de outras contingências humanas, como
a esterilidade de Lia
(cf. Gn 29,32) e de Ana (cf. 1Sm 1,11),
a aflição de Agar (cf. Gn 16,11), os trabalhos de Jacó na casa
de Labão (cf. Gn 31,42), a servidão de
José no Egito (cf. Gn 41,52), a humilde condição social
de Gedeão (cf. Jz 6,15) e várias outras vicissitudes
do povo judaico ,
especialmente os da dominação
estrangeira (cf. Dt 26,7; Is 40,2; 2Mc
3,51; Jd 6,19). São tipos
de “pobreza ” que
o texto hebraico traduz com os termos anaw
(pl. anawim) e ani e cuja
raiz expressa
a idéia de estar
“curvado ”, “dobrado ”.
No caso do Magnificat, o termo tapeínôsis
cumpre esta pluralidade de conotações que se expressam principalmente em nossos
conceitos de “humilhação”, “humildade” e “pobreza”. A pessoa humilhada, humilde
e pobre, na qualidade de anaw ou ani, era aquela que se refugiava
no Senhor, na expectativa de obter redenção e socorro. Todo o contexto do canto
do Magnificat assinala para os termos tapeínôsis e tapeinós
o significado de pobreza material, mas também e principalmente o sentido de
“condição humilde”, de “pequenez”, de sua condição de mulher e de virgem e de
insignificância aos olhos do mundo. Sentindo-se
objeto da solicitude de Deus, Miriam se solidariza com os que nada são, nada
podem e nada têm, isto é, com os verdadeiros “pobres de Deus” da nova
economia da salvação.
Chegamos, assim ,
à parte central
do Magnificat: “Agiu com a força de seu braço , dispersou os homens
de coração orgulhoso .
Depôs poderosos de seus
tronos , e a humildes
exaltou. Cumulou de bens a famintos e despediu ricos
de mãos vazias” (Lc 1,51-53). Trata-se
do “cântico por
excelência da libertação ”,
do hino profético
sobre a mudança
radical do status
quo:
“Poucas vezes ouviram-se palavras
mais sinceras, gratificantes e explosivas. São palavras sinceras porque
refletem a experiência mais íntima de uma mulher visitada por Deus; gratificantes
porque evocam a presença de um Deus que age por meio do amor e explosivas
porque aludem à mudança radical da nossa terra nas três ordens fundamentais da
ideologia, da política e da economia” (Pikasa, apud AUTRAN, op. cit., p.
104).
Esta parte
central do Magnificat (v. 51-53)
é um poema
que exalta os humildes
e insignificantes , derrubando os poderosos e arrogantes .
São anunciadas
três grandes
rupturas estruturais. A primeira
atinge a postura de vida
dos homens de “coração
orgulhoso ”. Ao contrário
dos mansos , os soberbos
e orgulhosos divinizam seu saber e poder
e se apegam à sua visão
de mundo , científica ,
filosófica ou religiosa .
Estamos, basicamente, no âmbito da ideologia , onde
os soberbos se fecham ao diálogo com os outros e à solidariedade ,
pois , pretensiosamente ,
nada têm a aprender .
A invectiva anti-ideológica do Magnificat é contundente :
o Todo-poderoso decreta ,
“com a força
de seu braço ”,
a dispersão dos dominados pelo
orgulho , revelando, assim ,
a fragilidade das suas
pretensões e as limitações
da sua soberbas .
A segunda ruptura
atinge o nível do poder :
“Depôs poderosos de seus
tronos e a humildes
(humilhados, pobres ) exaltou” (v. 52). O
trono é, na linguagem
bíblica, o símbolo tanto
do poder soberano
do rei quanto
do poder de julgamento do
juiz . Estamos no âmbito
da política , tanto
no nível das micro como das macrorrelações. Os “poderosos ”
agarram-se ao poder , seja político
ou jurídico ,
num travestismo de legalidade ,
mas com
o intuito de defesa
de seus interesses
inconfessáveis , de natureza
pessoal , étnica
ou de classe .
O Magnificat decreta , pela boca de
Miriam, a deposição dos poderosos deste mundo
(em grego :
dynástas), dando a entender que Deus , fiel à sua opção pelos pobres , restitui a dignidade
roubada das vítimas , dos fracos e dos derrotados. “O Magnificat pode ser proclamado hoje como o grande hino da defesa
da cidadania , do direito
básico do ser
humano , a partir
de Deus ” (MURAD, op. cit., p.
142).
A terceira ruptura
afeta o nível
econômico : “Cumulou de bens a famintos
e despediu ricos de mãos
vazias” (v. 53). O versículo reflete uma
realidade histórica
ou um
anelo utópico ?
Do ponto de vista
econômico , a humanidade
se locupletou; a tecnologia se tornou mais sofisticada e a economia
se globalizou como um
todo , impulsionada pela
ciência , tecnologia
e informática . Apesar
do aumento quantitativo
e qualitativo da produção
de alimentos , a pobreza
e a fome não
pararam de crescer em
termos globais .
A absolutização do mercado , transformado
em fetiche
e ídolo moderno
pelos defensores
da doutrina neoliberal hegemônica , provocou concentração
de riqueza , de terra e de
renda e, no reverso
da medalha , a exclusão
social , cultural, econômica
e política de povos
e populações inteiras, quando 20% dos habitantes
do planeta possuem mais
de 80% da renda mundial.
A análise do esquema estrutural dos
versículos 52 e 53, na forma de quiasmo, permite compreender melhor o sentido
mais profundo dos mesmos, através de dois paralelismos: os conceitos afins
“poderosos” do v. 52 e “ricos” do v. 53b se contrapõem aos conceitos antitéticos
“humildes” do v. 52b e “famintos” do v. 53a. Por sua vez, os quatro verbos, no
tempo aoristo da conjugação grega: “depôs”, “exaltou”, “cumulou” e “despediu”),
também se correspondem de maneira sinonímica: derrubar e despedir, exaltar e
cumular, e de forma antitética: depor, oposto de exaltar, e cumular de bens
como oposto de despedir de mãos vazias. Além disso, os “poderosos” e os
“ricos”, objetos do julgamento de Deus, são marcados com a etiqueta “homens de
coração orgulhoso” (v. 51b). É a minoria social que, assentada no dinheiro
(poder econômico) e na política (poder decisório), oprime a maioria da
humanidade, marginalizando-a e desprezando-a do alto do seu orgulho (poder
ideológico).
As três rupturas profetizadas e ensinadas
no Magnificat lucano preludiam a reviravolta de situações que aparecerão
em outras partes do evangelho de Lucas, onde Jesus dá um sentido teológico e
uma dimensão mais profunda à regra de prudência humana presente no refrão
popular: “Todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será
exaltado” (cf. Lc 14,11; 18,14). O tema da libertação total dos oprimidos do
cântico do Magnificat está também em perfeita sintonia com o discurso
programático de Jesus na sinagoga de Nazaré: “O Espírito do Senhor está sobre
mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me para proclamar a
remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista, para restituir a
liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc
4,18-19; cf. Is 61,1-2).
O ensinamento
radical que a mestra do Magnificat nos propõe em sua lição de
sabedoria pedagógica, como jovem mãe do Messias e mãe da “nova humanidade”, se
resume no seguinte: com a oblação generosa dos “pobres de Javé” (incluindo
Jesus pobre, Miriam pobre e os pobres de todos os tempos) se destrói a
abundância econômica e escravizante dos ricos; com a oblação dos humildes e
humilhados, se destrona a dureza política impositiva dos poderosos, e com a
transparência dos mansos e tementes a Deus se dispersa e vence a opressão
ideológica dos soberbos. Trata-se de um “conteúdo programático” libertador e
transformador que faz do Magnificat um “canto de libertação integral do
homem todo e de todos os homens”, numa dimensão social e política da nossa fé e
dos nossos compromissos cristãos. Inserido no plano da salvação de Deus, o Magnificat
é um hino de libertação que não se submete a uma interpretação apenas de ordem
místico-espiritual, intimista e individualizante, como também não a uma
exploração meramente secularizante, de luta de classes apenas intramundana, sem
horizontes de transcendência e divinização do humano.
A pedagogia
do hino do Magnificat nos conduz à percepção
da radicalidade do “novo ”, profetizado no Antigo Testamento ,
gerado e dado à luz
por Miriam de Nazaré, realizado no gesto da gratuidade suprema
da paixão , morte
e ressurreição de Jesus e continuado no Povo de Deus ,
construindo o “novo céu
e a nova terra ”
definitivos . O Magnificat tematiza
a consciência profética e pedagógica da mãe
do Messias , reconhecendo a ação
transformadora de Deus nas relações sociais
e revelando-se mulher comprometida com a história
do seu povo
e com o destino
da humanidade .
Bertilo Brod
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