Ainda temos um longo
caminho a percorrer.
(1Rs 19,4-8; Sl 33/34; Ef 4,30-5,2; Jo
6,41-51)
Nossa liturgia não segue o calendário social e
comercial e passa ao largo do dia dos pais. Entretanto, queremos ter presente nesta
celebração essa figura tão necessária quanto controversa, inserindo-a no contexto
maior do Mês Vocacional e da Semana da Família. Presumimos que a
Palavra de Deus, assim como a própria eucaristia celebrada em comunidade, lança
luzes sobre a vocação leiga e paterna e aponta o rumo para vivê-la de forma
cristã. Um ponto de partida pode ser a atitude de Elias, que, cansado e
amedrontado diante da perseguição, reconhece que não é melhor que seus pais.
Mas o foco central é proposto, como sempre, por Jesus, e retomado por Paulo:
nossa vocação original e permanente é ser filhos/as e discípulos/as de Deus.
Nisso todos – pais, mães, filhos/as, padres, religiosos/as e leigos/as – temos
um longo caminho a percorrer.
“Não
sou melhor que meus pais...”
São fortes as palavras celebrizadas na incomparável
voz de Elis Regina: “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que
fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.” O poema escrito e
musicado por Belchior não se volta propriamente contra a figura do pai, mas
rumina a desolação de quem se propôs a ser melhor do que eles e acabou
frustrado, repetindo chavões e atitudes que havia deplorado e condenado nos
próprios pais.
Parece que o profeta Elias chega a uma conclusão
igualmente dolorida e desolada. Perseguido pelo rei Acab, mesmo tendo sido
socorrido por uma pobre viúva e por outras mãos anônimas e generosas, o profeta
se vê envolvido pelas escuras nuvens da frustração e do desânimo, reconhece que
herdou dos pais e outros antepassados a sede de justiça mas também a infidelidade
à aliança. E tem vontade de morrer. “Tira a minha vida , porque não sou melhor que meus pais!”
“Este
não é Jesus, o filho de José?”
No caso de Jesus, a figura de José, seu pai carpinteiro, é visto pelos
judeus como um problema. A humanidade de Jesus foi e continua sendo pedra de
contradição e de escândalo. Até hoje as cúrias se irritam com teólogos,
evangelizadores ou guias espirituais que, pressupondo serenamente a filiação
divina de Jesus Cristo, sublinham sua humanidade. Em nome de uma ortodoxia
estrita as crias pretendem fugir da história e caem na heresia de menosprezar a humanidade do filho de Deus.
Aceitar e sublinhar a humanidade de Jesus significa
reconhecer o arcano desejo de Deus de
autocomunicar-se às suas criaturas, especialmente ao ser humano. Significa
também ressaltar o dinamismo da compaixão
que leva Deus a entrar definitivamente na condição humana e se identificar as dores
e sonhos da humanidade concreta. Que significado teria fora desse dinamismo a
ação de alimentar com pães e peixes uma multidão cansada e faminta?
A longa discussão que Jesus trava com seus discípulos
e com as autoridades do judaísmo depois de socorrer a fome do povo está longe
de ser uma simples catequese espiritual sobre sua presença real nas espécies
eucarísticas. O que está em questão é o
modo de conhecer e agradar a Deus: Cumprindo leis de forma mecânica?
Celebrando ritos que passam à margem das estradas da vida? Fixando a atenção
numa hipotética vida após a morte e desprezando os desafios da história?
“Aqui
está o pão que desce do céu!”
Jesus se oferece como alimento que desce continuamente do céu e assume a carnalidade das dores e dos sonhos
humanos. Segundo suas palavras, o alimento que faz a diferença e que supera
tanto o maná como a simples distribuição assistencialista de víveres, é sua humanidade
compassiva, mesmo quando parece extremamente vulnerável. A separação ou oposição entre divindade e humanidade expressa a
dificuldade de reconhecer um Deus próximo e implicado com as lutas humanas.
Um elemento importante, que é mais que um detalhe,
aparece na expressão usada por Jesus para se referir a si mesmo como pão do céu. Ele não se apresenta como
pão que desceu do céu (tempo
passado), mas como o pão que desce
permanentemente do céu (tempo presente). “Pois o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao
mundo” (Jo 6,33). Tanto o verbo descer como o verbo dar estão no tempo presente
e estão referidos à missão libertadora de Jesus.
Junto com esta ênfase no tempo presente, temos a
imagem espacial da descida. No
horizonte simbólico e mistagógico do evangelho segundo João, descer é uma metáfora que aponta para o movimento de descida social, central na
vida de Jesus e de quem o segue. A fé em Jesus Cristo e a adesão ao dinamismo
eucarístico não é propriamente uma subida
a Deus, mas uma descida solidária ao
encontro do humano, inclusive do infra-humano e das situações desumanas.
“Todos
serão discípulos de Deus.”
O limite difícil
de superar, tanto para as autoridades do judaísmo como para nós, é a idéia
de que servimos a Deus cumprindo algumas
leis que inventamos e aceitamos como se fossem escritas por ele. O que
Jesus discute com as autoridades do judaísmo não é sua origem divina ou humana,
mas a resistência em aceitar sua
encarnação redentora. Eles não se deixam interpelar e ensinar por sua
atividade em favor das pessoas em geral e dos oprimidos em particular.
Frente a esta resistência, Jesus insiste: a comunhão com as dores e alegrias,
tristezas e angústias, sonhos e esperanças dos homens e mulheres do nosso tempo
é o únco caminho que pode nos levar a Deus. Este é o caminho no qual ele
nos introduz. Esta é a lição que ele nos ensina com profundidade de mestre. Esta
é porta que abre a história para uma vida que não tenha apenas mais duração mas
seja também mais profunda e plena. O caminho que temos pela frente é realmente
longo. E belo!
Jesus recorre aos profetas para enfatizar que nisso
precisamos ser discípulos, que esta é a lição fundamental de Deus. Dizendo que todos serão discípulos de Deus, Jesus
evita os estreitamentos ideologicos, étnicos ou eclesiásticos, e afirma a
universalidade do caminho da vida. Quem
cuida da vida dos outros está no caminho da vida eterna, e quem não aceita e
não se engaja na ação em favor da vida das pessoas em situação de
vulnerabilidade não é discípulo de Deus, se fecha à sua voz.
“Quem
come deste pão viverá eternamente.”
A questão central
não é simplesmente crer na presença real de Cristo no pão eucarístico mas escutar
a Palavra que nos diz mediante sua contínua descida e encarnação na história
humana. Em sua vulnerabilidade e no dom incondicional de si,
Jesus é mais importante que o maná e supera a lei com a qual o judaísmo o
identificava. E a vida que ele assegura, qualificada como eterna, não é uma vida que dura mais no tempo, mas uma vida mais dinâmica e viva: nova, plena,
indestrutível.
Jesus opõe a força de vida da sua humana compaixão à
insuficiência do maná. Ele lembra que o povo hebreu comeu do maná mas morreu,
experimentou o malogro na realização do sonho/promessa de uma terra livre e sem
males. Mas isso não ocorreu propriamente por causa da qualidade do maná, mas por
causa da atitude do povo, incapaz de ouvir e obedecer a Deus (cf. Nm 14,21-23;
Js 5,6; Sl 96,7). O maná, mesmo saciando a fome dos peregrinos, não garantiu a
entrada na nova terra.
Eis aqui a novidade provocativa de Jesus Cristo: somente quem ouve e adere a ele, fazendo-se
seu discípulo/a e alimentando-se de sua humanidade, chega à meta da travessia e
alcança a terra desejada e prometida, a vida plena e abundante. Assim,
reduzir seu ensino à questão da sua presença real nas espécies do pão e do
vinho seria empobrecer e desviar gravemente seu Evangelho. O que está em jogo não é o sacramento da eucaristia mas a irrecusável
humanidade de Deus.
“Sede,
pois, imitadores de Deus, como filhos queridos.”
Jesus amado, te
agradecemos porque nos revelas que Deus é um pai com coração de mãe e te
ofereces a nós como pão que desce e alimenta nossos sonhos e nos sustentas na
luta para realizá-los. Aprendemos contigo – e com pessoas grandes e generosas
como Frei Tito (+10.08.1974), Margarida Alves (+12.08.1983) e Pe. Alfredinho
Kunz (+12.08.2000) – que é sendo bondosos, solidários e compassivos uns com os
outros que seremos filhos/as e imitadores/as de Deus pai. Alimenta com teu
humano corpo e tua Palavra todos os pais, e também nossos anelos de bem viver.
Assim seja! Amém!
Pe. Itacir Brassiani msf
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