Cristão é quem ama e
serve gratuitamente, a fundo perdido!
É possível que alguns de nós ainda estejamos perplexos com as palavras
de Jesus que escutamos e meditamos no domingo passado. Como pode ser ele tão
duro e insensível com os ricos, com os famosos, com quem só tem motivos para
rir e com quem tem mesa farta? Afinal, o que haveria de mal nisso? Bem que
Jesus poderia ter ficado nas bem-aventuranças, e até amenizado um pouco sua
parcialidade em favor das vítimas. Definitivamente, os pobres, os famintos os
que choram e os perseguidos não nos parecem tão perfeitos.
Mas Jesus não impressiona nem se detém. Ele mantém o olhar fixo na
utopia de Deus, no horizonte da vontade do Pai, horizonte tão diferente do
nosso, mas que ele deseja que compartilhemos com ele. Por isso, no contraponto
daqueles que, mesmo confessando-se cristãos, proclamam que “bandido bom é
bandido morto”, que amar não é atitude inteligente e armar é a saída, que às
“pessoas de bem” devemos respeito e aos “maus sujeitos” não resta senão a lei e
as grades, Jesus pede amor inimigos, bênção a quem só sabe nos amaldiçoar,
oração por aqueles que nos caluniam, enfim: amor e doação de si a fundo
perdido.
Jesus não ignora as tensões e conflitos que marcam a história e a
sociedade. Ele está bem consciente dos abismos e muros, cavados a golpes de
indiferença e de exploração, que separam ricos e pobres, saciados e famintos,
tranquilos e aflitos, bajulados e perseguidos. Ele sabe que existem aqueles que
se consideram puros e merecedores de tudo e grupos humanos que são por eles
humilhados e desprezados. Jesus não desconhece que existem pessoas que agem
como nosso inimigos, porque nos odeiam, caluniam, amaldiçoam, esbofeteiam,
penhoram nossos bens. E ele experimentou isso na própria carne.
O que Jesus faz é propor um horizonte e uma régua para que sejamos
reconhecidos como seus discípulos: o horizonte é ser misericordioso (com todas
as pessoas) como o é Deus, universalmente misericordioso; a régua ou medida, é
que tratemos os outros como gostaríamos que eles nos tratassem. O horizonte da
misericórdia é a atitude que Deus demonstrou no êxodo: tendo visto a opressão
do seu povo, age sem demora e sem exigências em favor das vítimas, sem
distinguir entre gente que merecia e gente que não merecia; e manteve essa sua
atitude, transformando-a em compromisso mediante uma aliança.
Como Jesus, os cristãos somos chamados a testemunhar em projetos,
palavras e ações essa misericórdia, primeiro às vítimas dos processos de
dominação e exclusão, mas chegando até aqueles que nos maltratam. Somente assim seremos de fato filhos do Deus
altíssimo, pois os filhos herdam o melhor dos seus pais. Este dinamismo
loucamente transformador que nos vem do Pai e, através de nós, chega às vítimas
não conhece limites ou pré-condições. Amar e ajudar apenas aqueles que “são dos
nossos” não passa de um belo disfarce do nosso egoísmo. Fazer algo pensando
apenas na recompensa não tem nada a ver com o cristianismo.
O amor e o serviço próprios dos cristãos ultrapassam a simples obrigação
de reciprocidade, de dar esperando receber, de emprestar esperando receber de
volta, de amar quem nos ama. E vão também além de um amor ou um serviço
reativo, da obrigação de retribuir a iniciativa do outro. Com sua vida e sua
pregação, Jesus pede que tomemos a iniciativa, inclusive em relação àqueles que
nos fazem o mal: “O que desejais que os outros vos façam, fazei-o também vós a
eles”. Fica claro que o amor cristão é uma ação exigente, e não mero
sentimentalismo, oportunismo, boas maneiras ou refinada estratégia: é uma ação
alternativa!
O amor ao próximo e extensivo aos inimigos somente é possível a partir
de uma rica e intensa experiência de ser filho amado por Deus. Somente
alimentados por esse amor estaremos em condições de superar a raiz da violência
que se aninha e cresce em nós, inclusive a violência que nos é proposta como
palatável e aceitável, conhecida como legítima defesa. É triste e deplorável
ver como muitos cristãos piedosos engolem esse veneno, esquecendo o exemplo e o
ensinamento de Jesus e ampliando perigosamente o conceito de legítima defesa, a
ponto de aceitar até a violência preventiva por medo ou forte emoção.
Jesus de Nazaré, vulto
da misericórdia de Deus e expressão da plena humanidade: desejamos ardentemente
ser como és, amar como tu amas, encarnar tua liberdade e tua ousadia, refletir
em nós a imagem do homem celeste que brilha em ti. Ensina-nos a ser indulgentes
e pacientes, bondosos e compassivos, capazes de tratar os outros a partir de
suas necessidades e não dos seus merecimentos, pois vivemos num país que flerta
perigosamente com múltiplas formas de violência contra os pobres e indefesos.
Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
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