Cegos podem guiar cegos,
e raposas podem cuidar de galinhas?
Há 60 dias o novo presidente do Brasil e seus ministros ocuparam os
cargos para os quais foram eleitos ou nomeados. Os governadores dos estados da
federação também tomaram posse no primeiro dia do mês de janeiro. Os
parlamentares estaduais e federais, deputados e senadores, assumiram suas
cadeiras há 30 dias, e elegeram seus presidentes. No período eleitoral, a
grande maioria dessa gente se apresentou como combatentes da corrupção e
paladinos de uma nova política. Bastaram dois meses para que ficasse evidente
que tanto a maioria dos parlamentares como boa parte dos governadores trazem
pouca novidade.
Longe de nós a pretensão de assumir a postura de juízes que condenam ao
fogo do inferno ou ao inferno das prisões deputados, governadores e presidente.
Jesus nos adverte que, com os olhos vedados por nossos preconceitos e
interesses egoístas, não estamos em condições de julgar quem quer que seja.
Mas, como discípulos de Jesus, pedimos ao Espírito Santo a graça de apreciar retamente
todas as coisas, fatos e processos. Por isso, não podemos nos furtar à tarefa
de analisar criticamente e à luz da fé os acontecimentos e ações, e de denunciar
os prejuízos que eles podem trazer ao povo de Deus.
Uma série de fatos, que ocorreram ou vieram à tona nos últimos meses,
sustentam a afirmação de que boa parte dos homens e mulheres que receberam o
voto de um povo cansado de falcatruas não passa de gente que combateu a lama
que suja os pés de alguns para esconder o lixo que deteriora irremediavelmente
suas próprias palavras e projetos. Recorrendo a discursos ardilosos,
criminalizaram a conduta de alguns para atrair os votos enquanto que, de modo
mais que sorrateiro, afundavam na lama da corrupção e arquitetavam projetos e
planos para caçar os poucos direitos sociais do povo brasileiro, historicamente
defraudado.
Pode um cego guiar outro cego, ou pode um corrupto combater a corrupção?
Precisamos, sim, escutar e meditar o Evangelho de Jesus Cristo em chave social
e profética. Leituras espiritualistas, intimistas ou moralizantes não são suficientes.
Não podemos isolar e espiritualizar esta Palavra de Jesus: “Tira primeiro a
trave do teu olho, e então poderás enxergar bem para tirar o cisco do olho do
teu irmão”. Dizendo isso, Jesus não quer de modo algum questionar a profecia de
quem denuncia as falcatruas dos poderosos, mas alertar para a necessária e
permanente autocrítica que deve acompanhar a denúncia profética.
O próprio Jesus agiu assim, e nisso foi seguido pelos discípulos. É
claro que ele não tinha cisco ou trave nos olhos, pois seu olhar estava voltado
à dignidade dos pequenos, das vítimas, dos últimos na escala social. Sem medo da
morte e sem nada a perder, Jesus se empenhou radicalmente no anúncio e na
realização da Justiça do Reino de Deus, dando prioridade aos excluídos e
criminalizados. E, a partir disso, não mediu palavras para denunciar opressões
e dar nome aos opressores. Mesmo limitados e pecadores, os discípulos fizeram o
mesmo: não se calaram, e denunciaram os olhares enviesados das autoridades
políticas e religiosas.
Voltando ao momento político que vivemos, o problema não é apenas o
cisco ou a trave no olho de boa parte dos eleitos ou nomeados para funções
públicas. Eles não são apenas cegos que se arvoram em guias de cegos, embora
parte deles o seja de fato. Há um grupo considerável que se parece a raposas
que querem fazer-se passar por protetoras do galinheiro. Recorreram ao voto popular
apresentando-se como representantes e defensores dos mais pobres, mas tomam ou
apoiam medidas que ferem e defraudam irremediavelmente as pessoas mais humildes
e beneficiam os ricos e poderosos de sempre. Parece o pior dos carnavais...
O tesouro do Evangelho de Jesus – sua palavra e sua prática – só contém
palavras e propostas que fazem bem ao povo de Deus. Desse tesouro, não podemos
tirar incitações à violência, à punição dos pobres, ao uso de armas, à exclusão
das pessoas que não se enquadram nos nossos padrões. Jesus mesmo foi a pedra
que os construtores rejeitaram, como o foram também seus profetas e
missionários mais autênticos. Por isso, prossigamos firmes e inabaláveis, como
nos pede Paulo, empenhando-nos cada vez mais na proposta do Senhor Jesus. Nosso
esforço em vista da coerência profética não será em vão.
Jesus de Nazaré, vulto
da misericórdia de Deus e expressão da plena humanidade: livra-nos da
hipocrisia de querer acusar as injustiças praticadas pelos outros sem atentar para
as nossas próprias ambivalências, ou até disfarçando-as. Mas livra-nos também
de fugir da nossa responsabilidade profética em nome de convivências
mesquinhas. Faze que produzamos frutos que mostrem que é em ti que estão nossas
raízes! Ajuda-nos a retirar do tesouro do Reino palavras que façam bem aos
nossos irmãos. Assim seja! Amém!
Itacir Brassiani msf
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