A Esperança Menina e suas duas irmãs
maiores (Charles Péguy)
Deus
disse: A Caridade, não me espanta. Isso não é espantoso. Essas pobres criaturas
são tão infelizes que a não ser que tivessem um coração de pedra, como não haveriam
de ter Caridade umas para com as outras? Como não haveriam de ter Caridade para
com seus irmãos? Como é que eles não haviam de tirar o pão da boca, o pão de
cada dia, para dá-lo a desgraçadas crianças que passam? Meu filho teve para com
eles uma tal caridade...
Mas
a Esperança, diz Deus, a Esperança me espanta. Que essas pobres crianças vejam
como tudo o que acontece e ainda acreditem que amanhã vai ser melhor, isso me
espanta. Que vejam como isso acontece hoje e acreditem que vai ser melhor
amanhã cedo, isso me impressiona. Isso é espantoso, e é a maior maravilha da minha
graça.
E é
preciso que de fato minha graça tenha uma força incrível, que ela escorra de
uma fonte e como um rio inesgotável; desde aquela primeira vez que ela escorreu,
e escorre sempre desde então; na minha criação natural e sobrenatural; na minha
criação espiritual e carnal e ainda espiritual; na minha criação eterna e
temporal e ainda eterna, mortal e imortal; desde aquela vez que ela escorreu como
um rio de sangue, do flanco trespassado de meu filho.
Qual
não deve ser a minha graça e a força da minha graça para que essa pequena Esperança,
vacilante ao sopro do pecado, trêmula a todos os ventos, ansiosa ao menor
sopro, seja tão invariável, mantenha-se tão fiel, tão reta, tão pura. E invencível,
e imortal, e impossível de apagar-se, essa pequena flama do santuário que queima
eternamente na lâmpada fiel; essa chama tiritante que atravessou a espessura
dos mundos; essa chama vacilante atravessou a espessura dos tempos; essa chama
ansiosa atravessou a espessura das noites. Desde aquela primeira vez que a
minha graça escorreu para a criação do mundo, desde então a minha graça escorre
sempre para a conservação do mundo. Uma chama impossível de se alcançar,
impossível de se apagar ao sopro da morte.
O
que me espanta, diz Deus, é a Esperança; ela me deixa pasmo, essa pequena
Esperança que parece uma coisa de nada; essa pequena Esperança, imortal. Porque
as minhas três virtudes, diz Deus, minhas criaturas, minhas filhas, minhas
crianças, elas são como as minhas outras criaturas, da raça dos homens.
A Fé
é como uma Esposa fiel. A Caridade é como uma Mãe, uma mãe ardente, cheia de
coração; ou uma irmã mais velha, que é como uma mãe. A Esperança é uma menininha
de nada que veio ao mundo no dia de Natal do ano passado; que brinca ainda com
o boneco de neve, com seus pinheirinhos de madeira da Alemanha, e com seu
presépio cheio de palha que os animais não comem.
Entretanto
é essa menininha que atravessará os mundos, essa menininha de nada. É ela só,
levando os outros, que atravessará os mundos revolvidos. A pequena Esperança
caminha, entre as suas irmãs mais velhas, e não recebe a devida atenção. No
caminho da salvação, no caminho da carne, no caminho pedregoso da salvação, na
estrada interminável. Nessa estrada, entre as suas duas irmãs, caminha a
pequena Esperança. Entre as duas irmãs grandes.
Aquela que é casada,
e a outra é mãe, e ninguém repara nesta. O povo cristão só repara nas duas
irmãs grandes, a primeira e a última, que caminham com pressa, para o tempo
presente, no instante momentâneo que passa. O povo cristão só vê as duas
grandes irmãs, só olha para as duas irmãs grandes, a da direita e a da
esquerda. E quase não repara na irmãzinha que caminha no meio.
Mas é ela, essa menininha, a que arrasta tudo consigo. Porque a Fé só vê aquilo que é, mas ela vê aquilo que será. A Caridade só ama aquilo que é, mas ela ama aquilo que será. A Fé vê o que é, no Tempo e na Eternidade, mas a Esperança vê o que será, no tempo e na eternidade.