quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Solenidade de Cristo Rei

Celebremos a realeza de um Cristo Servidor e Pobre.
(2Sm 5,1-3; Sl 121/122; Col 1,12-20; Lc 23,35-43)

Há 50 anos atrás, durante o Concílio Vaticano II, o saudoso e profético Dom Helder Camara escrevia, de Roma, aos seus colaboradores: “Celebrei a missa de Cristo Rei. Claro que ele é Rei. Mas de uma realeza tão diferente, que eu me angustio ao ver que, de certo modo, exploramos a realeza dele para justificar inconscientemente a nossa. Durante a missa, pensei o tempo todo no pobre Rei, com estopa nas costas e coroado de espinhos. E fiquei repetindo baixinho: ‘Meu pobre Rei, para mim você é Luciano’ (um mendigo que Dom Helder encontrara em Roma e no qual reconhecera o Cristo vivo). Dependesse de mim e criaríamos uma festa nova: a festa de Cristo Servidor e Pobre”.
“O povo permanecia lá, olhando...”
As imagens do poder continuam exercendo sobre nós uma irrestível sedução. Muitos experimentam uma espécie de êxtase quando têm a oportunidade de se aproximar de um chefe de estado, de um rei ou príncipe, de um primeiro-ministro, de um ídolo do esporte ou da TV, de um cardeal ou do Papa. Mesmo que pareçam figuras saídas de um tempo que não existe mais ou da terra do nunca, as famílias reais (a maioria das famílias é irreal?) continuam impactando muita gente.
Eduardo Galeano recorda e nos propõe uma espécie de retrato de família do rei inglês Ricardo III. Seu caminho à coroa foi um rio de sangue: matou o rei Henrique VI e o príncipe Eduardo; afogou seu irmão Clarence num barril de vinho; deu fim aos seus sobrinhos, enterrando dois deles sob uma escada do próprio palácio; temendo uma conspiração, mandou enforcar o lorde Hastings e decapitou o duque de Buckingham, seu melhor amigo. Grande e bela figura de rei!...
É verdadei que a história nos apresenta também vultos de reis e rainhas menos desumanos, mas é muito arriscado aproximar Jesus Cristo da figura histórica dos reis. Mesmo a figura do sacerdote não parece adequada para visualizar a verdade e a novidade de Jesus Cristo. Creio que os Evangelhos nos previnem severamente sobre os riscos destas comparações. Quem identifica Deus com os reis, príncipes e sacerdotes acaba olhando o Cristo crucificado e os excluídos de todos os tempos sem entender nada.
“Se és o rei dos judeus, salva-te a ti mesmo...”
É verdade que Jesus anunciou algo como um reino ou reinado de Deus. Ele mesmo foi aclamado como descendente do rei Davi, como o Messias e o rei esperado. Mas isso nada tem a ver com a figura dos reis e chefes que a história nos deu a conhecer. A referência a Davi expressa a esperança de uma liderança nova e popular, de um líder humilde e corajoso na defesa dos injustiçados, nos moldes do frágil e rejeitado filho de Jessé, excluído pelo próprio pai da festa dos filhos e herdeiros (cf. 1Sm 16,1-13).
Mais que o reino de Deus, Jesus anunciou e colocou em ação o reinado de Deus. E nos ensinou que fica claro que Deus retomou as rédeas da história quando os coxos andam, os cegos vêem, os mudos falam, os presos conquistam a liberdade, os oprimidos adquirem a cidadania, os mortos ressuscitam e os pobres recebem boas notícias. Deus reina na medida em que homens e mulheres superam as relações de dominação e ousam a liberdade e a solidariedade.
Efetivamente, Jesus realiza a realeza de Deus esquecendo-se de si, renunciando ao bom nome, fazendo-se irmão e servidor de todos, prioritariamente dos últimos na escala social. Paulo diz que Cristo renunciou à igualdade com Deus, despojou-se de tudo e assumiu a vida humana e a posição social dos escravos, partilhando com eles uma vida que não é reconhecida como vida e uma morte que é ratificação da nulidade. E é por isso que o mundo inteiro deve fazer reverência diante dele.
“Salva-te a ti mesmo e a nós...”
A cena descrita por Lucas no evangelho de hoje nos apresenta Jesus crucificado entre dois criminosos. Toda a sua vida foi uma proclamação viva de um Deus que acolhe os últimos e faz justiça aos proscritos e oprimidos. Pregado na cruz entre dois condenados, Jesus proclama silenciosa e inequivocamente a solidariedade de Deus com os proscritos e excuídos. Enquanto os reis e príncipes se afastam dos homenes e mulheres e os consideram desprezíveis, Jesus compartilha a sorte dos condenados.
Por isso, o Cristo pendente da cruz permanece uma espécie de espada que penetra nossa fé até à medula e incomoda a Igreja e seus governantes. E não passam de fuga e de traição as tentativas de substituir os espinhos por uma coroa de ouro e a cruz por um trono glorioso. É nesta condição de condenado e de proscrito que Jesus nos livra das trevas do poder impostor e é o primogênito da humanidade regenerada, a cabeça da Igreja seu corpo, o príncipe das mulheres e homens libertos.
Enquanto expressão mais radical da proximidade e da solidariedade de Deus com a humanidade discriminada, Jesus é potente e eloquente sacramento da humanidade renovada. É entregando-nos a vida como dinamismo e força de uma compaixão que regenera que ele nos salva. É compartilhando a humana carência que ele conquista a plenitude pela qual todos anelamos. E é fazendo-se em tudo irmão e servo que ele resgata a dignidade da verdadeira autoridade.
“Em tudo ele tem a primazia...”
Como Igreja, precisamos estar sempre vigilantes para não explorar a específica realeza de Cristo para justificar a sede, nem sempre inconsciente e inocente, de poder e de glória. A cruz, expressão da loucura eloquente de um Deus despojado de toda fútil ostentação, não pode ser usada como trouféu ou como símbolo de glória. Este Jesus crucificado por causa das consequências políticas do seu amor não é garantia de vitória fácil, mas caminho que nos leva à verdadeira humanidade.
O esquecimento da ‘história de Jesus’, do caminho por ele percorrido de Belém ao Calvário, tem levado os cristãos a cometer barbaridades que nos envergonham. As mal ditas guerras santas, as cruzadas assassinas, a execrável inquisição, a demonização das mulheres e a criminalização dos homossexuais, a imposição da  fé aos pagãos e tantas outras aberrações nasceram no ventre de uma religião seduzida pelas honras da realeza e pelo poder dos príncipes e cresceu sob o doentio medo da liberdade.
É urgente a tarefa de purificar Jesus Cristo das máscaras que os nossos interesses e medos lhe impuseram. Por quanto tempo continuaremos chamando-o mentirosamente rei-sacerdote e reduzindo sua vida e missão aos estreitos moldes do poder político e do culto separado da vida? Até quando anunciaremos que ele é Salvador e Senhor, sem explicitar em que consiste tal salvação e tal senhorio? E quando teremos a coragem de celebrar alegremente sua condição de Servo e de Irmão?
“Hoje estarás comigo no paraíso.”
Diferentemente da maioria dos reis ou chefes (incluídos os chefes eclesiásticos), Jesus cumpre sua missão e realiza-se a si mesmo fazendo-se companheiro dos proscritos e servidor dos oprimidos. Evitemos a tentação de apagar da terrível e grandiosa cena do Calvário as cruzes e os rostos dos outros condenados. São eles que eternizam a loucura compassiva de Deus, sua mais profunda e libertadora verdade. É aqui que se mostra a realeza de Deus e o caráter revolucionário do seu reino.
Na voz desafiadora dos chefes do judaísmo e dos soldados romanos ressoam as ambições e os medos que mal conseguimos disfarçar. Mesmo sem repetir “salve-se a si mesmo se és o Cristo de Deus”, suspiramos por um deus que mostre seu soberano e divino poder evitando as misérias da história e salvando a própria pele. E mesmo sem pedir “salve-se a si mesmo se és o rei dos judeus”, nossa utopia social não consegue disfarçar uma idéia de autoridade que usa as instituições em benefício próprio.
Em meio às vozes cínicas que querem transformar o Servo e o Irmão da humanidade num personagem ridículo, é da boca de um dos companheiros proscritos e condenados que escutamos a proclamação da inocência de Jesus Cristo. “Ele não fez nada de mal.” Na sua resposta ao pedido do companheiro na morte imposta, Jesus deixa claro que ele é rei na medida em que se faz próximo e solidário com as vítimas. O reino de Deus é agora, e o paraíso começa na compaixão radicalizada na cruz.
Diante de ti, Jesus de Nazaré, e destes irmãos que estão à tua direita e à tua esquerda, reconhecemos a loucura dos nossos desejos de poder e de glória. E te suplicamos: elimina do nosso coração e da tua Igreja estas pretensões descabidas e o medo que elas escondem. Reveste-nos da tua corajosa compaixão e guia-nos no caminho da solidariedade com os últimos, a fim de que sejamos apenas mas sempre Servos deles. Só assim contribuiremos para que reines, e seremos realmente teus irmãos e irmãs. Amém!

Pe. Itacir Brassiani msf

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