domingo, 27 de julho de 2014

Alimentando-nos da Palavra de Deus (6)

Como as crianças que brincam na praça (cf. Lc 7,31-36)
Caminhemos e dancemos ao ritmo do Evangelho
Somos o que somos, estamos onde estamos, fazemos o que fazemos “por causa da Palavra”, em atenção à Palavra de Jesus que nos manda ir mais a fundo... E é por isso também que nos reunimos para os “exercícios espirituais”, apesar de tantas atividades e urgências. Quremos caminhar sob o olhar de Jesus, escutar e acolher sua Palavra, guardá-la e ruminá-la nas nossas entranhas, anunciá-la e testemunhá-la, viver ao ritmo da Boa Notícia...
Na bela e instigante passagem do capítulo sete de Lucas, Jesus se lamenta porque alguns discípulos o escutam mas não são consequentes, se fecham e não se movem. Logo no início da sua missão, assim que foi informado de que João Batista estava com dificuldades de reconhecer seu messianismo, Jesus enfatiza e elogia a profecia de João, e desabafa: “Com quem eu vou comparar os homens desta geração? Com quem se parecem eles? São como crianças que se sentam nas praças, e se dirigem aos colegas dizendo: ‘Tocamos flauta e vocês não dançaram; cantamos música triste e vocês não choraram” (Lc 7,31-36).
Com essa parábola popular Jesus pretende sacudir os fariseus e doutores da lei, fazê-los sair do fechamento doutrinal e movê-los numa outra direção, diversa daquela que estava esclerosando a cabeça deles. Esta é uma doença que costuma atacar as pessoas que ocupam altos escalões das instituições religiosas e doutrinárias. A propósito deste desvio psico-religioso, Madeleine Debbrel escreveu: “Senhor, penso que estás cansado de gente que sempre diz te servir, mas assume ares de capitão; de gente que diz te conhecer, mas tem postura de professor; de gente que pretende te encontrar praticando estritas regras esportivas; de gente que pensa te amar como se ama um velho casal... E no dia que desejavas algo diferente, inventaste São Francisco, e fizeste dela a tua imagem. Precisamos permitir que nos reinventes, a fim de que sejamos gente alegre, gente que dança a vida em par contigo.”
Certo, mas não esqueçamos que não é unicamente em Francisco que reencontramos a Palavra na sua original frescura. Cada santo ou santa é uma espécie de raio de luz que brota da Palavra de Deus (cf. VD, 48), uma hermnêutica da escritura da qual não podemos prescindir, de modo que entrar na escola deles “é um caminho seguro para uma viva e eficaz hermenêutica da Palavra” (VD, 49). A interpretação mais profunda da Escritura provém das pessoas que se deixaram plasmar pela Palavra de Deus mediante sua leitura, escuta e meditação assídua (cf. VD, 48).
Penso que a ênfase exagerada na dimensão ética do cristianismo, junto com os resíduos de uma velha tendência perfeccionista e de um legalismo que pensávamos ter superado, podem ainda estar mais que latentes em secretos ângulos da nossa vida e nos fazem pessoas rígidas e privadas de verdadeira e intensa alegria. Às vezes até me pergunto se, não conseguindo experimentar a verdadeira alegria, não nos resignamos a ser apenas cáusticos gozadores... Na verdade, sentimo-nos mais à vontade com os imperativos que com os indicativos... E a seriedade da austeridade pode acabar ressecando a alegre e viva Boa Notícia do Evangelho... Precisamos urgentemente aprender a conjugar equilibradamente ética e estética, contemplação e ação, gratuidade e eficácia, indicativo e imperativo, presente e futuro.
Na vida religiosa e pastoral, os convites à radicalidade e à conversão apresentados no modo imperativo podem produzir um efeito contrário daquele que desejamos, e nós acabamos transformados em pessoas frustradas por não conseguirmos atingir metas tão altas. Ou então, para continuar na senda da parábola em questão, em pessoas tímidas e enrijecidas, que permanecem sentadas nos bancos da praça, surdas e incapazes de captar a música que quer nos envolver e mover por seu ritmo, resistentes a entrar num movimento que não sabemos para onde vai nos levar...
O que aconteceu com os vinte séculos de pregação, catequese e pastoral para que tenha ficado tão forte a idéia de que é preciso renunciar, fazer sacrifícios, ser austero, abster-se, cobrir-se de cinzas e voltar-se a Deus implorando: “Não permaneças eternamente irado conosco!...” Parece que a alegria deve ficar nas margens da vida, como se fosse uma virtude de menor importância ou vergonhosa, da qual poderíamos tranquilamente prescindir... Há cristãos que, como diz o Papa Francisco, parecem ter escolhido viver uma quaresma sem páscoa e mostram sempre uma cara de funeral... (cf. EG 6; 10).
Pergunto-me sinceramente: por que nos dizemos que convocados e animados pelo Evangelho e nos deixamos sufocar por uma inflação de palavras ditas, escritas, pregadas, proclamadas, comentadas e explicadas? Por que não voltar à simples melodia dos gestos silenciosos, que realmente valem e estão na origem da Palavra que liberta? Há hoje tanta gente que caminha saturada, cansada, cética e impermeável a tantos discursos, documentos, exortações, sermões, projetos, declarações... Se a nossa saúde psíquica e espiritual dependesse do equilíbrio e da justa relação entre as palavras que pronunciamos e a afetiva mudança que provocam no nosso modo de viver, seria necessário reconhecer que o nosso quadro pode ser diagnosticado como catastrófico ou esquisofrênico...
E que tal se ousássemos tomar uma decisão radical: submetermo-nos (um dia, uma semana, um mês...) à dieta do silêncio? Ou seja: substituir as palavras que pronunciamos ou escrevemos ordinariamente pela imitação concreta de Jesus, que passou pelo mundo fazendo o bem, e fez desse modo de viver a dança com a qual respondeu ao ritmo que lhe dava o Pai... Cada um de nós deveria traduzir esse “passou fazendo o bem” (esse passeio benfeitor) nas nossas circunstâncias concretas e fazer o possível para que todo o nosso corpo – o olhar, as mãos, os pés, a escuta, toda a nossa capacidade expressiva e operativa – substitua aquelas palavras que tantas vezes acabam substituindo a nua simplicidade do amor e do serviço gratuito e generoso.
E agora imaginemos que uma daquelas crianças da praça, cansada de ver imóveis, atônitos e resistentes à dança, como seus colegas, toma a palavra e se dirige a nós...
“Vocês não lembram que na vida de Jesus tudo começou com aquele hino que os pastores escutaram em Belém: “Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados”? Aquele foi o primeiro som que seus ouvidos escutaram, e se transformou na abertura da sinfonia de toda a sua existência. Foi o som da flauta que ritmou a dança da sua vida... O mestre de vocês não permaneceu rígido e imóvel. Aquele hino o inebriou totalmente, levou-o para fora de si mesmo. E desde então ele nunca mais conseguiu viver senão “fora de si”, “alienado”, “alterado”, incapaz de outro ritmo senão esse de dar-se em excesso, da generosidade e da superação das fronteiras e limites. A Palavra que cantava a glória de Deus e a paz entre os homens, escutada naquela noite da boca dos anjos, apaixonou Jesus de tal modo e o invadiu com tal profundidade que o fez viver definitivamente “des-centrado”, “des-encardinado”, porque seu centro e seu eixo foram sempre seu Pai e seus irmãos.”
“Recordem aquilo que se disse dele: “Ele está fora de si...” (Mc 3,21). Com certeza, eles tinham razão, porque seu amor não tinha senso nem medida. O que ele diria ao vê-los tão rígidos e zelosos da vossa prudência, dos vossos compromissos tão razoáveis e dos vossos cálculos tão equilibrados? Ele iniciou a formação dos seus discípulos levando-os a uma festa de casamento e a trilhar estradas e estradas, e não a uma escola da lei, ao deserto ou ao seminário...”
Aproximem-se da sua Palavra, façam silêncio e escutem-na, porque somente quando os ouvidos captaram a música é que os pés podem acompanhar o ritmo. Deixem que a melodia da sua flauta chegue até vocês. “Glória a Deus e paz na terra!” Deixem-se conduzir e guiar por esta melodia. Cantem-na, sussurem-na no segredo do coração, ruminem-na demoradamente. E, se for possível, dancem no ritmo dela, mesmo que inicalmente isso pareça uma loucura. Não esqueçam que a Palavra de Deus é como uma sinfonia. Ela é única, mas se exprime em diversos modos. É um cântico em diversas vozes (cf. VD, 7).”
A Palavra de Deus é fonte segura de alegria, é boa notícia. Ela suscita uma alegria verdadeira, não superficial ou efêmera (cf. VD, 123). Pois nós podemos muito bem organizar uma festa, inclusive com sucesso, mas não podemos programar a alegria! Não esqueçamos que Maria é feliz porque acreditou: acolheu o Verbo de Deus no seu ventre e o doou ao mundo. “A alegria recebida da Palavra de Deus estende-se a todos aqueles que por ela se deixam transformar” (VD, 124).
A alegria verdadeira e profunda não pode ser induzida ou provocada artificialmente pelo alcool, pelo sucesso, pelos cultos “turbinados”. A alegria cristã não é a alegria cínica ou de fachada, promovida e vendida nas festas e banquetes que ignoram os lázaros que ficam do lado de fora. A alegria evangélica é aquela que experimentamos na “festa dos pequenos”, na festa espontânea e inocente daqueles que se encontram com a Boa Notícia do Reino e fazem dela a luz do próprio olhar, a regra suprema da vida e o ritmo dos seus passos e da sua dança. Caminhar e dançar ao ritmo da Palavra de Deus, da Boa Notícia aos pobres, significa fazer dela o nosso alimento cotidiano, o critério que orienta e julga nossas opções, o princípio dinamizador das nossas prédicas e práticas.
Itacir Brassiani msf

(Este texto é praticamente uma tradução livre e adaptada da conferência “Convocati dalla Parola”, da Ir. Dolores Aleixandre rscj, publicado pela União dos Superiores Gerais no caderno Non è giusto che noi trascuriamo la Parola di Dio, (textos da 70ª Assembléia Semestrale da USG, p. 41-59. Acrescentei apenas algumas intuições e referências da exortação pós-sinodal Verbum Domini, de Bento XV e Evangelii Gaudim, do Papa Francisco)

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