Como as crianças que brincam
na praça (cf. Lc 7,31-36)
Caminhemos e dancemos ao ritmo do Evangelho
Somos o que somos, estamos onde estamos, fazemos o que
fazemos “por causa da Palavra”, em atenção à Palavra de Jesus que nos manda ir
mais a fundo... E é por isso também que nos reunimos para os “exercícios
espirituais”, apesar de tantas atividades e urgências. Quremos caminhar sob o olhar de
Jesus, escutar e acolher sua Palavra, guardá-la e ruminá-la nas nossas
entranhas, anunciá-la e testemunhá-la, viver ao ritmo da Boa Notícia...
Na bela e instigante passagem do capítulo sete de
Lucas, Jesus se lamenta porque alguns discípulos o escutam mas não são
consequentes, se fecham e não se movem. Logo no início da sua missão, assim que
foi informado de que João Batista estava com dificuldades de reconhecer seu
messianismo, Jesus enfatiza e elogia a profecia de João, e desabafa: “Com quem
eu vou comparar os homens desta geração? Com quem se parecem eles? São como
crianças que se sentam nas praças, e se dirigem aos colegas dizendo: ‘Tocamos
flauta e vocês não dançaram; cantamos música triste e vocês não choraram”
(Lc 7,31-36).
Com essa parábola popular Jesus pretende sacudir os
fariseus e doutores da lei, fazê-los sair do fechamento doutrinal e
movê-los numa outra direção, diversa daquela que estava esclerosando a
cabeça deles. Esta é uma doença que costuma atacar as pessoas que ocupam altos
escalões das instituições religiosas e doutrinárias. A propósito deste desvio
psico-religioso, Madeleine Debbrel escreveu: “Senhor, penso que estás cansado de
gente que sempre diz te servir, mas assume ares de capitão; de gente que diz te
conhecer, mas tem postura de professor; de gente que pretende te encontrar
praticando estritas regras esportivas; de gente que pensa te amar como se ama
um velho casal... E no dia que desejavas algo diferente, inventaste São
Francisco, e fizeste dela a tua imagem. Precisamos permitir que nos reinventes, a
fim de que sejamos gente alegre, gente que dança a vida em par contigo.”
Certo, mas não esqueçamos que não é unicamente em
Francisco que reencontramos a Palavra na sua original frescura. Cada
santo ou santa é uma espécie de raio de luz que brota da Palavra de Deus
(cf. VD, 48), uma hermnêutica da escritura da qual não podemos prescindir, de
modo que entrar na escola deles “é um caminho seguro para uma viva e eficaz
hermenêutica da Palavra” (VD, 49). A interpretação mais profunda da
Escritura provém das pessoas que se deixaram plasmar pela Palavra de Deus
mediante sua leitura, escuta e meditação assídua (cf. VD, 48).
Penso que a ênfase exagerada na dimensão ética do
cristianismo, junto com os resíduos de uma velha tendência
perfeccionista e de um legalismo que pensávamos ter superado, podem
ainda estar mais que latentes em secretos ângulos da nossa vida e nos fazem
pessoas rígidas e privadas de verdadeira e intensa alegria. Às vezes até me
pergunto se, não conseguindo experimentar a verdadeira alegria, não nos
resignamos a ser apenas cáusticos gozadores... Na verdade, sentimo-nos mais à vontade com os
imperativos que com os indicativos... E a seriedade da austeridade pode
acabar ressecando a alegre e viva Boa Notícia do Evangelho... Precisamos
urgentemente aprender a conjugar equilibradamente ética e estética, contemplação
e ação, gratuidade e eficácia, indicativo e imperativo, presente e futuro.
Na vida religiosa e pastoral, os convites à
radicalidade e à conversão apresentados no modo imperativo podem produzir um
efeito contrário daquele que desejamos, e nós acabamos transformados em pessoas
frustradas por não conseguirmos atingir metas tão altas. Ou então, para
continuar na senda da parábola em questão, em pessoas tímidas e enrijecidas,
que permanecem sentadas nos bancos da praça, surdas e incapazes de captar a
música que quer nos envolver e mover por seu ritmo, resistentes a entrar num
movimento que não sabemos para onde vai nos levar...
O que aconteceu com os vinte séculos de pregação,
catequese e pastoral para que tenha ficado tão forte a idéia de que é preciso
renunciar, fazer sacrifícios, ser austero, abster-se, cobrir-se de cinzas e
voltar-se a Deus implorando: “Não permaneças eternamente irado conosco!...” Parece
que a alegria deve ficar nas margens da vida, como se fosse uma virtude de
menor importância ou vergonhosa, da qual poderíamos tranquilamente
prescindir... Há cristãos que, como diz o Papa Francisco, parecem ter escolhido
viver uma quaresma sem páscoa e mostram sempre uma cara de funeral... (cf. EG
6; 10).
Pergunto-me sinceramente: por que nos dizemos que
convocados e animados pelo Evangelho e nos deixamos sufocar por uma inflação de
palavras ditas, escritas, pregadas, proclamadas, comentadas e explicadas?
Por que não voltar à simples melodia dos gestos silenciosos, que realmente
valem e estão na origem da Palavra que liberta? Há hoje tanta gente que caminha
saturada, cansada, cética e impermeável a tantos discursos, documentos,
exortações, sermões, projetos, declarações... Se a nossa saúde psíquica e
espiritual dependesse do equilíbrio e da justa relação entre as palavras que
pronunciamos e a afetiva mudança que provocam no nosso modo de viver, seria
necessário reconhecer que o nosso quadro pode ser diagnosticado como
catastrófico ou esquisofrênico...
E que tal se ousássemos tomar uma decisão radical:
submetermo-nos (um dia, uma semana, um mês...) à dieta do silêncio? Ou
seja: substituir as palavras que pronunciamos ou escrevemos ordinariamente
pela imitação concreta de Jesus, que passou pelo mundo fazendo
o bem, e fez desse modo de viver a dança com a qual respondeu ao ritmo que lhe
dava o Pai... Cada um de nós deveria traduzir esse “passou fazendo o bem” (esse
passeio benfeitor) nas nossas circunstâncias concretas e fazer o possível para que todo o
nosso corpo – o olhar, as mãos, os pés, a escuta, toda a nossa
capacidade expressiva e operativa – substitua aquelas palavras que tantas vezes
acabam substituindo a nua simplicidade do amor e do serviço gratuito e generoso.
E agora imaginemos que uma daquelas crianças da praça,
cansada de ver imóveis, atônitos e resistentes à dança, como seus colegas, toma
a palavra e se dirige a nós...
“Vocês não lembram que na vida de Jesus tudo começou com
aquele hino que os pastores escutaram em Belém: “Glória a Deus no mais
alto dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados”? Aquele foi o primeiro
som que seus ouvidos escutaram, e se transformou na abertura da sinfonia de
toda a sua existência. Foi o som da flauta que ritmou a dança da sua vida... O
mestre de vocês não permaneceu rígido e imóvel. Aquele hino o inebriou
totalmente, levou-o para fora de si mesmo. E desde então ele nunca mais
conseguiu viver senão “fora de si”, “alienado”, “alterado”, incapaz
de outro ritmo senão esse de dar-se em excesso, da generosidade e da superação
das fronteiras e limites. A Palavra que cantava a glória de Deus e a paz
entre os homens, escutada naquela noite da boca dos anjos, apaixonou Jesus de
tal modo e o invadiu com tal profundidade que o fez viver definitivamente
“des-centrado”, “des-encardinado”, porque seu centro e seu eixo foram sempre
seu Pai e seus irmãos.”
“Recordem aquilo que se disse dele: “Ele está fora de
si...” (Mc 3,21). Com certeza, eles tinham razão, porque seu amor não tinha senso nem
medida. O que ele diria ao vê-los tão rígidos e zelosos da vossa
prudência, dos vossos compromissos tão razoáveis e dos vossos cálculos tão
equilibrados? Ele iniciou a formação dos seus discípulos levando-os a uma festa de
casamento e a trilhar estradas e estradas, e não a uma escola da lei,
ao deserto ou ao seminário...”
“Aproximem-se da sua Palavra, façam silêncio
e escutem-na, porque somente quando os ouvidos captaram a música é que
os pés podem acompanhar o ritmo. Deixem que a melodia da sua flauta chegue até
vocês. “Glória a Deus e paz na terra!” Deixem-se conduzir e guiar por esta
melodia. Cantem-na, sussurem-na no segredo do coração, ruminem-na
demoradamente. E, se for possível, dancem no ritmo dela, mesmo que inicalmente
isso pareça uma loucura. Não esqueçam que a Palavra de Deus é como
uma sinfonia. Ela é única, mas se exprime em diversos modos. É um
cântico em diversas vozes (cf. VD, 7).”
A Palavra de Deus é fonte segura de alegria, é boa
notícia. Ela suscita uma alegria
verdadeira, não superficial ou efêmera (cf. VD, 123). Pois nós podemos muito
bem organizar uma festa, inclusive com sucesso, mas não podemos programar a alegria!
Não esqueçamos que Maria é feliz porque acreditou: acolheu o
Verbo de Deus no seu ventre e o doou ao mundo. “A alegria recebida da Palavra
de Deus estende-se a todos aqueles que por ela se deixam transformar” (VD,
124).
A alegria verdadeira e profunda não pode ser induzida
ou provocada artificialmente pelo alcool, pelo sucesso, pelos cultos “turbinados”. A alegria cristã não
é a alegria cínica ou de fachada, promovida e vendida nas festas e banquetes
que ignoram os lázaros que ficam do lado de fora. A alegria evangélica é aquela que
experimentamos na “festa dos pequenos”, na festa espontânea e inocente daqueles
que se encontram com a Boa Notícia do Reino e fazem dela a luz do próprio
olhar, a regra suprema da vida e o ritmo dos seus passos e da sua dança.
Caminhar e dançar ao ritmo da Palavra de Deus, da Boa Notícia aos pobres,
significa fazer dela o nosso alimento cotidiano, o critério que orienta e julga
nossas opções, o princípio dinamizador das nossas prédicas e práticas.
Itacir Brassiani msf
(Este texto é praticamente uma tradução livre e adaptada da conferência
“Convocati dalla Parola”, da Ir. Dolores Aleixandre rscj, publicado pela União dos Superiores Gerais no caderno Non è
giusto che noi trascuriamo la Parola di Dio, (textos da 70ª Assembléia
Semestrale da USG, p. 41-59. Acrescentei apenas algumas intuições e referências
da exortação pós-sinodal Verbum Domini, de Bento XV e Evangelii
Gaudim, do Papa Francisco)
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