segunda-feira, 28 de julho de 2014

Alimentando-nos da Palavra de Deus (7)

Como o negociante de pérolas... (Mt 13,44)
Não deixemos que nos roubem a alegria do Evangelho!
Tanto o encontro pessoal com Deus em Jesus Cristo como a vinda gratuita do seu reino são motivos de intensa alegria. Que Deus reine, isso é motivo de alegria! Maria já anunciava isso no seu cântico profético diante de uma Isabel profundamente comovida.
O reino dos céus é como um tesouro escondido no campo. Um homem o descobre e o esconde de novo. Cheio de alegria, ele vai, vende tudo o que possui e compra esse campo” (Mt 13,44). Na sua pobreza – ou seria generosa gratidão?! – este homem anônimo decide vender tudo para ficar com a única coisa que lhe parece verdadeiramente preciosa, mesmo que sua existência e seu valor seja escondido ou irrelevante aos olhos de muitos... A descoberta desestabiliza a vida desse personagem sem nome. O tesouro lhe parece tão valioso que ele não receia fazer coisas novas, arriscadas e dispendiosas para adquiri-lo. E nisso experimenta a alegria dos magos ao encontrar Jesus (Mt 2,10) e a alegria de quem acolhe e entende a Palavra de Jesus (Mt 13,20). A descoberta do Reino é uma notícia boa que traz profunda alegria e requer a relativização de todas as demais prioridades.
O Papa Francisco insiste que “a alegria do Evangelho é tal que nada e ninguém no-la poderá tirar” (EG 84). E pede: “Não deixemos que nos roubem a alegria da evangelização!” (EG 83), pois somos tentados por uma espécie de “psicologia do túmulo, que pouco a pouco transforma os cristãos em múmias de museu”; por um “pragmatismo cinzento da vida cotidiana” que, sob uma aparente normalidade, deteriora a fé e a transforma em mesquinhez” (idem). Assim, desiludidos com a realidade, com a Igreja e consigo mesmos, os cristãos acabam apegando-se a uma “tristeza melosa, sem esperança”.
Já no início da sua Exortação, o Papa Bergoglio assinala que “o grande risco do mundo atual, com sua múltipla a avassaladora oferta de consumo, é a tristeza individualista que brota do coração comodista e mesquinho, da busca desordenada de prazeres superficiais, da consciência isolada. Quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, não se houve a voz de Deus, não se goza da doce alegria do seu amor nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem” (EG 2).
Para o Papa Francisco, uma das tentações mais sérias que sufocam o fervor e a ousadia é a sensação de derrota que nos transforma em pessoas pessimistas lamurientas e cristãos desencantados com cara azeda (cf. EG 85). Ninguém vai à luta se a considera de antemão uma causa perdida. E o derrotismo é irmão da tentação de separar prematuramente o trigo do joio, com todos os riscos que isso comporta... E podemos acabar transformando o confessionário, lugar por excelência da misericórdia, em uma espécie de câmara de tortura (cf. EG 44).
Uma vida eclesial missionária deve ser capaz de evitar a obsessão “pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas que se tentam impor à força de insistir” (EG 35). Seu anúncio deve se concentrar naquilo que é “mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário”, pois mesmo procedendo da mesma fonte divina, algumas verdades são mais importantes porque exprimem mais diretamente o coração do Evangelho (idem, 36). Ademais, o anúncio deve acompanhar com paciência e misericórdia as etapas de crescimento das pessoas.
Precisamos salvar o núcleo gracioso e libertador da novidade cristã. “O Evangelho convida, antes de tudo, a responder a Deus que nos ama e salva, reconhecendo-O nos outros e saindo de nós mesmos para procurar o bem de todos. Este convite não há de ser obscurecido em nenhuma circunstância! Todas as virtudes estão a serviço desta resposta de amor. Se tal convite não refulge com vigor e fascínio, o edifício moral da Igreja corre o risco de se tornar um castelo de cartas, sendo este o nosso maior perigo; é que então não estaremos propriamente a anunciar o Evangelho, mas algumas acentuações doutrinais ou morais, que derivam de certas opções ideológicas” (EG 39). Quando nosso anúncio é fiel ao Evangelho, manifesta-se claramente a centralidade de algumas verdades e que a moral cristã não é uma ética estoica, é mais que uma ascese, que uma filosofia prática ou que um catálogo de pecados e proibições.
Mesmo com o risco de se alongar demais, é importante mencionar também a doença espiritual que o Papa Francisco chama de “mundanismo espiritual” (cf. EG 93-97). Esta doença se mostra em muitas atitudes aparentemente opostas: cuidado exibicionista da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja, sem a preocupação pela encarnação do Evangelho no povo e na história; fascínio pela ostentação de conquistas sociais e políticas; vanglória ligada a gestão de assuntos práticos e atração por dinâmicas de autoestima e realização autorreferencial; vida social plena de viagens, reuniões, jantares e recepções; funcionalismo empresarial carregado de estatísticas, planos e avaliações que não beneficiam o povo mas a organização eclesial. “Em qualquer um dos casos, não traz o selo do Cristo encarnado, crucificado e ressuscitado, encerra-se em grupos de elite, não sai realmente à procura dos que andam perdidos nem das imensas multidões sedentas de Cristo. Já não há ardor evangélico, mas o gozo espúrio de uma autocomplacência egocêntrica” (RG 95).
Esta doença se esconde por trás de aparências de religiosidade e de amor à Igreja, mas não passa de busca de bem-estar pessoal e de glória humana, de defesa dos próprios interesses. Este mundanismo espiritual se alimenta, por um lado, do fascínio por uma fé fechada no subjetivismo, de conhecimentos e experiências que confortam e animam, mas acaba enclausurando a pessoa nos próprios pensamentos e sentimentos; por outro lado, se enraíza num certo imanentismo antropocêntrico, confia unicamente nas próprias força e leva ao sentimento de superioridade por cumprir determinadas normas ou por ser fiel a normas de um catolicismo do passado.
É neste húmus que se nutre a “vanglória de quantos se contentam em ter algum poder e preferem ser generais de exércitos derrotados antes que simples soldados de um batalhão que continua a lutar” (EG 96). Tais cristãos olham os demais de cima e de longe, rejeitam a profecia dos irmãos, desqualificam quem os questiona, ressaltam os erros alheios e vivem obcecados pela aparência. “É uma tremenda corrupção, com aparências de bem. Devemos evitá-lo, pondo a Igreja em movimento de saída de si mesma, de missão centrada em Jesus Cristo, de entrega aos pobres. Deus nos livre de uma Igreja mundana sob vestes espirituais e pastorais!” (EG 96) Eles trocaram o tesouro precioso por bolsas corroídas pelas traças!
Mas o Papa Francisco sublinha que os males do mundo, e mesmo os da Igreja, “não deveriam servir como desculpa para reduzir a nossa entrega e o nosso ardor. Vejamo-los como desafios para crescer. (...) A nossa fé é desafiada a entrever o vinho em que a água pode ser transformada, e a descobrir o trigo que cresce no meio do joio.” (EG, 84). Para ele, a cura deste mundanismo espiritual asfixiante vem da abertura ao Espírito Santo, que nos liberta da centração em nós mesmos, do esconderijo numa aparência religiosa vazia de Deus (cf. EG 97). Trata-se de trocar tudo pela despojada alegria de ter encontrado o precioso tesouro do Evangelho de Deus!
Segundo a CNBB, no contexto brasileiro o que preocupa é o surgimento de “grupos fechados em seus ideais, sem comunhão com a diocese e resistentes ao diálogo com o mundo”. Multiplicam-se pequenas associações de interesses religiosos particulares que, frequentemente, “promovem certo fundamentalismo católico”, comprometendo o conceito de Igreja-povo de Deus (Doc. 100, 34). Mas há também o problema de paróquias ou capelas que funcionam mais como instituição que como comunidade de discípulos de Jesus Cristo (idem, 35).
O fato é que o excessivo cuidado com as estruturas nos levou a formas de ativismo estéril. “A primazia do fazer ofuscou o ser cristão. Há muita energia desperdiçada em manter estruturas que não respondem mais às inquietações atuais (Idem, 45). Mas também aqui poderíamos aplicar a advertência de Francisco: a missão não é um negócio, nem uma atividade empresarial! (cf. EG 279).
Por isso, sem negar o valor do que já foi realizado, a CNBB diz que precisamos aprender e a agir e responder às inquietações novas. Isso pode significar: tornar as estruturas paroquiais mais missionárias; tornar a pastoral ordinária mais comunicativa e aberta; colocar os agentes pastorais em atitude constante de saída; e assim favorecer uma resposta positiva de todos aqueles a quem Jesus oferece sua amizade (cf. idem, 46; EG 27).
Daí a necessidade de redescobrir, degustar e proclamar a alegria original e tremendamente libertadora do Evangelho. E isso antes de tudo porque Deus não se cansa de nos perdoar, carrega-nos nos seus ombros. “Ninguém nos pode tirar a dignidade que esse amor infinito e inabalável nos confere” (EG 3). E esse amor é salvífico! O AT preanuncia a alegria da salvação, que seria gratuita e plena em Jesus Cristo. “Multiplicaste a alegria, aumentaste o júbilo... Exultai de alegria!” (Is 9,2; 12,6) “Exulta de alegria, ó terra! Rompei em exclamações, ó montes! Na verdade, o Senhor consola o seu povo e se compadece dos desamparados” (Is 49,13). “Exulta de alegria, filha de Sião! Solta gritos de júbilo, filha de Jerusalém! Eis que o teu rei vem a ti...” (Zc 9,9).
Esta alegria do Evangelho marca os primeiros capítulos do evangelho de Lucas. “Não tenha medo, Zacarias!... Você terá alegria e felicidade, e muitos se alegrarão com o nascimento dele” (Lc 1,13-14). “Alegre-se, cheia de graça: o Senhor está com você!” (Lc 1,28). “Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, o bebê pulou de alegria em seu ventre” (Lc 1,41). “Meu espírito se alegra em Deus, meu salvador...” (Lc 1,47). “Os vizinhos e parentes ouviram dizer que o Senhor havia tido misericórdia para com Isabel, e se alegraram com ela” (Lc 1,58). “Não tenham medo! Pois eis que lhes anuncio a boa notícia, uma grande alegria para todo o povo...” (Lc 2,10). Mas é também a alegria que enche a terra e o céu pela acolhida que Deus dispensa aos pecadores e excluídos. “Alegrem-se comigo, porque encontrei minha ovelha perdida... Haverá mais alegria no céu por um só pecador que se converte, do que por noventa e nove justos que não precisam de conversão” (Lc 15,6-7). “Alegrem-se comigo, porque encontrei a moeda que eu tinha perdido... Da mesma forma, há alegria entre os anjos de Deus por um só pecador que se converte” (Lc 15,9-10). “Mas era preciso festejar e se alegrar, porque este seu irmão estava morto e voltou a viver, estava perdido e foi encontrado” (Lc 15,32).
A alegria do Evangelho é verdadeira e duradoura, mas discreta e serana. “É a alegria vivida no meio das pequenas coisas da vida cotidiana, como resposta ao amoroso convite de Deus nosso Pai” (EG 4). Como o próprio Jesus, que estremece de alegria no Espírito Santo ao contemplar a dedicação apostólica dos setenta e dois discípulos (cf. Lc 10,21). É uma alegria que brota da capacidade de ser amigo, que tem força para vencer a tristeza, uma alegria que ninguém pode roubar, nem mesmo a perseguição (cf. Jo 15,11; 16,20-22; At 13,52). Não podemos ser cristãos que vivem uma quaresma sem fim e sem páscoa! (cf. EG 6).
Os bispos do Brasil ensinam que a conversão pastoral da paróquia passa pela volta às fontes bíblicas (Doc. 100, 62), e a Sagrada Escritura testemunha que as primeiras comunidades cristãs “tomavam o alimento com alegria” (At 2,46) e que havia grande alegria por onde os discípulos passavam (At 8,8). Com Jesus, eles aprenderam um novo jeito de viver: comunhão com ele; igualdade de todos em dignidade; partilha de bens; amizade fraterna; serviço recíproco e aos mais pobres; acolhida e perdão ilimitado; oração comum; alegria, mesmo em meio à perseguição (cf. Doc. 100, 74).
Para a missão, os discípulos receberam de Jesus quatro recomendações fundamentais: hospitalidade; partilha; comunhão de mesa; acolhida aos excluídos (cf. Doc. 100, 75). “Estas recomendações sustentavam a vida dos missionários do Evangelho. Tratava-se de uma nova forma de ser e agir numa sociedade marcada por grandes contrastes” (Doc. 100, 76). E as comunidades que nasceram dessa missão tinham quatro elementos distintivos: o ensinamento dos apóstolos (Palavra); a comunhão fraterna (Comunhão); a fração do pão (Eucaristia); e a oração (Liturgia).
Itacir Brassiani msf

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