terça-feira, 13 de março de 2018

A sagrada terra da missão (2)


“Ainda que eu falasse a língua dos anjos...”
Nesta segunda crônica, escrita ainda, literalmente, no calor da chegada, o Fr. Ricardo fala de um dos maiores desafios de quem aceita entrar na aventura missionária: o mundo da cultura e da língua, que é como a segunda natureza de uma pessoa e de um povo, um mistério que inicialmente se nos apresenta como misterioso e estranho, que se deixa entender apenas pela comparação e pela oposição.
Entrar na alma de um povo, na sua cultura e na sua língua, é tão difícil quanto necessário. Num outro contexto semântico e teológico, o apóstolo Paulo diz que, mesmo que falemos a língua dos homens e dos anjos, a comunhão e a comunicação são impossíveis se formos incapazes de amar. O amor é a língua universal. O reconhecimento e a afirmação da dignidade do Outro, do diferente, é o que faz a missão ser um empreendimento divino, e não uma conquista interesseira e deplorável.
O que você disse?
Ao chegar no aeroporto de Johannesburgo, vindo de São Paulo, todo meu português, espanhol, alemão e inglês (idiomas que domino razoavelmente) se mostraram obsoletos. Eu entendia muito pouco do que as pessoas falavam, e até mesmo dos anúncios nos alto-falantes do aeroporto. Por sorte, a escrita era a mesma do Brasil... Foi a minha salvação!
Mas a África é um continente muito plural, não só em termos de línguas oficiais, mas principalmente na questão dos dialetos e línguas tribais, que se espalham e diversificam por todo o continente, podendo haver mais de uma em determinadas regiões.
No distrito de Mecubúri, onde estou vivendo, o idioma falado é o macúa. Não entendo nada! Ao menos por enquanto, pois no dia 19/02 irei começar o curso básico de cultura e língua macúa. Se eu já havia tido dor de cabeça nos primeiros dias do meu ano de noviciado no Chile, consequência do esforço para entender alguma palavra, agora então, a dificuldade aumentou um pouquinho... Eis um primeiro e grande desafio: aprender a língua macúa!
Com licença, senhor!
Na sexta, 16 de fevereiro, participei da graduação de 19 jovens da Escola Familiar Rural. Eles participaram do curso de manejo e criação de aves de corte. Quanta formalidade! Em cada uma das falas era necessário, para não dizer obrigatório, pedir licença aos representantes do governo, presentes na mesa de honra. Quando o representante da administração do distrito se pronunciou, fez toda uma saudação, e em até certo ponto “puxou o saco” do atual presidente da república.
Cenas como essa me deixam muito constrangido e intrigado. Para mim, denotam a submissão das pessoas perante a outrem que possua um cargo superior a ela, independentemente de quem seja. As pessoas são muito prestativas, mas me pergunto até que ponto isso é gentileza ou uma cega e medrosa obediência, uma ferrenha estratificação social.
Outras cenas da mesma festa
Terminada a cerimônia de graduação, tivemos um almoço, no qual tive outro choque de realidade, e não somente em relação à comida (que não é muito diferente da comida do Brasil, apenas não é tão fortemente temperada, de modo que sente-se o gosto natural dos alimentos). Os jovens que se graduaram, que na sua maioria eram moças, fizeram os três meses de curso carregando seus filhos nas costas.
Sim, aqui as mulheres carregam os filhos nas costas, presos por um pano (capulana). Elas trouxeram os filhos para a cerimônia, e estes eram os únicos familiares presentes à celebração. O colégio não teria condições de oferecer almoço para todos os convidados... Aqui o habito é que, quando se estipula um determinado número, as pessoas acabam levando mais gente, o que torna inviável oferecer um almoço para todos.
Como esta é uma sociedade na qual ainda existe a separação de classes, para o almoço foram organizadas duas mesas: uma para as autoridades e outra para os graduandos. Antes do almoço ser servido uma dupla de rapazes passou com uma bacia de água e uma toalha para que todos lavassem as mãos. Muitos não utilizam talheres, ou usam apenas colheres. Para para dar de comer às crianças, as mães utilizam as mãos...
O que mais me surpreendeu foi a quantidade de comida que aquelas jovens serviram em seus pratos. Eram verdadeiras montanhas. O que ocorre é que a maioria delas não teria um rico almoço desses em suas casas. Percebia-se a alegria no olhar de cada uma delas, estavam satisfeitas.
Estrangeiro e estranho
Não é incomum sentir-se um estranho por essas terras. Ao andar pelas redondezas da missão, todos os olhares se voltam para mim, ou para quem estiver ao meu lado. Realmente, ser observado não é uma experiência que possa ser dita agradável. Mas sinto que não é por desdém ou por medo que eles me observam. É por pura curiosidade, como se dissessem: “Apareceu uma novidade no meio de nós!”
Enquanto eu esperava pelo início da cerimônia de graduação na Escola, um grupo de crianças que estudam na escola pública, ao lado da nossa missão, começaram a gritar e me cumprimentar, obviamente no idioma macúa. É claro que eu não entendia o que eles diziam, e até fiquei com vergonha. Até que um deles gritou “bom dia!”, e eu respondi com outro “bom dia” e um aceno de mão. E então o grupo saiu correndo, às gargalhadas. É imperativo aprender o idioma macúa!
Como no Brasil...
A política é, para variar, um dos grandes problemas deste belo país. A corrupção rola solta, a violência e o assassinato de políticos ou de pessoas que denunciam injustiças é bastante comum. Recentemente o prefeito da cidade de Nampula foi assassinado, segundo o que se diz, porque havia feito muitas denúncias contra a corrupção e estava trabalhando para o bem do povo. Quem deveria assumir sua função era o presidente da câmara, pois aqui não há a figura do vice-governador. Entretanto, ele não poderia assumir pois está condenado por corrupção, e novas eleições foram realizadas. O povo aguarda o segundo turno, que acontecerá no mês de março. Parece que os colonizadores portugueses deixam a política que é uma merda em todos os lados!
Uma diversa divisão do trabalho
Nossa moradia não está muito longe do centro do distrito. Na vila, os mercados são em sua maioria a céu aberto, e neles se vende de tudo, principalmente alimentos. As lojas são um pouco maiores, e grande parte pertence a indianos. Fomos comprar arroz, e o menor saco que eu vi era de 25 kg! A base da alimentação gira em torno do milho, do arroz e do feijão, mas aqui na missão temos uma maior diversificação de alimentos, graças à produção própria. Nestes dias carneamos um porquinho!
Pela primeira vez na minha vida, hoje utilizei a bomba manual de água, pois precisava lavar minha roupa. Eis mais uma coisa interessante por aqui: os trabalhos domésticos, tanto nas próprias casas como no emprego, são realizados pelos homens! As mulheres são responsáveis pelas machambras, os pedaços de terra que elas cultivam. A nossa missão é uma exceção: nossa cozinheira é a “mamá” Albertina. Mas o lavador de roupa e o cozinheiro da escola são jovens. E é preciso reconhecer eles tem uma ótima mão para a cozinha...
Ao lado de nossa casa passa a principal estrada de ligação com Nampula, a capital do estado. Durante o dia inteiro, pode-se ver circular mulheres com grandes feixes de lenha sobre a cabeça. Geralmente elas precisam caminhar muitos quilômetros com esses fardos na cabeça.
Reaprender é preciso!
Aqui estou tendo que reaprender a dormir! Não se trata mais de simplesmente vestir o pijama e se jogar na cama. Agora visto o pijama, ou não, por que a noites moçambicanas são bem quentes, e então arrumo o mosquiteiro. Por causa do risco de malária, toda precaução é pouca. E então, a qualquer momento, para um pequeno cochilo (e quem me conhece sabe que não são tão pequenos) ou para longas horas de sono, é preciso instalar o mosquiteiro.
Por estes dias tem escurecido um pouco mais tarde, pelas 18 horas. Daqui a alguns meses, já me informaram, que escurecerá lá pelas 17 horas! E o dia estará claro, com o sol raiando, já pelas 5:30h da manhã. Meu relógio biológico precisa se adaptar!
Não quero parecer saudoso, melancólico, ou reclamão, mas está sendo tudo diferente. Cada experiência é nova e rica. Mas podem ter certeza de que estou muito alegre e aprendendo muito.
Fr. Ricardo Klock msf
17 de fevereiro de 2018

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