quinta-feira, 15 de março de 2018

A sagrada terra da missão (3)


“Vocês são todos irmãos e irmãs!”
Depois de uma semana nestas terras abençoadas por Deus, berço da vida humana, ainda tenho que me acostumar com duas coisas (não que as demais já estejam completamente assimiladas, mas estas duas são mais contundentes): o “calorzinho básico” e a língua desse povo.
Sou um amante do frio, e o calor me judia um pouco, mas nada que não seja superado com uma bela ducha fria. Nestes dias, estou hospedado no Centro de Formação de Anchilo, onde estou frequentando um curso de iniciação sobre a cultura e a língua do povo Macúa. Aqui não há chuveiro elétrico, e o banho é frio mesmo, o que é naturalmente bom!
Ainda a questão da língua
Preciso me acostumar com a língua falada pelo povo e aprender a compreender o que ele fala nas ruas. Tenho necessidade de entender o que falam os funcionários da casa que me hospeda, as pessoas que circulam pelo terreno rumo às suas machambras, as crianças a caminho da escola. Não consigo entende-los, pois já que todos falam o macúa, e a língua portuguesa é dominada apenas por quem foi escolarizado! Vivo algo como o que acontece comigo quando volto pra Linha Moraes, lá na minha terrinha de São Carlos: lá, todos falam o alemão, e quem não entende não faz a mínima ideia do que está se passando.
Vivi fortemente e na própria pele este desafio do idioma durante uma celebração eucarística da qual participei, numa das comunidades próximas da sede da missão. No final da missa fui apresentado como o novo missionário que havia chegado do Brasil. Naturalmente, eu era o alvo dos olhares curiosos de todos os presentes, mas isso não vem muito ao caso! Foi uma celebração quaresmal viva, cheia de fé e esperança.
A pequena capela estava lotada. Mulheres, homens, jovens e crianças apertavam-se para dentro da pequena igreja. A maioria dos homens se reunia num lado, as mulheres de outro; as crianças à frente, e os jovens do outro lado. Mesmo em grande número, as crianças se comportavam de modo irrepreensível e focavam sua atenção no que estava passando na celebração. Apenas dois jovens se ocupavam de organizar aquela pequena multidão, pois a cada momento chegava mais gente que precisava ser acomodadas.
A missa foi celebrada basicamente na língua macúa.  Adivinhem o quanto eu entendi! Mas nem por isso deixei de vivenciar a celebração com devoção e intensidade. Naquele dia experimentei um pouco aquilo que sempre ouvi nas aulas de história da Igreja sobre a celebração em latim: o povo não compreendia o que celebrava, não entendia o que o padre ensinava.
Foi uma celebração como tantas outras, mas duas meninas de mais ou menos 10 anos de idade roubaram a minha atenção na hora do Pai Nosso, cantado em macúa. Ambas de olhos fechados, mãos erguidas, cantavam com tanto fervor, que me parecia ver brilho no rosto delas. Elas sabiam o verdadeiro significado daquilo que estavam cantando! Não estavam imitando ninguém, pois ambas, como as demais crianças, estavam lado a lado em frente ao altar. Aquilo iluminou e revigorou o meu domingo!
A pessoa como transportadora de cargas
Aqui, tanto os homens como as mulheres andam nas ruas carregando cargas enormes, equilibradas sobre a cabeça. Quando vejo alguém carregando enormes feixes de madeira, mesas, cadeiras (até cama já vi um homem carregando!), fico imaginando como me viraria numa situação dessas... E logo percebo que fracassaria, já que nem consigo me equilibrar por muito tempo sobre uma perna. As crianças aprendem isso desde pequeninas, carregando sobre a cabeça seus chinelos, enxadas, foices ou até coisas menores, como sabonetes ou os próprios cadernos escolares.
Ao estrangeiro, parece que seria muito mais fácil carregar essas coisas com as mãos, mas eles não o fazem. As mãos ficam livres para outras atividades! Muitas mulheres, ao mesmo tempo em que levam uma boa carga sobre a cabeça, levam seus filhos pendurados às costas, ao lado ou à frente. Quando alguém não está habituado a presenciar estas situações, realmente fica impressionado. Mas o que eu sinto é admiração por estas pessoas, pela força e garra que demonstram. Não se deixam desanimar por qualquer coisinha...
Curiosidades e imprevistos
Caminhando nos arredores da sede missão, percebi que as plantações de mandioca tinham uma peculiaridade: o plantio é feito de forma diferente de como se faz no Brasil. Aqui corta-se uma pedaço da rama, enterra-se uma parte, como fazemos no Brasil para plantar um ramo de flor. O motivo para se plantar desse jeito são os cupins. Há muito cupim por aqui. Até as árvores precisam ter o tronco pintado para que os cupins não se instalem na árvore e a matem.
Como disse, estou passando um mês nas imediações da capital, Nampula. O Padre Celso trouxe-me de carro, e durante o caminho acabamos atolando na areia. Foi necessária a ajuda de 10 a 15 pessoas para tirar o carro da areia. O povo já sabe que muitos carros atolam, e já estão à espreita para ajudar, e assim ganhar alguns meticais (moeda local).
Formar a única família do Pai!
Um elemento da cultura macúa com o qual eu já me identificava muito antes de saber como eram as coisas por estas terras abençoadas é a questão da família alargada. Da família fazem parte não somente pais, mãe e filhos, mas todos os irmãos, primos, sobrinhos e cunhados. Àqueles que chamamos de primos de segundo o terceiro grau, este povo trata como se fossem irmãos. Há até o costume de chamar uns aos outros de “mano”, significando essa irmandade, mesmo sem nenhum laço sanguíneo que os ligue.
Eu sempre considerei parte da minha família pessoas que não possuem um laço de sangue conosco, sempre coloquei meus amigos como integrantes da minha família. São parte da minha família as pessoas às quais posso confidenciar meus segredos, chorar minhas penas e celebrar minhas vitórias. Depois de oito anos de caminha formativa e missionária, colecionei inúmeros “familiares” por todos os lugares onde passei, e os considero parte da minha família alargada.
Fr. Ricardo Klock msf
23 de fevereiro de 2018

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